Retextualização 

RETEXTUALIZAÇÃO

Fotografia de Maria de Jesus Batista (geografa)

 

POESIAS,  CONTOS E CRÔNICAS  PRODUZIDOS PELOS MEMBROS DA   ALVAR

 

                     

 

 

 RETEXTUALIZAÇÃO




 

POESIAS,  CONTOS E CRÔNICAS  PRODUZIDOS PELOS MEMBROS DA   ALVAR                             

 

 

 

 

  Santo Antônio de Lisboa- PI  2021

APRESENTAÇÃO

 

¹ANTÔNIA CLÁUDIA DE CARVALHO ROCHA LEAL

 

Inicialmente, não posso deixar de relatar o quanto sinto-me lisonjeada por apresentar essa obra, fruto da prática de escrita literária de diversos autores/autoras que admiro como leitora e se inserem como grandes nomes da arte, cultura e literatura da nossa região e que atualmente compõem  a Academia de Letras do Vale do Riachão (ALVAR). Como professora graduada em Língua Portuguesa e História e eterna estudante das respectivas áreas do conhecimento, considero que fui incubida de uma grande responsabilidade. 

Diante da tarefa dada, quero ressaltar que a minha curiosidade de leitora  sobre esse trabalho foi aguçada ainda sem a pretensão dessa apresentação, tive os primeiros contatos com alguns textos em conversa informal com um  dos escritores, Nilvon, quando este me relatou sobre algumas atividades que estavam realizando junto a ALVAR, dentre elas, a produção desse livro. Nesse momento, me propôs o envio de alguns textos até então produzidos para o meu deleite, fiz a leitura, e desenvolvi alguns questionamentos típicos de quem é muito curioso para desvendar a arte da escrita (seja ela literária ou não), de imediato associei os textos lidos a  um processo de escrita denominado teoricamente de Retextualização. Alguns dias depois, veio o convite para fazer essa apresentação, apesar de temerosa, porém, não menos atrevida, aceitei o desafio.

Nesse contexto, trouxe como embasamento para entender a Retextualização pensadores como ²Dell’Isola (2007), que  define Retextualização como a  transformação de uma modalidade textual em outra, ou seja, trata-se de uma refacção e uma reescrita de um texto para outro. Semelhante a esse pensamento,  ³Matêncio (2003), afirma que a Retextualização é a  produção de um novo texto a partir de um ou mais textos-base, o que significa que o sujeito trabalha sobre as estratégias linguísticas, textuais e discursivas identificadas no texto-base para projetá-las, tendo em vista uma nova situação de interação, um novo enquadre e um novo quadro de referências.

Ao ler a arte escrita que aqui se apresenta e tendo em vista esses referenciais, é possivel vislumbrar uma obra dividida em três partes, pois, o fazer literário dos autores/autoras se desenvolve a partir de três textos-base. No primeiro momento, a reescrita tem como referência um relato de viagem (fictício) vivido por Jailson Klein e seu amigo Robert Ball que remete a uma viagem que fizeram juntos ao Piauí, especificamente, a uma situação vivida por eles em uma lanchonete de um Posto de gasolina em uma BR que corta o estado da Bahia. A partir deste relato, é proposto como desafio a escrita de um conto sobre a situação vivenciada.

Dessa meneira, os escritores/escritoras criam novos elementos ou se utilizam dos mesmo que estão no relato (o texto-base), sob novas perspectivas.  Parafraseando os personagens, o espaço ou até mesmo alguns diálogos da narrativa onde ocorre a história, adequam-a às suas vivências, repertório cultural, linguagem etc, trazem possibilidades e versões para a história, retextualizando e criando contos a partir do relato de viagem.

             Na segunda parte do livro, o texto  que embasa as produções seguintes é o conto “A ausência” de Francis Jammes, poeta francês, cujos registros da primeira publicação desse conto são do século XIX , como um dos textos precussores do simbolismo francês. Nesse momento da obra, a dinamicidade dos autores/autoras se destaca, uma vez que, a reescrita  desse conto não se faz  apenas por meio de outros contos, mais também de outros gêneros (literários) como carta e poemas, permeados de subjetividades características da literatura, como os romances com as típicas  juras de amor eterno que fazem parte da reescrita de muitos dos conto.

         Além disso, quando nos deparamos com uma obra mútipla, construída sobre o olhar diverso e criativo de escritores, não se pode deixar de destacar as inferências  que os mesmos estabelecem com outras áreas do conhecimento, assim, nessa segunda parte do livro, encontra-se dentre outras, relações com a História a partir do relato sobre a convivência senhor-escravo, retomando para a narrativa o contexto histórico da escravidão e os ideais de liberdade dos escravos. Há ainda outro aspecto que também se pode frisar a variedade de repertórios utilizados pelos autores dessa reescrita, que é o fato de encontrarmos entre os textos um cenário típico de ficção científica, com cenário espacial.

         Seguindo a trajetória de leitura dessa obra, ao chegar no terceiro e último referencial para escrita, temos um desenho da autoria de  Fritz Miguel que retrata um corpo feminino, uma figura que remete ao “ser mulher”.  Dessa forma, para esse texto-base, o processo de retextualização se deu por meio de poemas, a visão de cada poeta/poetisa  sobre a mulher que se tem, a mulher que se vê dentro de cada corpo feminino, ou especificamente, daquele corpo desenhado. Assim, após a visualização do desenho,  de forma poética eu diria que podemos vislumbrar nos poemas: a mulher verdadeira, a  amada, a mulher dos sonhos, vista da janela ou da imaginação, aquela que sou, a que és, a revolucionária, a proibida, todas juntas em uma só  e um pouco da cada distribuída entre nós.

Permito -me avaliar esse terceiro momento da obra como necessário e de grande relevância ao contexto em que vivemos, onde os espaços ainda são limitados para a mulher se expressar, ou para nos expressar sobre ELAS, quando seus direitos, suas carreiras e vidas são ceifadas pelo simples fato de “ser mulher”. Desenhar, Pensar, Imagianar, Construir ideias sobre mulheres ajudam todos a entender o caminho percorrido por elas.

Portanto, ao finalizar  a leitura desse livro podemos encontrar um belo trabalho de escrita literária, que traz consigo uma linguagem lúdica, prazerosa,  imponente, estou  ciente  de que, cada leitor que vier a ler será seduzido pela dinâmica utilizada para criar e recriar os textos. Por fim,  sinto me agraciada e agradecida pelo convite e espaço para expressão do meu olhar sobre a obra.

 

 

 

 

 

 

 

¹Mestre em Lingua Portuguesa ( com ênfase em leitura e produção textual: diversidades e práticas docentes) e Especialista em História ( com ênfase em memória e patrimônio)

Professora da rede Estadual do Piauí e da rede Municipal de Santo Antônio de Lisboa -PI

 

²DELL’ISOLA, R. Retextualização de gêneros escritos. Rio de Janeiro: Lucerna, 2007

³MATENCIO, Maria de Lourdes Meirelles. Referenciação e retextualização de textos acadêmicos: um estudo do resumo e da resenha. In.: III Congresso Internacional da ABRALIN, 2003, Rio de Janeiro. Anais do III Congresso Internacional da ABRALIN, 2003

 

 

 

                                         TEXTO  I

                    BREVE EXPLICAÇÃO

Eu e aquele colega de trabalho, parceiro no livro Invisíveis Pensamentos e que escrevia como Robert Ball, fizemos certa vez uma viagem de carro ao Piauí. Minha família já havia ido antes de avião e ele estava indo para conhecer, já que é paulistano. Naquele tempo, o meu carro era um Corsa, sem ar condicionado, acho. Na viagem, numa época muito quente, lá pelas bandas da Bahia, paramos para abastecer, ir ao banheiro e beber alguma coisa, já que eram umas 11 horas, mais ou menos, e ainda cedo para almoçar. Fomos à lanchonete do posto. Pequena, mas suficiente para os nossos interesses. Naquele momento, o número total de pessoas no recinto resumia-se à mulher que atendia e a um homem sentado na ponta do balcão. Olhei para o freezer vertical, cervejas e refrigerantes de todos os tipos. Rápido, pedi uma cerveja malzebier (Que irresponsabilidade! Dirigindo?). A dona pegou uma. Geladinha! Meu amigo pediu um refrigerante, acho. Quando ela colocou a cerveja no balcão, o homem sentado ali na ponta do balcão falou para a atendente: “Uma pra mim também”. Parecia que ele estava esperando por uma dica ou sugestão do que beber. Quando saímos, comentamos a atitude do homem e quão curiosa fora a situação. Engraçado. Tempos depois no trabalho, relembramos o ocorrido. Abordamos qual poderia ser a história daquele homem, e que, ficcionalmente, haveria infinitas versões. Um de nós propôs que escrevêssemos, individualmente, um pequeno conto sobre a situação. Ele escreveu primeiro e, depois que li, até para responder às ofensas à minha pessoa, fiz a minha versão. As histórias, com muitas brincadeiras e referências, talvez estranhas a quem não nos conhece, saíram assim

 

 

 

UM NOVO SENTIDO PRA VIDA

Robert Ball

 

 Sete e quinze da manhã, BR 116, a Rio-Bahia. No trecho que cruza Vitória da Conquista, carros, ônibus e caminhões disputam espaço entre os buracos enormes da pista. Alheia ao zigue-zague dos veículos, Jurema chega ao pequeno bar em que trabalha, dentro do posto BR. Como em todas as manhãs, se prepara para abrir as portas do boteco e como em todas as manhãs se assusta com a aproximação silenciosa e sorrateira de um vulto, que ela logo reconhece: Juvêncio. Com má vontade, ela faz o mesmo comentário de todo dia: — Chegou cedo hoje, hein, Juvêncio – como se não soubesse que todo dia de manhã, ao abrir o bar, Juvêncio já estaria à sua espera. — Dia — ele respondeu, com a mesma má vontade da garçonete. Não queria conversa, só queria entrar e encostar os cotovelos no canto do balcão, para pensar na vida. — Vai pedir alguma coisa hoje, Juvêncio, quem sabe um cafezinho? — Brigado, quem sabe mais tarde. Juvêncio não queria café, não queria nada, só queria olhar para a movimentada estrada à sua frente e recordar. As mesmas lembranças ruins de um passado que Juvêncio pedia todos os dias que um daqueles veículos levasse dali para longe, para o norte ou para o sul, tanto faz, mas que teimavam em voltar todas as manhãs, naquele bar de beira de estrada. Lembrava claramente daquele fim de tarde, da mão trêmula pelo álcool limpando a arma, do tiro acidental, a mulher no chão, sangrando, morrendo, os vizinhos chegando, ninguém acredita nele, que tiro acidental que nada, vivia brigando com a mulher, ameaçando de morte, lincha, Juvêncio corre para dentro da mata vizinha à sua casa e some entre a caatinga. Nunca mais voltou à sua pequena Serra Talhada, nunca mais viu a pequena Évelin. A manhã avançava em direção à hora do almoço e o dia prometia ser igual a todos os outros nos últimos dois anos. Mas logo Juvêncio iria perceber que aquela manhã seria diferente. Despertado de seus pesadelos matutinos pela chegada de um carro, Juvêncio vê dois estranhos entrarem no pequeno bar. Um gordo, brancão, bonito, bem simpático, pensou Juvêncio, e um mais magro, a testa alargada pela calvície precoce e de uma feiúra comovente. “Um boneco de Olinda”, divertiu-se consigo. Sem levantar os olhos do balcão, Juvêncio percebeu a aproximação do mais feinho: — Me vê uma Malzebier. Ouvindo aquele pedido, Juvêncio sentiu um estranho calafrio percorrer-lhe o corpo. Desvaneceram-se as lembranças ruins, Juvêncio voltou ao tempo exatamente anterior ao tiro acidental e, cheio de coragem, levantou a cabeça, olhou nos olhos de Jurema como nunca tinha olhado antes e sentenciou: — Vê uma para mim também, Jureminha. Sem saber, aquele viajante havia salvo a sua vida. Um ano depois, Juvêncio morreu. Cirrose hepática, de tanto beber cerveja preta

  

 

UMA NOVA PERSPECTIVA

Jailson Klein

 

 Jurema levantou o portão de ferro da lanchonete e o sol das sete horas bateu forte nos seus olhos. Mal conseguia divisar as bombas de gasolina à sua frente, menos ainda a BR que se estendia um pouco além do posto. Caminhões, ônibus e alguns carros de passeio já trafegavam na movimentada Rio - Bahia. Em pouco tempo, o posto Alvorada estaria em pleno funcionamento — muitas carretas abastecendo, caminhoneiros vistoriando suas cargas, um ou outro viajante em busca de combustível e de uma oportunidade para esticar as pernas doloridas pela viagem. Ainda com as mãos segurando o portão, Jurema avistou um vulto atravessando a rodovia e vindo em sua direção. Vendo apenas a silhueta do homem, por causa do sol e da distância, ela poderia dizer, ainda assim, de quem se tratava: era Juvêncio, seu cliente regular dos últimos três anos. Num minuto ela se recordou da história daquele infeliz. As tantas confidências ouvidas e uma observação apurada tornaram fáceis para Jurema a tarefa de reconstruir o quebra-cabeça que era a história da vida dele. Juvêncio nascera em outro estado, o Piauí, teve uma infância pobre, mas igual a da maioria dos meninos da cidade. Nunca teve uma personalidade forte, faltava-lhe sempre o poder da decisão. Normalmente seguia a maioria, e era feliz assim. Havia alguns gostos que o deixavam feliz, o que lhe dava certa individualidade. Na juventude, gostava de uma cachacinha com coca, um cigarro, uma música brega, a companhia dos amigos. Assim era Juvêncio: regular, rotineiro, simples e... feliz. Casou. A influência da mulher numa personalidade frágil transformou-o numa cópia da esposa. Já não era mais ele, não ouvia mais brega, bebia doses de cachaça regradas e contadas pela esposa, que o fazia não por causa dos males causados pela bebida, mas pelo controle financeiro. Assim, ele seguia, sem notar, esse modelo de vida que lhe era imposto, e o dele se perdia no meio de um turbilhão de influências da companheira. Depois de anos nessa vida, Juvêncio, finalmente, viu que não era esse tipo de vida que queria para si. Separou-se da mulher (não tinha filhos) e voltou à vida que levava antes do casamento. Só que começou a beber demais. Não havia mais os amigos da época, tudo havia mudado. Quanto mais bebia, mais aumentava seu sentimento de solidão. Certo dia, resolveu mudar. Saiu do emprego, recebeu o dinheiro dos direitos e pegou carona com um amigo caminhoneiro. Chegando à Bahia, neste mesmo posto em que Jurema olha-o agora vindo por entre os carros, pararam para um cafezinho. Juvêncio dispensou o café e tomou uma bebedeira daquelas, recusando-se terminantemente a entrar no caminhão para seguir viagem. Para o amigo caminhoneiro não houve alternativa a não ser deixá-lo ali. Ele arrumou dormiu aqui e acolá até arrumar uma casinha para morar do outro lado do posto, e, desde então, todos os dias vem à pequena lanchonete assim que Jurema levanta o portão. Começa a jornada com um café puro e um pão com manteiga. Uma hora depois, inicia com os etílicos, todos, cada dia um. Aos olhos de Jurema, parecia que ele buscava uma bebida que realmente lhe agradasse. Tomava pinga, cerveja, cuba-libre, vodca pura. Jurema, no início, perguntava-lhe o porquê daquele rodízio contínuo de bebida, e ele respondia que as bebidas satisfaziam bem ao que buscava nelas: o efeito, mas, quanto ao paladar, não provara nenhuma que não o deixasse enjoado depois da sexta ou sétima dose. Cerveja, a mesma coisa. Jurema terminou de abrir o portão. Juvêncio chegou e sentou-se no seu cantinho privativo do balcão. Sem dizer nada, esperou. Jurema preparou o café com pãozinho e serviuo. Tomou, depois saiu. Ela sabia que dali a uma hora ele estaria de volta. *** Onze horas. Juvêncio em seu canto. Hoje já havia experimentado três tipos de bebidas diferentes e, no momento, tentava decidir qual seria a próxima. Que dúvida! Era sempre uma decisão difícil para ele. De repente, Jurema vislumbrou uma sombra que se movimentava no pátio em direção à lanchonete. Primeiro ela viu um círculo, não, na verdade era uma forma ovalada, uma sombra enorme. Seria um eclipse? Não, concluiu que não. Depois Jurema viu mais alguma coisa que se prendia à sombra, para baixo. Levantou a vista e viu que era uma pessoa, não uma pessoa qualquer... Meu Deus! Era Evo Morales, presidente da Bolívia! Outra suposição errada. Jurema teve pena, não do homem, mas da mãe que pôs aquele ser no mundo, não deve ter sido fácil para ela. O viajante dono daquela melancia em cima dos ombros era gordinho, tinha os ombros baixos e caminhava cansadamente. Parecia, mas não era o presidente sulamericano. Passos arrastados, o suor descendo pelas têmporas. Ao seu lado, outro homem, esse sim era cuspido e escarrado o ator Kevin Costner. Usava óculos escuros, bermudão e umas sandálias tipo papete. Jurema achou o segundo rapaz estiloso. Boa pinta. Bonito. O que aquele homem lhe pedisse, ela faria. Estava decidida. Os dois entraram. O bonito olhou para o freezer das cervejas, o cabeça de touro recostou-se no balcão, de frente para Juvêncio, que olhava para os dois em busca de uma ideia para sua próxima bebida. O gordinho de cabelo partinha pensava em beber uma cerveja bem gelada, que, além dele gostar, era propícia àquele calor baiano. Mas, mas... vinham-lhe à mente as palavras da mulher que costumava lhe dizer que cerveja era ruim e que ele não deveria beber. Pensando nisso, e olhando aquele desconhecido na ponta do balcão, que, sem o viajante saber, já vivera aquela situação durante anos, o Cabeção resolveu que a esposa estava certa e, pensando bem, não estava com tanta sede assim. Jurema aguardava o pedido. O bonitão falou, e sua voz era um trovão de firmeza e decisão, uma voz de quem sabe o que quer. — Uma malzebier! Sequer pediu por favor. Quando foi pegar a cerveja, Jurema vislumbrou uma luz no olhar de Juvêncio. Quando colocou a long-neck no balcão para o Kevin, ouviu Juvêncio pedir numa voz que reconheceu como feliz: — Uma para mim também, Jurema! Jurema olhou assustada. De todas as bebidas que ela tinha na lanchonete, esta era a única que seu cliente fiel nunca havia experimentado. — E aí, não vai beber nada? — falou o lindão para seu amigo. (A garçonete, neste instante, concluía, em pensamentos, que, se aquele homem de preto quisesse levá-la com ele, não pensaria duas vezes para pular no carro.) — Acho que não, talvez uma água... — respondeu Evo. No seu canto, a felicidade no rosto de Juvêncio se espraiava que nem as gotas de água pela garrafa da cerveja preta. Finalmente havia encontrado a bebida perfeita. Pouco tempo depois, os dois forasteiros saíram do bar discutindo quem dirigiria o carro. Se tivesse o dom de ler pensamentos, Jurema teria visualizado a imagem que se formara na cabeça (e que cabeça!!) do gordinho momentos antes — uma cerveja Boemia long-neck, esbranquiçada pelo gelo, evaporando-se nas palavras da mulher: NÃO BEBA, VOCÊ NÃO GOSTA! A garçonete olhou a poeira levantada no pátio do posto pela saída dos dois viajantes. Quando seria a vez dela ir embora dali? Por que o Kevin não a levara junto? No canto, Juvêncio bebia a terceira cerveja e pensava por que não tinha tido aquela ideia antes. Algumas semanas depois, os dois viajantes passaram pela aquela estrada outra vez. Desta vez não pararam naquele posto nem foram até a lanchonete. Se o tivessem feito, ao vê- lo, talvez se lembrassem do homem no canto do balcão que tomava, sorridente, uma malzebier bem gelada.                                             

 

EM OUTRA DIMENSÃO

Fritz Moura

 

Na esquina do universo, em algum tempo, em algum espaço, o Bar Dimensões estava ali como elo entre os mundos, seus frequentadores e operários iniciam suas atividades sedo da manhã. Jadyza, a bela garçonete andoriana de pele azul claro, cabelos prateados e antenas sex, abre as portas da lanchonete e encara os dois sois que brilham e iluminam seu mundo. Sim, seu mundo, desde que abandonou seu planeta, sua família, em busca das ilusões e aventuras das viagens espaciais, não sabia ela que iria acabar numa lanchonete, na encruzilhada de mundos, nesta lua seca e escaldante. Ao longe, Jadyza avista aquele vulcano, filosofo de bar, calado, até tomar umas cervejas Romulanas, quando se transforma num falador, com discursos eloquentes sobre racionalidade e lógica. Sempre chega sedo no Bar e fica até o anoitecer, traz consigo um mistério que as vezes invade o pensamento de Jadyza ... do que vive aquela criatura? Em que trabalha? Ela tenta lembrar o nome do sujeito, antes que ele se aproxime para cumprimentá-la, é com “J” que inicia o nome... - Bom dia J’venak, como está o senhor esta manhã? Dormiu bem? – Jadyza cumprimenta o vulcano. - Hoje foi por pouco, quase não lembra meu nome senhorita Jadyza. Bom dia! Impressionante que depois de 10 ciclos solares que nos conhecemos ainda tenha dificuldade de lembrar meu nome, me obriga a enviar mensagem telepática para você, e assim evitar o constrangimento. - Bem, o constrangimento aconteceu mesmo assim, depois que falou isto... Hoje o senhor começou o dia falante, e sem ter tomado nenhuma Cerveja Romulana... Impressionante. - De fato, muito observadora de sua parte... Deixe me quieto. - Pois não! J’venak ficou ali quieto, sentado na mesma mesa de canto, nada consumiu, ficou apenas assistindo ao show da dançarina sex de Orion, aquela verdinha era de destruir qualquer união estável, excitava homens e mulheres, não tinha um ser no universo que não despertasse desejo ao vê-la dançar. Mas J’venak ficava ali imóvel e não demonstrava nenhuma reação, isto deixava a verdinha extremamente excitada e, como consequência, melhorava ainda mais sua performasse. Jabah, dono do estabelecimento, adorava este jogo, dava muito lucro para ele. Jadyza nem olhava muito para aquela sena, para não ser dominada pelo poder atrativo da verdinha. Quando de repente avistou no horizonte raios e luzes de onde saiu um veículo estranho, velho e empoeirado, nunca havia visto uma coisa daquelas. O dia se adiantava, estava chegando o meio do dia, hora em que começa a encher a lanchonete com criaturas de todas as partes em busca de comida e bebida. O trabalho dobrava por alguns instantes, então esvaziava para encher novamente ao cair da noite. Bem mais estranho ainda eram as criaturas que saíram do veículo, Jadyza pensou que estava delirando, talvez fosse fome ou mesmo cansaço, o fato é que as duas criaturas se dirigiram para o balcão do bar, o mais alongado, usava óculos escuros, tinha ar de confiante e disfarçava, nitidamente, a estranheza do que via. A outra criatura, mais arredondada, com olhar espantado e suando muito. Os dois pararam em frente a Jadyza e o mais alongado disse... - Bom dia! Este é o caminho para Vitória da Conquista? Não estou reconhecendo este Bar. Jadyza respondeu encarando bem o sujeito, tentando captar seus pensamentos confusos... - Bom dia forasteiro, está mesmo perdido, você está na terceira lua de Mi’var, um belo deserto na esquina do universo, encruzilhada das dimensões... E para lhe ser bem franca nunca ouvi falar de Vitória da Conquista por estas bandas. A distância, mas sempre muito atento, J’venak ouvindo o diálogo, se aproximou e cumprimentando os forasteiros indagando... - Bom dia! Sou J’venak, por um acaso o lugar que procura fica em um planeta chamado de Terra? Pois, pela aparência dos senhores devem ser de lá.... E virando-se para Jadyza disse: - Terra, Vitória da Conquista, Bahia, lugar do senhor Lao, lembra agora. Então, Jadyza fez cara de lembrar, mas reparou que o forasteiro redondo estava ficando amarelo, com os olhos arregalados não parava de cutucar o alongado dizendo... - Eu sou de São Paulo! Este teu Nordeste é muito estranho! Eu sou de São Paulo!... - Calma Bolo, deixa eu entender o que está acontecendo aqui... Então, sim, estávamos a caminho do Piauí, na BR Rio-Bahia, passando por Vitória da Conquista, e sem querer ser crítico, isto aqui não se parece nada com a Bahia... Logo J’venak tomou a palavra e disse... - Estais muito longe de casa amigo, Mi’var fica do outro lado de sua galáxia, analisando os fatos que observei vocês devem ter, por acidente, pego uma tempestade dimensional, e terminaram por se desviar de seu caminho... Mas tome uma Cerveja Romulana comigo, quero saber mais sobre a Terra... - Obrigado pela oferta senhor J’venak, sou Klain e este é meu amigo Bolo, prefiro uma mauzerbeer e uma cajuína para meu amigo, pois ele está dirigindo... - Jadyza! Traga algo parecido para eles, pois estas bebidas não temos... disse J’venak olhando de maneira simpática para os forasteiros. - Pode deixar, para o Klain uma Cerveja Romulana, vai gostar, tenho certeza ... e para o seu amigo uma sangria Klyngon, é forte, mas ele vai precisar para achar o caminho de volta para casa... - Disse soltando uma estrondosa gargalhada. Klain ficou curioso e resolveu experimentar a Cerveja estranha, não é que ele gostou da danada, mesmo só tendo tomado 10 garrafas, que era muito pouco para os parâmetros dele, enquanto conversava com aquele senhor de orelhas pontudas e olhos de chinês, de nome estranho que ainda não conseguia pronunciar. Bolo, tomou uma garrafa daquela sangria e cochilou no balcão, babando e dizendo em voz baixinha ... – eu sou de São Paulo, o Nordeste é muito estranho... La para o meio da tarde, J’venak puxou os estranhos para o pátio até chegar ao veículo deles. Explicou sobre o caminho de volta e apontando para uma estrada que subia uma montanha, cujo topo tinha nuvens e uma tempestade de raios, disse... - Sei que vocês na Terra estão muito perdidos, indo ora para a esquerda, ora para a direita, acreditam que só existem duas direções... o universo é tridimensional, tem muitas possibilidades além da direita e da esquerda, temos ainda, para trás, para baixo, para cima e para frente... Assim, se seguir o caminho para frente e subindo rumo ao mais alto, tenho certeza chegara mais afrente de onde imaginava que poderia... - Klain e Bolo entraram no seu veículo, seguiram no rumo recomendado, chegaram na tempestade e ao passar avistaram uma cidade. Pararam no posto para reabastecer e perguntaram ao frentista ... - Que lugar é este amigo? - Juazeiro da Bahia ... – respondeu o garoto de uniforme verde. Klain virou-se para Bolo com cara espantada e sem lembrar de nada que acontecerá e perguntou ... - Tu se lembras do caminho de Vitória da Conquista até aqui? - Nada, até parece que dormi este tempo todo ... – respondeu Bolo ao amigo. Anos depois, os dois amigos sonharam com esta aventura e escreveram um conto de realidade fantástica, um pouco surrealista, com riqueza de detalhes. Mesmo tendo sido escritos separados, quando compararam suas obras, elas estavam rigorosamente idênticas. Então, Klain teve a ideia de sugerir aos seus amigos escritores que escrevessem suas versões do que teria havido com eles nesta viagem, entre Vitória da Conquista e Juazeiro da Bahia.  

 

 

JUVÊNCIO DE ANTÃO

Nonato Cipriano

 

O dia amanheceu sem um capucho de núvem no céu. O clarão raiou bem cedo. E nem eram seis horas quando Juvêncio acordou , com a boca amarga e um hálito que misturava cheiro de São João da Barra com cigarro. Dava pra sentir de longe aqueles odores que circulavam o barraco. Afinal, o casebre não tinha cômodos, apenas um único vão onde estava armada sua rede, uma mesa cheia de roupa suja, um prato de esmalte com uma sobra de farofa de salsicha, da noite anterior e um bule de café, dormido. Debaixo da rede uma garrafa de Conhaque de São João da Barra, vazia até ao meio e um urinó: Juvêncio tinha medo de sair à noite para urinar. Juvêncio mirou tudo ao redor, vagarosamente, passando a mão nos cabelos longos, que alcançavam os ombros, alternando com um afago na barba, um tanto rala, grisalha e grande. Era uma figura que se assemelhava à Raul Seixas. Será que ele era fã de Rauzito? Não sei! O que eu sei sobre Juvêncio é que ele veio do Piauí, na década de sessenta, com o desejo de ir até São Paulo em busca de trabalho, mas se cansou da viagem e parou aqui na Bahia. Fez um barraquinho ali do outro lado da entrada, em frente ao posto de gasolina e montou uma borracharia, se é que se pode chamar aquilo ali de borracharia. Um barraco feito de pedaço de lona, flande de lata de querosene, porta de carro velho e todo amarrado com imbira! Eu nunca vi Juvêncio com chamego pra lado de mulher, nunca vi ele namorando e nem cortejando uma mulher, a não ser um cegueira que ele tem por Jurema que eu não entendo no que dá: todo Santo dia esse homem vem aqui na lanchonete do posto, bem cedo e passa o dia todo chocando Jurema. Não sei como ela aguenta! E por falar em marmota, lá vem o tróço, caminhando lentamente com as pernas bambas, a cara pálida da cor da flor dum algodão e com um cigarro no bico. Ali ele passa mais de meia hora na beira do asfalto, esperando os carros passarem e dar um vaga pra ele atravessar a pista, cambaleando. Outro dia uma carreta quase pega ele! Mas ele não toma tento e repete essa mania, todo dia, pra ver Jurema. Prestem atenção...! Jurema mal abriu a lanchonete e ele já está entrando. Esse sujeito não tem jeito mesmo. Agora vai alugar a pobre que, vendo por outro lado, até que ele serve de companhia porque a pobre não vende quase nada, pelo menos empata o tempo. Eu não sei como ela aguenta o bafo dele, Ave Maria! O homem parece que come é urubu! Eu trabalho há 15 anos nesse posto da BR Rio-Bahia e nuca vi esse elemento descer com a toalha no ombro pra tumar banho no riacho. Bora botar mutuca na conversa dele com Jurema! - Bom dia minha pombinha- disse Juvêncio, passando a mão sobre o bigode. - Bonr dia Juvenço- respondeu Jurema, empilhando as assadeiras de bolo, debaixo do balcão e sem dá muita atenção ao cliente. - Abriu cedo hoje, minha nêga? - Olha Juvenço eu nunca te dei entrança pra mode vim com essas lorotas pra mim, tá ligado? Num sou mulher pra teu tipo- esbravejou Jurema, incomodada pela visita de sempre. Eita homi da peste! Todo Santo dia é esse mesmo piseiro e essa mesma lavada na cara. Só um cabra cachaceiro aguenta esse moído, todo dia. - Dona Jurema, bote um quarto de Conhaque e uma carteira de Mister- disse Juvêncio , se sentando mais pra ponta do balcão. - Olha aqui, Juvenço! Tu bebe essa cachaça calado e num da mais nem um pio, senão vou chamar pain pra te dá uns esfregas. Só pode ser uma praga, que castigo meu Deus! Ter que aturar esse bafo de bode, todo dia. No passar das horas, beirando às 11 horas, um Chevrolet Corsa faz sinal que vai entrar à esquerda e deixa a BR em direção à lanchonete. No meio daquele sol escaldante, desce os dois ocupantes do carro, caminham olhando para um lado, para o outro... olham novamente para o carro e em seguida sobem a calçada que dá acesso à lanchonete. Eu pensei que eles vinham era abastecer o carro em meu posto, já tava até animado, pensado na minha gorjeta. Parece que são ricos! Meu pai dizia que toda pessoa branca, da pele bonita e cabelo fino, era rica. E esses dois parecem ricos. Olha a pinta do maguin: óculos raiban, bermuda moderna, chinelona invocada...! Não vou perder a conversa desses barão. - Bom dia, qual é vossa graça? Disse o rapaz de óculos. - Aqui num tem ninguém com esse nome, senhor! meu nome é Jurema! - Bom dia dona Jurema, repetiu Jakson o moço de óculos, em meio à uma gargalhada. - O que o senhor deseja? Perguntou Jurema, meio desconfiada com os dois e com o pensamento: “será que são pistoleiros, daqueles que matam prefeito " - Eu quero uma cerveja Malzebier, bem gelada! - Mal o que? - Mal-ze-bier, aquela ali, Juremita! Apontou, o descontraído Jackson. Nessa hora eu vi Jurema soltar uma gargalhada tão grande, que desde que eu trabalho aqui nesse posto, há 15 anos, num tinha visto. - Mano, me da um refri diet- disse Carlão, o companheiro de Jackson, que se derretia em suor, no calor escaldante da Bahia. - É hoje! Disse Jurema dando uma revoada com o cabelo e soltando outra gargalhada. - Tá aqui seu ré-fríe, mimoso! Disse Jurema, olhando firme nos olhos de Carlão. - Jurema, bote uma garrafa dessa mesma cerveja que o moço da bebendo, pra mimdisse Juvêncio, falando grosso. Os quatros: Jurema, Jackson, Carlão e o rapaz do posto de gasolina, viraram os olhos, sincronizados, para Juvêncio. - O que foi? Vocês viram alma ? Disse Juvêncio, com os olhos arregalados. - Sirva uma pra ele, Jurema e anote junto com essa- ordenou Jackson. - Como é seu nome? Continuou. - Juvêncio de Antão. Sou fíe das banda do Piauí. - Que coincidência, eu sou piauiense também! - De que cidade o senhor veio? - Dum lugar chamado Arrudiador. Meu Pai teve muitos fíe, mas num me alembra mais o nome deles... o único que me alembra é de uma mocinha que se chamava Jandira. Jandira de Antão! Jacson ficou pensativo... Tomou o último gole de cerveja e pensou: “ eu acho que está cerveja não me fez bem" Então chamou Carlão, pagou a conta, despediu- se de todos e saiu. Carlão, ao passar pela porta, perguntou ao rapaz do posto: - Com o é seu nome? - Nezin de Chico dos Couros - Véi, tu é muito inchirido! Passa o dia ouvindo conversa dos outros! -“????” pensou Nezin.

                                     

 

 

 

 

   ENCONTROS E DESENCONTROS NA RIO - BAHIA

                                                                                                            

Nilvon Batista Brito

 

Hoje, como em todos os dias, abri o portão da lanchonete às 7 horas da manhã. Os olhos ainda inchados e coçando, com a sensação de ter passado por um vendaval. Dormi muito pouco na noite anterior; sempre que Marta falta tenho que cobrir o turno da noite. Quando cheguei em casa, já passava da meia-noite e só fui dormir lá pelas duas da madruga, depois de fazer todo o serviço da casa. Às 6 da manhã, já estava de pé para deixar café pronto para Juvêncio. Era uma rotina muito pesada, mas desde que fui acolhida por Juvêncio, fazia de tudo para lhe agradar.

Deixei a casa de meus pais ainda de menor, quando meu pai descobriu que eu estava perdida. Ele não aceitava que uma filha sua estivesse grávida solteira, afinal, nem namorado eu tinha. Foi apenas uma aventura naquele forró. Foi uma noite terrível. Percorri a pé a estrada que ligava a pequena cidade à BR, só com a roupa do corpo e outra na sacola que minha mãe me deu escondida dele. A minha sorte foi que, ao chegar à BR, consegui uma carona com um caminhoneiro. Após alguns dias viajando e servindo o motorista de tudo, fui deixada neste posto de gasolina, aqui em Vitória da Conquista. Novamente a sorte, ou coincidência, se é que ela existe, me fez deparar com   um homem dormindo na calçada da lanchonete, provavelmente bêbado. Sentei-me ao lado dele com a minha sacolinha, chorando muito, até que o homem acordou e perguntou de onde eu vinha.

— Venho de muito distante, mas o problema não é de onde venho, mas para onde vou.

O bêbado disse que tinha uma casinha ali próximo, que habitava já há muitos anos, desde quando chegara ali vindo de Pernambuco, fugindo também, assim como eu. Contudo, Juvêncio, não fora expulso de casa, havia fugido. Não suportou a traição de sua esposa. Em um dia de infortúnio, Juvêncio voltando da roça, desconfiou que Carolina não estava só. As crianças estavam na escola. Entrou sem ser percebido e, ao testemunhar a cena de traição, saiu da mesma forma, em silêncio, caminhando sem destino, pegando carona, passando fome e frio, até chegar ao posto Jequié, onde encontrou um casebre abandonado ao lado. Passou a viver ali, bebendo e comendo das sobras dos viajantes. 

         Juvêncio me acolheu,  me convidou para dormir em sua casa e eu fui ficando até surgir uma vaga de faxineira na lanchonete. Após algum tempo trabalhando na limpeza, o gerente me deu o emprego de garçonete. Juvêncio me acompanha todos os dias e fica sentado esperando até que alguém lhe pague uma bebida, pode ser qualquer uma, o importante é manter-se embriagado como forma de aliviar sua dor.

 Essa é minha rotina. O entre e sai de clientes de todo o Brasil na lanchonete do posto Jequié também é rotineiro; no entanto, hoje foi um dia diferente. Dois clientes me tiraram da monotonia do serviço e me levaram para uma viagem distante.

Aproximadamente às 11 horas da manhã, parou um carro em frente à  lanchonete e, quando a porta se abriu, tomei o maior susto da minha vida, depois daquele  quando comecei a entojar. Não podia acreditar, o moço que saiu do carro, de óculos escuros e camisa de um time de futebol que eu não conhecia, era o ator global Guilherme Fontes! Trabalho aqui há muitos anos, já atendi pessoas de todo seguimento, mas nunca um ator. Minhas pernas ficaram bambas, meu coração palpitando e o corpo gelado.  Não perdi nenhuma novela dele desde que estreou na minissérie Desejo. Achei muito estranho o seu companheiro de viagem,  era o Bussunda do Casseta e Planeta.  O que faziam Guilheme Fontes  e Bussunda por essas bandas? Será se estavam fazendo algum filme aqui por perto?

Os dois entraram, e quanto mais se aproximavam mais eu ficava nervosa. Não consegui nem dar bom dia. Até que o Guilherme, após um breve olhar no freezer, fez seu pedido:

— Uma malzebier, por favor.

       — Uma pra mim também — falou Juvêncio, que passava o dia todo naquele cantinho da lanchonete à espera de um cliente que pagasse alguma bebida pra ele.

Foi aí que percebi o meu engano. Não poderia ser o ator, o sotaque era nordestino e de perto não tinha pose de ator, era muito magro, boca murcha e uma dicção não muito boa. E Guilherme Fontes jamais andaria num Corsa velho daquele.

— Pra mim uma cajuína. Não gosto de tomar cerveja quando estou dirigindo —falou o seu companheiro, que tinha sotaque paulista, e aí, de perto, vi que apenas se assemelhava com o Bussunda. 

Já um pouco recuperada do susto, me dirigi para o moço de sotaque nordestino e perguntei:

— O senhor é de que parte do Nordeste? 

— Sou de uma pequena cidade chamada André Ramos do Piauí.

Não poderia ser, naquele instante meu mundo parou, uma gota de suor desceu na espinha e um arrepiou tomou conta do meu corpo. Desde aquela maldita noite em que fui expulsa de casa, não ouvia falar de minha cidade. Aquele moço que parecia Guilherme Fontes era meu conterrâneo. Perguntaria para ele se conhecia seu Antão? Mandaria dizer pra minha mãe que eu tinha perdido a criança? Que eu estava viva?

— Jandira, Jandira! — gritava Juvêncio tentando me tirar do transe. — O moço deixou essa nota de 100 reais para pagar a conta e o troco para você. 

 

A FUGA

 

Vilebaldo Nogueira Rocha

 

O sol entra, iluminando o posto Alvorada na BR-116, e abre a comanda para mais um dia.

As pessoas dentro dos carros correm na estrada que alimenta o posto como se fugissem do capiroto. Os carros voam. As bombas trabalham para nutrir o patrão dos empregados que caminham maquinalmente.

Jurema abre a lanchonete e olha a estrada aberta e para pensativa... Um sorriso escorre de seus lábios... parece felicidade. Mas logo se dissipa ao encontrar os olhos de Juvêncio a desnudar seus pensamentos.

– Que foi Juvêncio? Nunca me viu, não??!! Fala zangada com o primeiro freguês de todos os dias, por despertá-la de um sonho bom.

O homem, se é que se pode chamá-lo assim, entra com sua solidão e sua dor e fica na ponta do balcão como um contrapeso.

Dois homens entram apressados na lanchonete. Querem saciar a fome, a sede ou algo mais. Lembra a cena de um filme antigo e cômico: o gordo e o magro.

O “forte” corre o olho nas bebidas que estão no freezer, lambe os lábios, mas desvia o olhar a contragosto.

Juvêncio, em sua solidão, percebe o sofrimento alheio.

– Me dê um pedaço de rosca e uma Coca-Cola – o homem rechonchudo fala com um certo desânimo.

O “franzino” para perante o espelho: ajeita o cabelo, abre a boca e sorri. Imagina-se o próprio Kevin Costner dançando com lobos, mas o espelho não mente – a mente alimenta fantasias e desejos.

– Não vai beber, “fofinho”? Já sei... a mulher não deixa ou tá tomando remédio – zomba o magricelo sorrindo e falando alto:  – Gatinha, me traz uma cerveja malzbier!

Essa frase acorda o contrapeso do balcão.

– Uma pra mim também, Jurema! Juvêncio rompe o silêncio de si mesmo.

A dupla cinematográfica esboça um sorriso, mas o bom senso e a educação falam mais alto e se comporta.

Depois de algum tempo de olhares e mandíbulas em ação, o falso dublê pede a conta todo serelepe:

– Jureminha, meu amor, traz a conta e inclui também a cerveja do amigo ali, ok?

Após comer, beber e pagar, o Gordo e o Magro batem em retirada em alto estilo:

– Até outro dia, gatinha, quer dizer: Jureminha!!!

– Bom dia, amigo, boa sorte!!!

– Obrigado. BOA FUGA!!! Resmunga Juvêncio quase inaudível.

A dupla saiu sorrindo e o gordinho reclama:

 – Você foi pagar a cerveja dele, ficou pensando que somos ladrões de banco.

– É nada, meu amigo! A fuga a qual ele se refere é o álcool. Uma verdadeira viagem que você refugou.

Novamente a estrada aberta... a solidão e o tapete preto a perder de vista.

Juvêncio se recolhe ao seu casulo, mas Jurema parece inquieta:

– Por que boa fuga, Juvêncio???!!!!

– Todo mundo está fugindo de alguma coisa ou de si mesmo.

– E você, por que foge feito alma penada?

Um veio d’água escorre do canto do olho daquele trapo de gente e parece acordar o homem.

– Um filho chorando de fome é um zumbido para o resto da vida na cabeça de um pai. E a fome é só um pretexto para os outros abutres atacarem.

­– ???!!!

– Seu filho ainda vive no Piauí???

– Ele já não tem fome. Agora é só um zumbido no meu SER ou na minha alma, sei lá.

– Eu vou rezar, Juvêncio – Jurema engole a baba como se fosse um espinho de mandacaru e um outro rio nasce em sua face.

– Há um momento em que as orações não são ouvidas. Bota uma dose de cachaça, Jurema!

O silêncio caiu como o sol entrando na noite.

No dia seguinte, quando o sol abriu a comando para um novo dia, Juvêncio não fazia mais parte da paisagem.

 

JUREMA – A GARÇONETE

* Deolinda Marques

Tudo aconteceu há muitos anos, bem antes da Lei Seca.

— Bom dia, Seu Juvêncio. O solzinho hoje tá esperto!

— Dia.

Essa era a rotina vivida por Jurema todos os dias: chegava, abria as portas da lanchonete, e a primeira cara que via era a de Seu Juvêncio.

Mas aquele dia, que começou igualzinho a todos os outros, ganhou emoções diferentes.

                             

*****

 

Josimar e Robson partiram de Sampa rumo ao Piauí. Josimar, que saíra do seu torrão para trabalhar na terra da garoa, estava ansioso. Além de querer esnobar com seu Corsa do ano, convidara Robson, seu amigo e companheiro de trabalho, que era paulistano, para vir conhecer sua terra, para que ele pudesse comprovar que no Nordeste não tinha apenas seca, pobreza e miséria. Tinha, sobretudo, muita gente hospitaleira de coração enorme, como ele.

Depois de percorrerem uma longa distância e terem ouvido quase todos os CDs, botado todos os papos em dia, já chegando em Feira de Santana, o cansaço bateu; a sede também. Resolveram, então, parar para esticar a carcaça, fazer o que não podiam mandar ninguém e beber alguma coisa, afinal também eram filhos de Deus. Pararam o carro num posto e avistaram uma pequena lanchonete. Lá, com certeza, teria tudo o que eles desejavam naquele momento.

Robson, que caminhava na frente, parecia gringo. Alto, branco avermelhado, cabelo liso e bem claro. Usava roupas mais formais e até um pouco inadequadas para aquele clima. Josimar, precavido como todo bom nordestino, usava bermuda, sandálias da moda e, completando o look, uns óculos Ray-Ban. Queria parecer bem, quando chegasse à sua querida Rodeador.

Antes mesmo de adentrarem completamente o pequeno espaço da lanchonete, já ouviram a voz simpática da atendente, em sotaque baiano:

— Diga, meu Rei!

Robson não teve dúvidas de que o rei só pedia ser ele e foi logo se adiantando:

— Bom dia, senhorita!

Mas Robson, que há horas sonhava com uma cerveja bem gelada, demorou a se decidir. Parecia ouvir a voz da mulher, como se fosse uma gravação: “Você não beba!” Enquanto isso, Josimar rapidamente havia olhado, de cima abaixo, um freezer vertical com várias opções.

Antes mesmo de fazerem os seus pedidos, Juvêncio já estava de olho nos dois. Principalmente no bonitão do Ray-Ban.

Nem mesmo Jurema entendia aquelas atitudes de Juvêncio. Um velho, sem eira nem beira, que ninguém sabia de que buraco saíra, vivia de olho nela. Todos os dias, era o primeiro a chegar e último a sair daquela lanchonete. Vivia dizendo que ia embora para sua terra, mas esse dia nunca chegava. Jurema às vezes perguntava:

— Vai viajar hoje, seu Juvêncio?

Respondia secamente:

— Hoje, não.

Jurema, como toda mulher, queria muito ser olhada e até desejada. Mas por um homem, se não bonito, pelo menos mais novo. Não suportava mais aquele velho, com tudo mole, aspecto de sujo e cheiro desagradável, olhando-a dos pés à cabeça, com aquele olhar de jacaré faminto. Detestava.

Jurema era uma moça pobre que sonhava mudar de vida. Abandonou os estudos bem cedo, pois precisava trabalhar. Queria seu dinheirinho para comprar suas coisas e ajudar um pouco em casa. Vivia planejando voltar a estudar à noite, mas o cansaço do dia inteiro de trabalho naquela lanchonete, sempre adiava seu intuito. Nunca saíra daquela beira de estrada. Nascera ali, como todos os seus irmãos. Seu pai viera para aquelas paragens trabalhar num conserto da Rodovia, conhecera Marisa, casaram-se e nunca mais voltou ao seu Cariri. Jurema, coitada, não conhecia nem Salvador. Tinha um sonho de conhecer a igreja do Senhor do Bonfim. Não era muito católica, nem acreditava (como uma tal Divina) que Santo Antônio pudesse lhe dar um bom marido. Mas acreditava que Senhor do Bonfim poderia mudar o seu destino.

Não precisava ser um príncipe encantado, com casamento em igreja, de véu e grinalda. Queria um companheiro. Alguém para esquentar seus pés nas noites de frio. Feira de Santana não era sempre quente, como naquele dia.

Seu Juvêncio, ao contrário, ninguém sabia nada sobre sua vida. Aparecera ali há muito tempo, talvez uns cinco anos. Quase sempre calado, olhar distante, vivia de fazer alguns bicos e morava num quartinho nos fundos da borracharia.

Nem ele mesmo queria relembrar seu infortúnio. Era rapaz trabalhador. Ganhara dinheiro nas farinhadas de Araripina e comprara uma Kombi. Passou a levar passageiros para Picos, Petrolina... Um dia, ao parar no posto de Marcolândia, logo percebeu uma nova lanchonete. Entra e dá de cara com Shirley. Moça nova, bonita, de imediato conquistou seu coração. Juvêncio sempre sonhara casar-se com uma moça da sua idade, ajuizada... mas Shirley o fez esquecer aquele propósito. Estava completamente apaixonado.

Não casou, mas montou casa, lá mesmo em Marcolândia. Comprou de “um tudo” e tudo novinho. Três meses depois, estavam morando juntos. Ele ganhava um bom dinheiro. Não faltavam bons fretes. Shirley, toda carinhosa, um dia lhe pediu:

— Você podia realizar meu sonho. Sempre quis ser dona dessa lanchonete.

Juvêncio não pensou duas vezes. Comprou a lanchonete.

Passava o dia todo fora de casa e na maioria das vezes chegava bem tarde. Em pouco tempo, Shirley começou a mudar. Reclamava de tudo, vivia lhe pedindo dinheiro e sempre inventava desculpas para evitar qualquer tipo de aconchego. Juvêncio nem reclamava tanto, pois estava também sempre muito cansado. Mas o besourinho da dúvida começou a zumbir em seu ouvido. Percebia olhares de deboche daqueles homens desocupados que frequentavam a lanchonete. Não queria acreditar que Shirley o estivesse traindo. Mas um dia, ao chegar em casa mais cedo, viu o que os seus olhos não queriam: Shirley com Raimundinho frentista, na sua própria cama.

Não teve dúvidas. Tirou o 38, que sempre conduzia na pochete, e atirou primeiro em Raimundinho. Mas tinha pontaria ruim e errou feio. Ele correu nu, deixando Shirley completamente desprotegida. Disparou novamente e, dessa vez em Shirley, e acha que acertou em cheio. Mas não queria ver o sangue de sua Shirley manchando o chão. Correu desesperado e pegou carona com o primeiro caminhoneiro que passou. Daquele dia em diante, nunca mais teve notícias de Shirley, mas rezava todos os dias para ela não ter morrido. No entanto, aquelas lembranças povoavam sua mente como as batidas da marreta desembeiçando os pneus. Seu olhar se perdia na estrada e os dias passavam automática e rotineiramente até o dia em que, ao entrar naquela lanchonete, outrora conduzida por Seu Pretinho, homem gordo e extremamente ranzinza, avistara Jurema.

— NÃO. Outra mulher de lanchonete, não!

Jurema usava calça Jeans bem surrada, blusa amarela, com o nome do estabelecimento – Lanchonete do Freguês, uma faixa no cabelo, combinando com a camiseta, tênis All Star sem cadarços, para ficar mais confortável, e não esquecia nunca um colarzinho com pingente igual aos brincos, mesmo que de bijuteria barata, com o objetivo de melhorar sua aparência. Jurema era bonita. Com um banho de loja, ficaria mais bela ainda. Teve alguns namoros. Nenhum vingou por muito tempo, mas ela não perdia a confiança no Senhor do Bonfim. Não queria apenas casar. Queria era mudar de vida.

Antes mesmo de Robson se decidir por uma água mineral com gás e um Sprite, Josimar fala alto e decidido, colocando o Ray-Ban na cabeça:

— Uma Malzbier, por favor.

Juvêncio, como um raio, mediu o magrelo dos pés à cabeça, e falou bem alto também:

— Uma para mim também, Jurema!

Todos se assustaram. Principalmente Jurema, pois Seu Juvêncio nunca tinha experimentado aquela cerveja. Também nunca tinha se dirigido a ela pelo nome. Ficou sem saber a quem servir primeiro, mas, claro, atendeu primeiro o viajante. Logo depois atendeu Robson que tinha ouvido mais a voz da sua mulher do que do próprio Juvêncio.

Tomaram as bebidas, lentamente, sobre o olhar fixo e aborrecido de Juvêncio e, quando iam saindo, ouviram uma voz que parecia mais um grunhido:

— Cai fora, Bonecão de Olinda!

Jurema, não se conteve e deu uma gostosa gargalhada, pensando: “Meu Deus, Seu Juvêncio com ciúmes de mim!”. Só depois se deu conta e, com um sorriso meio que por dentro, pensou alto:

— Meu Senhor do Bonfim! Será que o bonitão estava olhando pra mim??

 

 

 

 

                                   

 

                            SEGUNDO TEXTO

 

A AUSÊNCIA

Francis Jammes

 

Aos 18 anos, Pierre deixa a casa camponesa onde nasceu. No exato momento da partida, sua velha mãe enferma se encontrava no leito do quarto azul, no qual estava o daguerreótipo de seu pai, em que havia penas de pavão em um vaso e um relógio de pêndulo, com as figuras de Paulo e Virgínia, que marcava três horas.

No pátio, sob a figueira, seu avô repousava.

No jardim estavam sua noiva, rosas e pereiras luzentes.

Pierre ia ganhar a vida, em um país onde havia negros, papagaios, borracha, melaço, febres e serpentes.

Ficou lá trinta anos.

No exato momento do retorno à casa camponesa onde havia nascido, sua mãe repousava no seio de Deus, o retrato de seu pai já não estava lá, e as penas de pavão e o vaso tinham desaparecido. Um objeto qualquer havia tomado o lugar do relógio.

No pátio, sob a figueira onde seu falecido avô repousava, havia pratos quebrados e uma pobre galinha doente.

No jardim das rosas e das pereiras luzentes, onde estivera sua noiva, estava agora uma velha senhora.

A história não diz quem era ela.

 

 

De Le Roman du lièvre, Mercure de France,

1922, 21ª ed.

 

 

 

 

 

AZUL DA TURMALINA

 Romanilta Rocha

Lá fora, uma leve e enfadonha garoa afugentava os incautos. No velho casarão de paredes caiadas e portas cor de anil, um silêncio soturno imperava, todavia sob o gazebo do mal cuidado jardim, onde vez por outra, ainda se via uma rosa ou uma pereira reluzente, Pierre lia e relia com sofreguidão o velho diário de amarelecidas folhas. Muitas estações se alternaram desde aquela manhã de abril, quando já se contavam trinta anos de sua partida e ele retornava ao casarão paterno, perdido nos recônditos daquela paisagem campestre que tão bem conhecia. Do casarão nitidamente impregnado nas suas retinas e no seu coração, ele jamais esquecera o dia que mal chegando à maioridade , criou a maior coragem do mundo e feito um pássaro ávido para deixar o ninho e lançar-se ao acaso, partira em rumo a outro continente, no claro afã de fazer fortuna, pois na sua terra, corria à boca pequena, que naquele país exótico, no qual havia negros, papagaios, borracha , melaço e serpentes, também dormitava sobre o seu solo intocado gemas e mais gemas de descomunal valor. Juntar as duas mudas de roupa, mais o diário com gravuras de flores lilases - presente de sua noiva- no qual carinhosamente se resguardava uma fotografia de ambos e, ainda, meia dúzia de pertences estritamente necessários foi uma tarefa fácil e que não demandou tempo, mas seu olhar se deteve longo e pausadamente no quarto azul , onde prostrada estava a sua mãe e de quem Pierre teve a sua última visão. Antes de partir, de relance correu a vista sobre os velhos objetos que, simploriamente, compunham o dormitório; fixou na expressão carrancuda de seu pai captada no velho daguerreótipo que parecia recriminá-lo ante à aventura do partir; tateou as macias e empoeiradas penas de pavão fincadas no vaso, para finalmente atentar-se ao relógio de pêndulo que eternizava as três horas da tarde como que pressagiando as três décadas que ele levaria para retornar ao casarão. Por um breve instante, parou sob o arco da porta azul e contemplou , ao longe, a noiva, contígua a um canteiro do jardim, coberto de falenas e rosas, mais adiante viu pereiras reluzentes, só depois avistou, também, a lápide do seu avó sob uma figueira verdejante. Aproximou-se da pequena, a quem jurava amor eterno, beijou com ternura as suas alvas mãos , cochichou nos seus ouvidos a promessa de que logo voltaria, rico e com os tesouros que seriam convertidos na gleba e no rebanho para o venturoso futuro dos dois. E partiu. E muitos sóis e muitas luas se passaram. O corpo vigoroso de outrora foi perdendo a força, as mãos calejadas já não tinham a mesma firmeza que demonstrava o jovem Pierre, quando recém-chegado ao sertão paraíbano, no desejo ardente de encontrar a turmalina. Tinha sido um tempo de muita labuta, cobiça, pelejas e sangue derramado, mas a fortuna da extração daquela gema de azul incandescente, que não tardou a se concretizar , de modo análogo ao que ocorrera a outros aventureiros, transformou, sobremaneira, o espírito daquele rapazote francês , cujo propósito inicial era conseguir algum recurso para a gleba e para o rebanho que prometera à Dominique , sua amada. Assim, os dias, meses e anos escorriam vertiginosamente e do passado deixado no velho continente apenas o diário de flores lilases, vez por outra, hesitava em lembrar a Pierre quem ele era e o que tinha vivido, trazendo, em breves lampejos, a lembrança do jardim de rosas e de pereiras luzente , onde numa manhã de abril alçou voo. E como um ritual rotineiramente regrado o velho diário ia sendo preenchido, ora com escritos, ora com gravuras ou garatujas indecifráveis , que mais tinham o intuito de relembrar a Pierre sua natureza dócil, antes da cobiça pela turmalina paraíbana. Entretanto, um dia ele voltou, sem fortuna, sem glória, sem gleba e nem rebanho, mas voltou. E na presente hora, nem a brisa gelada , nem as cortantes gotas da chuva, pontiagudas feito agulhas e agora avolumadas, que respingavam sob a sua tez enrugada, conseguiam dissuadir ou retirar Pierre daquele estado de entorpecimento que aparentava o tomar enquanto se dedicava a escrever no velho diário. Agarrado aquele pedaço de livro roto e envelhecido, que se configurava a ele como um talismã, avidamente rememorava a amantíssima genitora, o cenário da velha casa camponesa, sobretudo o viço do brilho do olhar de Dominique, azul feito a pedra turmalina. Com um olhar perdido , por um fração de segundos , Pierre reparou uma pobre galinha goguenta , sob a figueira sexagenária. E Virgínia, sua irmã, que junto ao finado Paulo, seu outro irmão, compartilhou com Pierre os aupícios de uma meninice feliz, hoje era uma senhora idosa e renitente. Ao observar o estado de torpor do irmão, que há pouco encontrara o caminho de volta à casa camponesa da família, voltou-se para Pierre e ordenou: - Cuida , irmão! Levanta, homem! Que a noite se avizinha e esse temporal não parece enfraquecer. Pierre imóvel não deu sinal. A velha senhora , a custo, caxingou até se aproximar do homem, pegou da mão de Pierre o velho diário aberto na última e amarela folha com desordenadas letras, só então deu conta que ele dormia profundo e eternamente.

 

 

 

O REGRESSO

Nonato Cipriano.

 A Nau Sanit- Marie alcançou as águas da costa francesa, sob um forte vento de través. As tábuas da embarcação rangiam num penoso sofrer, tanto, que pareciam cansadas da longa viagem; afinal, foram três meses, desde que saiu do Porto de Santos, até a França. Do convés de comando, o timoneiro avistou os primeiros sinais do Port Vieux de La Rochelle: a Torre de São Nicolau, a torre da Igreja de Saint-Sauveur, o farol... e por um impulso de alegria, gritou incessantemente: " Chegamos no Porto Velho! Chegamos no Porto Velho! Todos acordaram, ainda atordoados, pois a hora marcava entre cinco e seis horas e os sinais de claridade estavam se dissipando no céu. Quando a nau começou as primeiras manobras de atracação, Pierre subiu até o convés de comando e perguntou ao timoneiro se ele conhecia o Village de Saint Martin e se ficava distante do Porto. Ciente da informação, aguardou sua vez de desembarcar e foi logo acenando para uma Sege, que passava pelo Porto. Pediu ao cocheiro que o levasse até o Village de San Martín. Na viagem, que durou pouco mais que três horas, Pierre relembrou, naquelas paragens, suas idas e vindas ao Porto, vendendo os legumes produzidos nas terras de seu pai, quando ainda era rapaz e morava na pequena vila. Cada riacho, cada bosque que atravessava, suas lembranças afloravam como se estivesse vivendo aquele passado. Retirou uma pequena caixa de madeira, envolta por um retalho de couro fino, abriu-a e pinçou uma fotografia, a fotografia de sua eterna e amada Nicole que deixara naquele lugar, em busca de recursos que descem a eles uma vida melhor. Olhou repetidamente a fotografia, depois leu a dedicatória no verso e guardou-a, de volta à caixa. Cerrou os olhos em busca daquela imagem: " como deveria estar agora..." No meio dessa fantasia, foi despertado pelo condutor, avisando-o que haviam chegado. Tirou duas moedas de prata e entregou ao proprietário da Sege. Desceu, depois permaneceu parado, olhando a aquela velha casa, com sinais puro de abandono e que improvavelmente, haveria alguém ali. Caminhou lentamente em direção à casa, contemplou a fachada, foi até a porta que dava acesso à sala e num toque leve, empurrou a porta que abriu-se facilmente, resistente apenas aos emaranhados de teias que pendiam do teto. Permaneceu em êxtase, ainda sob o portal, depois caminhou mais dois metros, de onde pode olhar toda a sala e suas paredes com a pintura envelhecida, descorada que pouco se podia distinguir; somente Pierre, que havia morado ali, até sua juventude. Então lembrou-se do quarto azul, onde deixara sua mãe em estado mórbido. O coração acelerou, as mãos ficaram frias e uma leve palidez lhe consumiu toda a face, descorando sua coragem de adentrar naquele cômodo. Veio-lhe a coragem e o lavou a abrir a porta do quarto azul. Nada mais o fazia lembrar: O telhado mostrava arestas gigantes por onde a chuva descia, torrencial, pelas paredes e lamaçava o piso de ladrilhos. Na parede, não havia mais o daguerreótipo de seu pai, nem o relógio de pêndulo, nem sob a mesinha de madeira o vaso com penas de pavão, já não mais existia. A tristeza o consumiu e o fez caminhar de volta para o jardim, onde, pra sua grande surpresa, havia uma mulher, sentada sobre as raízes de uma figueira. Pierre, ainda mais confuso, caminhou em direção àquela senhora e sem acreditar no que via, agachou-se bem próximo a ela e perguntou: - A Senhora mora aqui nesse lugar, ou está só de passagem? Tem fome? Tem sede? - Não - respondeu, simplesmente, a mulher. - Eu posso ajudá-la em alguma coisa? - Talvez! A medida que conversavam, Pierre foi provocado por aquela voz que lhe parecia familiar, aquelas gestos que parecia conhecê-los, aqueles olhos... - E quem é você, forasteiro, que me chega estranhamente, que me invade de perguntas e não diz de onde vem? Disse a mulher. - Eu venho do Brasil. Sai daqui ainda moço, na esperança de ganhar dinheiro para mudar a vida difícil que levava, junto a minha mãe. Fui pras Minas Gerais, um lugar que tem muito ouro e muito diamante; que fica a muitas milhas daqui, num país chamado Brasil. Lá passei fome, quase morro de doença, apanhei muito, mas consegui, ao longo de trinta anos, uma boa quantidade de ouro, que me dará sustento por muitos anos. - E você está feliz, agora, com todo esse ouro? - Sim! e não. Não, porque deixei aqui, nessa vila, o grande amor da minha vida. A mulher por quem morri de amor durante esses anos, por quem chorei todas as noites, sozinho e jogado naquele mundo distante. - Eu também quase morri de amor, eu também passei noites e noites olhando pro céu, buscando a face graciosa do meu bem. Sempre guardei um fio de esperança e esse fio de esperança valia ouro. - Quer dizer que você, também, sofreu por um grande amor? - Sim. Mas de hoje em diante, não mais. - Como assim? - Eu esperei trinta anos por você, Pierre! Passei todo esse tempo vivendo das lembranças que deixastes! Enterrei sua mãe aqui, junto ao túmulo de seu pai e prometi a ela que não sairia desta lugar, enquanto você não voltasse. Você foi embora pra longe, mas deixou aqui o teu cheiro e as tuas marcas. O teu amor marcou meu coração e ele não despertou pra mais ninguém. Eu sou a sua inesquecível Nicole! Os dois abraçaram-se, como se ainda no verdor de seus dias, beijaramse, sorriram, choraram e prometeram que, daquele dia em diante, viveriam um para o outro, até o fim de suas vidas.

 

AS CINZAS DE UM PASSADO

                                                                                  Regivalda Sousa .

Pierre e Quinzinho eram dois amigos improváveis, afinal um era filho da casa grande e o outro da senzala. Nasceram no mesmo dia e cresceram juntos, apesar da realidade cruel em que um deles jazia submetido. Certa vez, nos idos de 1664, quando os dois já eram jovens, Pierre, tomado pelo sentimento de revolta e pelos laços de amizade construídos com Quinzinho, decide presentear o amigo com a liberdade. Para tanto, recorre ao Pai e tem os seus planos frustrados, afinal, para o dito-cujo, Quinzinho nem era gente e lhe dar a liberdade era o mesmo que soltar um novilho gordo no dia de um banquete real. Pierre, ficou demasiadamente enfurecido. Queria ver Quinzinho livre! Queria apresentar para o amigo tudo o que não cabia na senzala. Mas, a partir da resposta negativa que receberá do Pai, seguiu em frente. Participou ao amigo o fato de não ter obtido a carta de Alforria e, em consequência disso, logo Quinzinho revelou o seu plano de fuga. Queria ser livre, como todo homem deveria ser e o seria, se não fosse pela força afetiva, o seria mesmo que por meio da força bruta. Pierre o contrariou, afinal julgava tal ideia muito perigosa e, no fundo, temia que Quinzinho, revoltado pelo cárcere e a indisposição de lhes dá a liberdade, alimentasse ódio e fizesse algum ato em represália contra sua família. Portanto, recusou-se a ajudar O amigo, o que não cortou as suas asas, pois Quinzinho, sozinho, rompeu a gaiola ainda naquela madrugada, e se foi... livre para voar, sonhar, resistir e brigar contra a escravidão, deixando na senzala de Pierre , muitos irmãos de sangue e de cor e levando a marca da resistência no coração. Sentindo o gosto da liberdade, o africano parte em direção a um quilombo que vai ganhado força e visibilidade, primeiro, em Alagoas e depois por toda a América Latina. Quinzinho ruma para Palmares. 20 dias depois, numa madrugada, começa uma rebelião na senzala da Fazenda de Pierre. Um grupo de escravizados, avançam sobre a Fazenda, arrebentam as portas da senzala, libertam os encarcerados, ateiam fogo em todos os instrumentos de tortura, a começar pelo tronco, e findam pondo termo na casa grande. Pierre , para salvar a vida, foge, deixando tudo para trás. Logo na manhã seguinte, embarca para Lisboa. No peito sentia tristeza, medo e ódio pelo o amigo, pois tinha certeza que Quinzinho estava junto dos quilombolas que destruíram tudo o que era seu e que ainda tentaram contra a sua vida e contra a vida de todos de sua casa. Ingrato, és Tú, Quinzinho! Ingrato , és Tú! Pensava no coração, lembrando dos anos de amizade e de tudo o que viveram juntos. Pierre desembarcou em Lisboa e lá permaneceu por 30 anos. Fugindo da fúria e do ódio do amigo vingador. Ao retornar ao Brasil, no fim desse período, regressando a Alagoas tudo o que encontrou foram as cinzas de seu passado. A Fazenda abandonada, cheia de escombros e, por certo, de almas penadas. Não havia mais senzala, nem tronco e nem soberano. O pai de Pierre havia sido morto , supostamente, na rebelião liderada por Quinzinho e sua morte foi sentida por um grupo de escravagistas que atribuíram-na aos quilombolas de Palmares, o maior quilombo das Américas, destruído naquele ano, 1694. De Lisboa , Pierre, sabendo que Quinzinho tinha Palmares como destino, buscava sempre saber notícias do Quilombo, até tomar conhecimento do crescimento do mesmo e das investidas feitas pelos portugueses no sentido de destruir aquele que surgia como o maior refúgio de escravizados de todos os tempos e que resistia por força e por sangue. Os combates mais violentos contra Palmares se intensificaram em 1692, graças a presença sanguinária de Domingos Jorge Velho, no comando das tropas de Portugal. Quando Palmares caiu, Pierre se ergueu e regressou ao Brasil. Não sabia se Quinzinho esteve no massacre contra sua fazenda e não sabia se Quinzinho tinha tombado junto com Palmares, mas voltou e se deparou com as cinzas de seu passado, misturadas com os vestígios de um dos trechos mais amargos da História do Brasil, marcado, por um lado, pela resistência e luta africana contra a escravidão e todos seus defensores e, por outro lado, pela guerra contra a liberdade, pelo sangue dos Zumbis , de homens e mulheres africanos , aprisionados, oprimidos, perseguidos e destruídos com o respaldo da lei, em quanto lutavam a penas pelo direito de ser gente. Pierre já entendia tudo isso... de regresso a fazenda , encontrou o tronco queimado e lembrou dos castigos desumanos aos quais Quinzinho fora submetido e chorou, pois a visão de uma Fazenda destruída, já não lhe surgiam como marca de ingratidão e sim como símbolo de resistência, contra um regime brutal.

 

 

A SENHORA NO JARDIM

                                                       Jailson Klein

 Juliette cortou um galho seco da roseira e depois ajoelhou-se para cavoucar a terra próxima ao caule de outra planta. Era seu costume trabalhar com três ou quatro ferramentas no jardim. Podava, cortava, adubava a terra. Um ritual que praticava há muito tempo. O calor, naquela estação, castigava em demasia àquele horário da tarde. Ela acreditava que o sol lhe trazia muitas rugas e deixava seu cabelo mais branco do que seria esperado. Todos esses efeitos faziam-na parecer mais velha do que os seus 50 anos recém-completados. Pensou em algum provável benefício que a aparência jovem poderia lhe trazer. Não encontrou nenhum. O espaço cercado destinado ao jardim era compartilhado com uma horta. Uma pequena cerca delimitava e protegia aquela área dos animais. No jardim havia roseiras e pereiras luzentes; na horta, batatas e legumes que abasteciam a casa de Juliette e de familiares. Uma viela central entre o jardim e a horta levava até a entrada, fechada por uma cancela de ripas. Esse local, onde Juliette se encontrava, distava alguns poucos metros da casa. A velha casa de paredes de pedra e teto de ardósia. O mais charmoso daquela paisagem, além dos campos verdes, pequenas colinas e, mais distante, grandes montanhas com seus picos apontados para Deus, era a frondosa figueira que reinava a uns dez metros à frente da casa. Por todos os lados, todos os cantos, o verde da grama predominava, exceto no círculo que se formara embaixo, na mesma circunferência da figueira. Em tempos remotos, de tanto as pessoas trafegarem ou permanecerem por lá, beneficiando-se da grande sombra projetada, a grama não resistira e um tapete de terra batida um tanto quanto avermelhado tomara o seu lugar, porém, nos últimos tempos, a grama voltara a crescer naquela área. Havia apenas uma área sob a figueira, no lado oposto à casa, em que ainda se preservava a grama podada e flores arranjadas. Tal área, circundada de pequenos pedaços de madeira, outrora pintados de cal, mas já enegrecidos e parcialmente destruídos, abrigava uma antiga sepultura e um diminuto altar à cabeceira, que se destacavam pelo inusitado de suas presenças naquele lugar. Juliette se levantou, após concluir o serviço num canteiro, com seu vestido velho de jardinagem e avental azul marinho sujos de terra, e suas faces estavam no estágio máximo de ruborização e mechas de cabelos grisalhos se desprenderam do seu rabo de cabalo. Ela conservava seus longos e ondulados cabelos castanhos. Às vezes, fazia tranças, que escorriam pelos ombros e chegavam até a altura dos seios. Seu noivo costumava elogiar seus cabelos... e ela gostava de ouvi-lo; por essa razão, sentia-se feliz 1 Preenchendo, com singeleza, as ausências e lacunas deixadas, propositalmente pelo autor, no belíssimo e contido conto de Francis Jammes, “A Ausência”. 2 em mantê-los compridos... como se acreditasse que, um dia, Pierre ainda poderia vêlos novamente. No exato momento em que olhou para a cancela do jardim, a lembrança de uma situação muito antiga lhe veio à cabeça. Chegou inesperadamente. Uma imagem que já se tornara nebulosa, indefinida, surgiu-lhe com enorme nitidez. Lembrou-se de que há 30 anos, ali no jardim, seu noivo Pierre aparecera na cancela para uma despedida que a marcara profunda e dolorosamente por todos os dias desde então. Naquele dia, ela estava ali, no mesmo lugar de agora, esperando-o para um último adeus. Na espera para despedir-se, chorara e continuou chorando por muitos e muitos anos. Nessa época, ela era uma moça de apenas 20 anos, mas teve consciência de que o momento e a vida seriam difíceis e traumatizantes para ela. Mas o destino era inevitável e implacável. E, no passado, quando se virou para a cancela e viu Pierre parado, o coração da jovem Juliette foi como que trespassado por uma lâmina. Havia a dor da separação, havia o temor da suspeita e havia a angústia da dúvida. Aquele dia, há três décadas, tinha sido diferente para Juliette. Ela não dormira quase nada e uma angústia invadiu seu peito desde o momento que se levantou pela manhã. No presente dia, desde a manhã, ela sentira a mesma aflição que sentira quando Pierre a deixou. Juliette conhecera Pierre desde que nascera. Moravam no mesmo bonito vale de encostas verdejantes. Brincaram quando crianças; brigaram quando adolescentes e se apaixonaram quando jovens. Ela tinha pais, irmãos e irmãs. Ele era filho único e seu pai saíra pelo mundo, em busca de recursos para o sustento da família, e nunca mais voltara. O avô morrera muito tempo antes dele nascer. Foi há tanto tempo, tempos antigos, que o sepultaram sob a figueira, em frente à casa da família. Sua avó já fora sepultada no cemitério da vila. A mãe de Pierre não tinha parentes ali, ela era do norte da França. A propriedade da família de Pierre trouxera poucos lucros e muitos custos ao longo dos anos. Impostos e juros bancários se avolumaram e pressionaram Pierre, ano após ano, a seguir os passos do pai: sair à procura de recursos. Na época em que ele se decidiu por viajar numa aventura incerta e perigosa para os trópicos, sua mãe estava enferma, e ele era o único ente familiar vivo na casa para ampará-la. Mesmo assim, julgou, naquele momento, ser uma atitude improrrogável; e ele partiu. Ficou a noiva Juliette a cuidar da mãe doente do noivo e a esperar e torcer por um retorno feliz do amado. Juliette era dois anos mais velha que Pierre, mas parecia mais. Não somente pela aparência física — já era uma mulher formada —, mas pela maturidade que sempre demonstrara. Quando o namorico começou, ela tinha dezessete anos e ele apenas quinze. Foram três anos de amor, aventuras, risos e uma vida intensamente feliz. Noivaram e já começavam os planos para o casamento quando a situação 3 financeira de Pierre piorou de tal forma que, numa tarde chuvosa no celeiro, ele contara à noiva o plano da viagem. O mundo de Juliette desmoronou. A noite que antecedeu a partida de Pierre fora passada em claro pela noiva. Fora o sono que não veio, uma sensação de sufocamento, de peito cheio, se apossou de Juliette. Nos primeiros raios da manhã, ela se levantou para a lida na casa da mãe. Esse primeiro período do dia seria um momento de preparação para o que viria à tarde. Por volta das 14 horas, ela percorreu o caminho pelas encostas até a casa do noivo. Já fizera esse percurso um sem número de vezes na vida. Ao chegar, já fora direto para o quarto azul, onde se encontrava no leito a mãe enferma de Pierre. Ele estava sentado na beirada cama, segurando a mão dela, que chorava em soluços baixos. Juliette se postou próximo à porta, com as mãos cruzadas às costas. Nervosa, tentou desviar os olhos da cena triste que se passava naquele cômodo. Olhou para o velho retrato emoldurado do pai de Pierre, que tentava a todo custo se segurar, torto, à parede azul, pintada pelo noivo e por ela mesma meses antes. A mãe dele dizia que essa cor trazia alegria ao quarto. Na mesinha de cabeceira, um vaso com penas de pavão, presenteado pela mãe de Juliette em recente visita à doente. Enquanto visualizava a decoração do quarto, às vezes com o pensamento em outro lugar, Juliette ouvia o tic-tac do relógio de pêndulo. Levantou a cabeça para mais uma vez focar a imagem de Paulo e Virgínia estampada no mostrador do relógio. Uma rápida associação fez com que pensasse que ela, Juliette, tinha pouco de Virgínia. Nunca defendeu nem nunca foi tão casta quanto a personagem. Chegou um tempo em que abandonou a castidade sem a mínima culpa. Nem mesmo agora, na situação em que se encontrava e com a suspeita que insistia em se apossar do seu juízo, não sentia um pingo de remorso por nada... por nenhum momento. Mas uma dúvida, igualmente, a torturava desde cedo: “conto ou não conto a ele?” A mãe de Pierre lamuriava-se, sem que isso fizesse qualquer diferença, sobre a partida do filho: — Meu menino, igual ao seu pai! Vou perder você como perdi seu pai, para o mundo. — Eu voltarei, mãe. Eu prometo! — Talvez, mas não sei se estarei viva para recebê-lo. Oh meu Deus! Um país desses, tão distante... cheio de selvagens, doenças e animais ferozes... Ah, é tão perigoso, meu filho! — Mãe, eu não vou para guerrear com os índios nem para caçar onças. Vou trabalhar com cana-de-açúcar e borracha. Quem sabe eu não trago até um papagaio para a senhora! 4 — Meu menino, meu único filho, ouça um último pedido de sua mãe: volte para casa, para esta casa onde nasceu e cresceu. Se não for por mim, que estou velha e doente e não sei por quanto tempo ainda estarei aqui, que seja por essa moça de ouro, sua noiva. Ela é jovem e não pode perder sua juventude a esperar, como eu fiz. O gongo do relógio tilintou para marcar três horas da tarde. A última parte da conversa foi demais para Juliette. Ela saiu e foi para o jardim, chorar e tentar resistir até o final daquele dia. Não demorou muito e Pierre chegou à cancela do jardim. De onde estava, colhendo uma rosa, Juliette olhou para o noivo em pé, perto da entrada. Reparou em suas pernas curvas para fora. Ela costumava brincar com ele dizendo que tinha pernas de alicate, arqueadas, que pareciam parênteses. Ele só se justificava alegando que era uma característica do pai, conforme dizia sua mãe: “Iguaizinhas às do seu pai”. Olhando para o noivo parado, pensou em como ele era jovem ainda para se desgarrar pelo mundo. 18 anos apenas! — Eu voltarei, Juliette. — Sim, mas quando?! — Assim que for possível. — Não está sendo fácil para mim, Pierre. Além dessa sua viagem, ainda tem essa... — Tem o quê? Ela chorou e parou de falar. Ele se aproximou e abraçou-a. — Para mim também não é fácil. Deixar você aqui, minha mãe doente e sozinha..., mas não há alternativa, Juliette. Você sabe disso. Acomodada no abraço do noivo, ela cogitou contar a ele de sua suspeita, mas tinha receios de que sua desconfiança fosse infundada e não queria deixá-lo preocupado ou atrapalhar seus planos num momento desses. Desistiu. — Será que minha noiva estará aqui neste jardim, de que tanto gosta e cuida, quando eu voltar? Quem sabe, daqui a uns três ou quatro anos. — Sim, Pierre, eu estarei aqui. Esperando-o. A criança, para provar que a suspeita de Juliette não era infundada, nasceu tempos depois. Deu-lhe o nome de Francis. A princípio, os pais de Juliette ficaram arrasados com tamanha desonra para a família. Uma moça solteira carregando um filho era demais para a pequena vila de Bèarn e dos camponeses da região. O tempo de repúdio dos pais de Juliette durou pouco; o amor pela filha e, agora, pelo neto suplantaram imediatamente qualquer resquício de vergonha. A mãe de Pierre superou a convalescença, mas não a partida do filho. Tornouse triste e amargurada. A única alegria na vida era o neto. O menino brincava pela casa, debaixo da figueira, corria pelos campos e crescia... 5 Uma vez construiu uma carroça sendo puxada por um cavalo de madeira, cipós e gravetos. Presenteou a avó paterna. O objeto decorou a mesinha de cabeceira do quarto azul permanentemente. A avó repetia quase que diariamente para Juliette sobre Francis: — Tem as pernas do pai e do avô. Perninhas de alicate. Há, há, há! Juliette concordava. A velha senhora continuava: — Duas maldições nos homens dessa família, minha filha. Pernas arqueadas e sumir pelo mundo, deixando suas mulheres e filhos sempre a esperar. Juliette ainda esperava o noivo, e a cada semana, mês e ano que passavam esvaia-se junto um pouco de sua esperança. Conversava muito com a já idosa e doente mãe de Pierre e tentava lhe incutir esperança. Francis tinha sete anos quando sua avó paterna morreu. Nos seus últimos dias, numa última conversa com Juliette, a velha senhora falou: — Minha filha, quando Pierre voltar, diga-lhe que esperei até quando pude. Gostaria muito de ter visto meu filho mais uma vez, mas já não aguento mais. Estou tão cansada... Após a morte da mãe de Pierre, Juliette ficou com a responsabilidade de ficar com as chaves da casa, já que não havia nenhum parente na Região de Tolouse, ou em todo o sul da França. A família de Juliette e ela própria, sempre trabalhando na lavoura, conseguiram pagar os impostos e manter a propriedade de Pierre. Mas ela, devido aos esforços e tempo gastos na criação do filho e no trabalho, normalmente com um ou outro irmão, não tinha condições de ir com frequência à casa de Pierre, nem mesmo ao seu jardim. Passara a ir ao jardim somente uma vez por semana. A casa se deteriorava com o tempo e as intempéries. O jardim ela ainda conseguia conservar. Com o passar dos anos, os pais de Juliette faleceram. Ela ficou morando com o filho na casa que era dos pais. E ainda esperava por Pierre. Costumava contar histórias ao filho sobre o pai dele. De que tinha viajado para o Novo Mundo e que um dia voltaria para eles. Francis crescia... No ano que fez 18 anos, decidiu ir procurar o pai nas terras distantes. A mãe tentou de todas as formas dissuadi-lo da ideia, mas nada o convenceu. Muitas rugas e cabelos brancos foram acrescentados à cabeça de Juliette com essa viagem. Agora passaria a esperar pelo noivo e pelo filho. Uma vida a esperar, como dizia a velha senhora. 6 Francis demorou oito anos na viagem e voltou sem o pai. Percorrera o continente de cima a baixo e nenhum vestígio de um francês de meia-idade oriundo dos campos de Bèarn. Foi uma alegria e uma tristeza para Juliette: o filho voltara, mas voltara sem o pai. Em menos de dois anos, Francis se casara com uma linda moça das encostas das montanhas, depois do Vale do Riachão, e viera morar com a mãe na antiga casa dos avós. Já no primeiro ano, a esposa ficou grávida. Juliette seria avó. Foi uma grande felicidade na sua vida. Por complicações no parto, a esposa de Francis não poderia mais gerar filhos. Jammes seria mais um filho único naquela família. Juliette lembrou-se da quase sogra dizendo das maldições que afligiam a família. Ela só esquecera de acrescentar a maldição do nascimento exclusivo de meninos e, ainda por cima, filhos únicos. Não chegou nem aos dois anos de idade para as pernas do pequeno Jammes começarem a se curvar para fora. Se a bisavó paterna fosse viva, diria, com certeza: “Iguaizinhas às do pai, do avô e do bisavô. Perninhas de alicate”. E riria. Juliette dormira mal naquela noite. Uma aflição tomou conta do seu peito. Não entendia a razão. Meses antes, completara 30 anos que Pierre se fora. Após o almoço, brincou um pouco com o neto e foi se trocar para o compromisso semanal com o jardim. Suas rosas a aguardavam. Vestiu seu velho de jardinagem, amarrou o cabelo num rabo de cavalo e fez o percurso para a casa velha de Pierre pelo antigo caminho das colinas. Ao se aproximar da casa, ficou desolada com o abandono. Debaixo da figueira, muitos pratos quebrados, deixados por vagabundos ou andarilhos sem educação. Uma velha galinha de aspecto doentio se arrastava por ali em busca de alguma comida. Somente a sepultura do avô de Pierre mantinha uma aparência honrosa, graças a ela, que a arrumava constantemente. Como raramente entrava na casa, salvo há uns três meses para mostrar ao neto e deixá-lo brincar um pouco, Juliette resolveu dar uma olhada naquela tarde. O estado era deplorável. O teto desabara em alguns pontos; as paredes se descoloriram com o passar do tempo; havia marcas de infiltração. Triste. Foi ao antigo quarto azul, onde ficava o leito da mãe de Pierre. As paredes agora estavam brancas e encardidas. Mal dava para perceber que um dia foram azuis. Um círculo na parede, que sofrera menos a ação da luz, marcava o local onde antes estivera o retrato do pai do noivo, mas que num certo dia, atingido por um brinquedo do filho, caiu e se espatifou. Juliette juntara os pedaços e os guardara numa arca, que, depois de longa espera, se apossara do local pertencente ao velho relógio de pêndulo. A velha senhora também não estava ali. Ela repousava atualmente em outras paragens, num lugar alto e azul, da cor de seu antigo quarto. Em cima da mesinha de cabeceira, Juliette 7 observou que ainda a adornava a pequena carroça que seu filho fizera para a avó. Lembrou-se de que, quando entrou neste quarto, no dia que Pierre foi embora, havia ali, na mesinha da cama, um vaso com penas de pavão que sua mãe trouxera. “Que lembranças!”, pensou. E sua angústia aumentou. Saiu do quarto e da casa e trancou a porta. Aquela casa lhe trazia lembranças de tempos há muito idos. Já passava das quatro horas da tarde, quando abriu a cancela do jardim para cuidar de suas roseiras e pereiras. Enquanto olhava para a cancela do jardim e um turbilhão de lembranças dançavam em sua cabeça, Juliette se deu conta de que a esperança de Pierre voltar minguava a cada dia. Talvez uma brisa mais forte fosse suficiente para apagá-la de vez. Consultou a posição do sol, que se escondia na linha da cancela e acima das colinas ao fundo. Passou o dorso da mão pela testa, a fim de segurar uma gota de suor que descia em direção aos olhos. Ela colhia alguns narcisos quando ouviu um barulho distante de carruagem ou carroça. “Talvez alguém transitando lá embaixo, na estrada do vale”. Continuou em sua tarefa, quando ouviu novamente mais barulho para o lado da figueira. “Talvez aquela galinha doente bicando os cacos dos pratos.” E aí sentiu uma presença que a fez sentir um frio subir-lhe pela barriga. Olhou para o lado da cancela. O sol estava baixo e na mesma linha de seus olhos; ofuscaram-se com o brilho. Ela viu que havia alguém ali parado. Com a mão livre, cobriu os olhos na altura da testa para tentar enxergar melhor. Definiu que era um homem e que carregava um saco de viagem às costas. Um homem de meia-idade, de cabelos grisalhos e ralos na fronte. A barba, por fazer há muito tempo, também cedera espaço para um grupo de pelos brancos. E na sua investigação daquele desconhecido, que se escondia à frente do sol, ela baixou as vistas e reparou nas pernas do homem. A pazinha de jardinagem caiu de sua mão. Com o sol às costas dele, Juliette pode divisar perfeitamente, pela sombra, os arcos que as suas pernas faziam.

 

 

AUSÊNCIAS

Fritz Moura

 

 Acordei mais cedo que o normal, na mente e no peito aquela sensação de ausência, 30 anos distante de todos da minha família, na verdade, são 30 anos distante da Terra... Meus pensamentos são interrompidos por grito no meio do corredor. - Capitão Jean Pierre Zola! O senhor precisa tomar providencias em relação as atividades criminosas que estão ocorrendo em Miryvar 7. O senhor é a autoridade maior deste setor e sua nave é a mais poderosa da Frota. Não sei por qual motivo sempre que alguém vai te cobrara algo, ou brigar com você, ela começa a frase dizendo seu nome completo. E hoje era um dia em que eu estava de poucas palavras para estas provocações. - Embaixador Zefery, o senhor sabe muito bem que não tomo decisões autocráticas, sou um servidor da Frota Espacial, precisa levar suas queixas e reivindicações para o auto comando, onde os planos de ação são traçados. O senhor sabe disso. Peço-lhe licença, pois tenho muitos a fazeres. Pelo começo de minha ronda pela nave, tudo indica que este será um dia daqueles. Vou começar logo passando pelo Bar Panorâmico e tomar um Kanah, bater um papo com Gaia pode preparar meu espírito para o dia de hoje. - Bom dia! Gaia ... ponha uma dose de Kanah para mim. - Bom dia Capitão Zola! O Senhor está com um semblante muito taciturno, o que aconteceu? Pode me contar, lembra, eu sou da raça dos ouvintes. - Sim Gaia, você talvez seja a pessoa certa para o momento que estou vivendo... Como sabes venho da Terra, deixei lá um passado que hoje reacendeu em minha mente lembranças e um grande sentimento de ausência de meus familiares e amigos que deixei por lá. - De fato, Pierre, posso chamá-lo assim? No entanto, nunca soube como veio parar aqui. Conte me, deve ser uma história interessante, e quem sabe falando este sentimento que te consome, amenize. - Sim, era assim que meus pais me chamavam, Pierre, vivia no campo, em uma pequena vila de produtores de vinhos no sul da França. À noite, sempre muito estrelada, invadia minha imaginação adolescente, sonhava com mundos que giravam entorno das estrelas que via nas noites de céu claro. De certa forma, vivo nestes últimos 30 anos a realização de meus sonhos. Tenho vivido em uma nave espacial, viajando pelas estrelas, conheci inúmeros mundos e raças diferentes, me casei com Nerys e tive três belas crianças, tenho uma carreira próspera, comecei como Alferes e hoje sou Capitão da Safira, como dizem a maior e mais poderosa nave da Frota. O que me falta? - Sim, de fato, o que lhe falta? O que lhe angustia, meu Capitão? - Hoje, acordei com pensamento fixo nos acontecimentos, nas imagens e pessoas da época em que sai de minha casa... (uma parada para engolir um grande gole de Kanah) ... Sabe Gaia, apesar de viver no campo tive bom estudo, conhecia as estrelas, ou pelo menos o que os livros me traziam, assisti todos os filmes e seriados de ficção científica que chegava em nossa casa pela televisão ou internet. - Então o que te perturba? - Meu pai, ele não levava muita fé em mim, eu creio que me achava um sonhador, franzino, e quase nenhum jeito para lidar com a vida de agricultor. Apostei todas as minhas energias nos estudos para ver se conseguia ganhar o respeito dele, ganhar a vida como cientista e formar uma família. Minha mãe balançava a cabeça, durante as longas discussões que tinha com meu pai, e fazia uma prece rápida para Nossa Senhora arranjar uma boa mulher que me encaminhasse para a prosperidade, pois, para ela, só as mulheres têm o dom de endireitar e dar rumo a um homem. - Já gostei de sua mãe, com certeza era uma mulher sábia. Gaia não sabia, mas ela sempre me fazia sentir bem como minha mãe fazia, acho que ela era minha mãe substituta. - Continuando, ... quando completei 18 anos, meu pai forçou me uma atitude, disse em tom de ordem ... “Jean Pierre Zola, acabou a moleza por aqui, amanhã você pega as ferramentas e virá comigo para a linda na vinha!”... (Pierre põe a mão no rosto, ar de revolta e cansaço) ... Sem muita opção, com a intimação de meu pai, fui para a lida no campo, ... Acredite Gaia, é muito pior que ser Capitão, comandar centenas de pessoas e decidir sobre a vida de milhares, ... não aguentei dois meses. Tomei uma decisão que terminou me trazendo para cá. Disse para meu pai, naquela bela manhã de primavera... “Pai, vou embora, vou tentar meio de vida em Paris” ... - Com toda certeza seu pai não recebeu esta decisão muito bem, também o que esperava Pierre. - Certamente que não Gaia... Imediatamente ele gritou alto... “Enlouqueceu! Está pensando que a vida no mundo lá fora vai te dar trégua? Que será mais fácil que a lida no campo? Ou acredita que estes teus estudos e teus sonhos vão te levar para as estrelas com que tanto sonha? - Muito bem, este foi o momento traumático, mas necessário, quando cortou o cordão umbilical, todos um dia chegam a este momento. E o que respondeu para ele? Ou ficou calado, como faz aqui no comando da Nave. Já observei que quanto mais alto lhe falam, mais baixo você responde ... e até fica calado. Isto deixa os outros extremamente irritados. - Era jovem, não tinha esta maturidade ainda, calar é dar um tempo para que o outro analise a estupides de seu comportamento agressivo... Então respondi a ele, com voz tranquila, porém firme, “Meu pai, nada sei sobre o futuro, seja ele aqui, ou em Paris, ou nas estrelas. Sei sobre o passado que vivi aqui com o senhor e a mamãe, até hoje, e com certeza não quero repetir a sua vida, por isso, vou me embora! Está decidido”. Interrompe a fala, aquele nó na garganta, vem então as lágrimas, a muito não chorava... Gaia o conforta com um forte abraço... - Vamos respire, pode chorar, é a primeira vez que o vejo chorar, deve ser uma lembrança muito dolorosa para você, precisa pôr para fora todo este sentimento... - Minha mãe, no momento que ouviu esta conversa cai doente, acho que da cama nunca mais saiu, chorava enquanto eu arrumava meus poucos pertences para me atirar no mundo. Meu pai revoltado com a minha petulância, esbravejava... “Não lhe darei um centavo para esta aventura seu moleque desaforado!”. .... Longo silêncio, Gaia nada falou, eu apenas enxugo as lagrimas... - Não consegui encarar minha mãe ... meu pai, já estava acostumado, as discussões eram frequentes e a respeito de tudo, ele não aceitava que meus estudos haviam dado um conhecimento maior que o dele, pois para meu pai conhecimento é adquirido na vida, vivendo na prática, e não nos livros. Professor era apenas aquela pessoa que nunca acertou em nada na vida, então vai ensinar os filhos dos outros, principalmente, a questionar os pais. - Esta dor ninguém vai poder tirar, nem todas as garrafas de Kanah do meu estoque... - Mas o que mais me dói é que nunca disse adeus para eles. Pela manhã, acordei cedo, como hoje, peguei minha bagagem de mão e fui até a sala onde deixei o casaco, vesti, e ao levantar o olhar percebi que havia uma cesta com comida cuidadosamente preparada, certamente coisa de mãe, não contive o choro, as lagrimas caiam. É dela que mais sinto falta, sempre ao meu lado, mesmo quando apoiava meu pai nas discussões. Coloquei a mão nos bolsos do casaco e percebi um volume, era dinheiro colocado por meu pai, aquele velho orgulhoso e ranzinza, pensei. E sai sem fazer barulho. - O silêncio te acompanha... as vezes é bom gritar. - No caminho, à medida que a casa ficava longe, para trás, meu pensamento ia imprimindo em minha memória aquele lugar onde nasci, mesma imagem que está agora se repetindo em minha mente. O quarto azul de meus pais, no qual estava sobre a escrivaninha a velha máquina fotográfica de meu pai, a pena de pavão que usava para escrever e um relógio de pêndulo, com as imagens de meus irmãos Paulo e Virgínia, amenizava suas ausências. No pátio, sob a figueira, os túmulos de seus avôs, que repousavam ali. - Seus irmãos? O que aconteceu a eles? Ausentes? - Paulo entrou para as forças especiais do exército francês, vive uma vida secreta, na verdade já deve ter morrido a esta altura e nada sei a mais. Virgínia casou-se com um rapaz brasileiro, vivia por lá, era professora de francês nas escolas do Brasil, um país muito complicado, governado por populistas autoritários, sustenta uma elite de políticos e funcionários públicos como se nobres fossem, com milhões de pessoas na miséria e sem acesso as mínimas condições de vida. Ela vivia se equilibrando com seu marido para sustentar a família e tinha pouco, quase nenhum contato conosco. - E não abandonaste nenhum amor? As perdas do coração são feridas que dificilmente fecham. - Isto é uma verdade Gaia. Emile estava no jardim de sua casa, sentada entre as roseiras e as pereiras. Passei pela frente, parei, olhei nos seus olhos, mas ela não me pediu para ficar, e eu não pedi para que fosse comigo... Fazíamos planos de noivar, casar e ter muitos filhos... Não sei como o silêncio calou a minha boca naquele momento. A ausência dela só não dói mais que a de minha mãe... Qualquer dia deste terei que conversar com Nerys sobre isto. - Nerys é Nebasciana, tem histórico de amantes da liberdade e da tolerância, acho que vai receber bem as histórias de seu passado. Mas não deixe de ter esta conversa. Casais não devem ter segredos. - Na verdade Gaia, falando nisto agora me acende a memória que sabemos muito pouco sobre os nossos passados. Tudo que sei dela data da época que intervimos na tentativa de invasão de Nebascy pelos Sacaranos, ela estava entre os sobreviventes de um ataque e optou por permanecer na nossa nave... Quando se iniciou nosso romance. - Sim, Pierre, não fuja agora, quero saber como veio parar na Frota Espacial. A Terra é um planeta de pouco importância, me desculpe, fica na periferia da galáxia, com um sistema social, político e econômico extremamente primitivo. É uma surpresa que não tenha havido um processo de auto extinção. Como um Humano chega a Capitão? E dos mais prestigiados... - Cheguei em Paris e por 6 meses nada consegui de consistente. Vivia de auxílio do governo e pequenos trabalhos informais. Da varanda do meu pequeno cubículo via a Torre Eiffel, iluminada, era linda com a lua cheia sobre ela. Uma vez quase despenco da varanda admirando aquela paisagem. Um dia desci para comer em uma lanchonete enfrente, e chegando lá, tinha um homem estranho, parecia velho, oferecendo a oportunidade de trabalho para jovens aventureiros, ele dizia: “Venham meus jovens, venham, conhecer um mundo de escravas verdes que adoram ser escravas, de pessoas azuis astutas, outras de orelhas pontudas que pensam ser muito inteligentes... Venham conhecer mundos diferentes com seres exóticos e muitas aventuras... Você pode até morrer, mas vai viver o inimaginável antes”. Achei a proposta interessante (uma loucura pensando agora) na época, embarquei na nave daquele estranho sem saber o que seria de mim. - Mas quem era este maluco? Certamente não era da Frota. - Não mesmo, era da tripulação do famoso pirata espacial Tyr Pepy, claro que não sabia disto, nem fazia ideia do que isto significava. Foram 5 anos de sofrimento e muitas cicatrizes. Até que a nave dele foi abatida em combate e escapei em um modulo de fuga. Fui resgatado por uma nave da Frota. Alguns dias de convívio com aquelas pessoas tão diferentes entre si, mas que se tratavam com tanto respeito, foram suficientes para pedir, na verdade, implorar para entrar na Frota Espacial. E estou aqui até hoje, esta parte da história você conhece. A conversa é interrompida pelo sistema de som da nave chamando o Capitão para comparecer a ponte de comando, algo requeria sua atenção. - Até mais Gaia, minhas responsabilidades me chamam, obrigado pela conversa, foi muito bom falar sobre tudo isto. - A seu dispor, meu Capitão (pisca o olho com seu belo sorriso no rosto). Ao chegar na ponte de comando, fui surpreendido com a imagem da Terra... Eu estava em casa, mas não deveríamos estar nesta rota, como viemos para aqui, do outro lado da galáxia. Perguntei ao navegador. - Tenente Darco, como saímos tanto da rota traçada? O que está acontecendo? - Capitão Zola, tudo indica que entramos por acidente em uma dobra espacial que desestabilizou e nos jogou neste sistema solar na periferia da galáxia. O fato é que estamos perto de sua casa Capitão. - Sim, isto é um fato Tenente Darco. Outro fato é que não acredito em acidentes, tudo tem uma razão de ser. Vamos descobrir a razão pela qual estamos aqui. Coloque-nos em uma orbita estacionária no cinturão de asteroides, até que descubramos mais sobre o acontecido. Agora, preciso analisar todas as ameaças e oportunidades que este acontecimento nos oferece. A maioria das pessoas na Terra não acredita em vida extraterrestre inteligente e avançada, vêm como assunto de ficção cientifica, muitos intelectuais nem mesmo leva muito a séria este tipo de literatura. Os poucos que acreditam são vistos como malucos.... Decididamente a terra não está preparada para este tipo de contato agora. Além de ser um grande risco, pois a Terra tem sido ignorada pelos povos que habitam a galáxia até hoje porque não acreditam que haja vida inteligente na bola rochosa azul. E existem muitos povos que poderiam destruir a Terra com sua influência. Mas não posso perder a oportunidade de rever os meus entes queridos. - Nerys, meu amor, sabe o que está acontecendo? Temos a oportunidade de ver os meus entes queridos depois de 30 anos afastado, de conhecerem você e as crianças... - Sei sim, Pierre, sei que não poderá me levar, nem nossos filhos para conhecer os avós... Pense bem, como eles vão receber a realidade de que você se casou com uma garota cinza de cabelo prateado? - De fato, como sempre você está totalmente correta, vamos corrigir a rota e seguir nosso caminho. - Sim, vamos, mas antes, vá ver sua família ... E volte, nós precisamos de você. Peguei a nave auxiliar e voei para a Terra. Escondi a nave nos vinhedos da minha família e comecei a caminhar em direção à casa camponesa onde havia nascido. Passei pela casa de Emile, no jardim ainda havia as rosas e as pereiras reluzentes, e uma velha senhora sentada, não poderia ser Emile, 30 anos se passaram, ela deveria ter 48 anos de idade agora, e aquela senhora certamente tinha mais de 70 anos. Aproximei da senhora, cumprimentei-a ... - Bom dia senhora, por um acaso a Emile ainda mora por aqui? - Eu sou Emile, estou aqui esperando Pierre voltar... Sabe, ele foi a Paris, mas logo já volta... Então saiu da casa uma moça para ver o que estava acontecendo. - Pois não senhor, o que queres? - Desculpe me não queria incomodar, pensei que a senhora pudesse conhecer uma velha amiga que morava por estas bandas... - Ah! Dona Emile está sofrendo de demência, dificilmente poderia lhe dar uma informação precisa sobre qualquer coisa. Ela vive sonhando com seu antigo namorado que foi embora e nunca voltou. E eu, não sou daqui, cheguei a pouco tempo, conheço poucas pessoas da região. Disfarcei minha profunda tristeza e desconversei... Lembrei das aulas de física, passei 30 anos viajando a velocidade da luz, aqui na Terra passaram se 60 anos... pouco resta de minha história aqui... - Muito Obrigado, vou tentar aquela casa ali na frente. Continuei meu caminho já me preparando para o que ia encontrar em minha antiga casa. Minha mãe, certamente, já repousava no seio de Deus, junto com meu pai. No pátio, sob a figueira onde meus falecidos avôs repousavam, agora havia mais dois túmulos, os dos meus pais. Pareciam abandonados, alguns pratos quebrados e resto de velas. Uma pobre galinha doente ciscava pelo local. Entrei na casa e vi que o retrato de meu pai já não estava lá, a casa estava abandonada e os vinhedos cresciam sem cuidados. Tudo havia desaparecido como poeira, nenhum vestígio da família Zola, tradicionais produtores de vinhos. Só me restava voltar a nave auxiliar com minhas memórias, juntar a poeira de meu passado e espalhar tudo pelas estrelas. Chegando na nave Capitânia Safira, em silêncio, meus comandados reportavam o estado de todos os setores da nave... nada tinha a dizer, só balanço a cabeça e continuo em silêncio... até que quebrei o silêncio para dar a ordem... - Tenente Darco, tire-nos daqui, vamos voltar para nossa rota e missão original, imediatamente. Qualquer coisa estarei em minha cabine. - Sim senhor! Fui para cabine, para os braços de Nerys, e chorei as últimas lágrimas pelo meu passado.

 

 

 

PIERRE (UNE VERSION)

 

Irrequieta, a mente de Pierre vivia um frenesi. O tempo lhe havia sido mordaz, quase extemporâneo e desditoso quando sua principal companhia havia sido a solidão. Mas seria ela mesma uma companhia ou só mais uma sombra de solitude?

Jamais esquecera a progenitora. Esta, quando lúcida, nunca deixara de dizer o quão sofreu em seu parto. Ofegante e à beira de um passo exânime, padeceu as dores que só uma futura lactante podia definir. Seu parto normal, acompanhado da parteira Joana - uma senhora de cabelos grisalhos, com um tradicional lenço na cabeça e uma toalha nos ombros - lhe cumulavam de uma memória construtivista. Pierre não se lembrava de tudo aquilo, mas sua mãe lhe contara mais. Isso, há muitos anos:

- Já está vindo, comadre! Só um pouco mais de força. Você vai conseguir. Não vamos perder esse menino. Parece que é forte, sadio, bonito. Força! - enquanto, em seus braços, brunia à vida Pierre.

- Olha só, comadre, é um menino.

Os olhos cabisbaixos, exaustos da mãe ansiavam o sono. O progenitor, ansioso, correra para o quarto. Alarmada, Joana vociferava:

- É um menino!  - dizia a parteira.

- Sinto um aperto no peito. Temo pelo destino dessa criança. Não sei se viverá por muito tempo, ou se viver, não será conosco.

- Deixe de agouro, compadre! Não tá vendo que é um menino sadio, forte. Vai viver e é muito.

Os avós, álacres, chegaram para cumprimentar os filhos. E logo tratavam de perguntar o nome da criança. A mãe, embora combalida pelo parto, dissera:

- Vai se chamar Pierre. É um nome muito lindo. Desde criança sonhei em dar a meu filho este nome. Que ninguém seja contra.

O pai se calou; os avós emudeceram igualmente.

- Eu sempre senti que ele não nasceu para viver aqui entre nós. Deus o me concedeu por alguns anos. Ele viajará pelo mundo, fará diferença na vida de outras pessoas. Eu tive um sonho assim, e meus sonhos não costumam falhar - resmungara a mãe.

- Já os meus acontecem justamente o contrário, minha esposa - retrucara o marido.

- Você não sabe nem seu nome direito, vai entender de sonho? Faça-me o favor! Eu só quero que Pierre seja feliz.

Exaurida ainda do parto, adormeceu. À medida que as flores que ladeavam a velha casa de alvenaria cresciam, a mãe apresentava cada vez mais enferma. Com cefaleias constantes, queixava-se constantemente de dores sobre as quais não havia um diagnóstico.

 

Haviam transcorrido dezoito anos, e Pierre, como presumira a mãe, estava prestes a viajar daquele que havia sido seu lugar no mundo. Não soubera para onde ir, e, insensível, vira nos pais e nos avós trapos de vida que sequer punham-se de pé.

Seu coração, no entanto, não era atroz. Chamou à Helena, filha da finada Joana, sua parteira, para que cuidasse dos pais e dos avós em sua ausência. Havia conseguido uma oportunidade, remota à época, de viajar à França, seu grande sonho. O brilho dos seus olhos rutilavam quando vozeava aos quatro cantos da velha casa o nome do país que tem Paris como capital.

À Helena havia escrito uma carta de amor, que descerrava: "O amor é um sentimento inviolável. Incontrolável. É assim que fica o meu coração quando te vejo. Parece que nada mais faz sentido quando estou diante de ti. Meus olhos cessam. Não me importo se aspiro, respiro ou transpiro, só me inspiro ao te ver. Sua voz doce, suas mães suaves, seu carinho incomparável me fazem sentir o homem mais feliz do mundo, o mais completo, o mais realizado. Mas, por ora, tenho que partir. Quero oferecer-te tudo que você merece. Você ficará com a minha família e, tenha certeza, com a minha promessa de que voltarei para amar-te pelo resto da minha vida. Nós fomos feitos um para o outro. Melhor, eu fui feito, eternamente, pra você!"

Helena não conteve as lágrimas ao ler aqueles verbetes. Sabia que a partida e a ausência de Pierre eram duráveis, que outros amores poderiam exsurgir. Porém, eram palavras do seu noivo, e em seu pensamento bradava a voz: "preciso confiar nas palavras dele".

Osculando as testas dos pais, dos avós e da noiva, Pierre seguiu caminho. Seus corpos entrelaçados, porém, transgrediram um protocolo secular. Do porto de Santos seguiu no Atlântico até chegar aos rios Sena correndo para o Canal da Mancha, desembocando em Paris, Strasburgo e Marsellha. O único rio que lhe importara, no entanto, era o que corria e desaguava em seu desafortunado coração.

O barão Georges-Eugène Haussmann havia promovido mudanças significativas na terra dos perfumes no fim do século XIX. As vielas medievais passaram a ruas largas, mas nem tanto quanto os sentimentos de comprazimento de Pierre, que, vendo uma fotografia de Helena, pensara em algo que, à sua época, poderia ser tarde demais.

Pierre encontrara, ao longo dos dias que estivera em Paris, um único amigo que compartilhara de seu trabalho na reforma urbana de Paris, Rossi. Este, assim como ele, recebera o nome em homenagem à Itália, país que sua mãe sempre idolatrou por acreditar que sua descendência pertencia à Roma, fundada pelos gêmeos Rômulo e Remo.

- Eu ainda estou aprendendo francês. Você já o domina? - perguntara a Rossi.

- Que nada, meu amigo. Aqui vamos aprender juntos. Vejo uma tristeza em seu olhar. Você deixou alguém no Brasil? - interpelara.

- Sim, meu amigo, muitas pessoas. Minha família. Minha noiva. E, embora eu não seja materialista, meus objetos; minha terra. Não sou bairrista, mas não posso negar que amo meu país.

 

À essa altura, o Brasil ainda caminhava para a construção de uma identidade das múltiplas que o tempo construiu. Miscigenação, por exemplo, só veio a ser valorizada na década de 1930, à visão de sociólogos brasileiros, como Gilberto de Mello Freyre.

Il est temps de rentrer. Ma famille, je ne te reverrai peut-être même pas_. Trinta anos depois, chegara o momento de regressar, mas a expressão "maravilha", no francês "merveille", possivelmente não pudesse ser aglutinada à sua vida. Agora, Pierre estava no século XX. Com condições não muito favoráveis ainda financeiramente, nada pensou mais do que numa profunda e tétrica desilusão.

- Será que fiz o certo? Será que ainda me resta tempo? Será que sou jovem? Que tenho todo o tempo do mundo, como um dia poderia dizer um sonhador? - pensava em solidão.

Tudo havia se metamorfoseado. As estradas modificadas. As pessoas já não eram as mesmas. Pierre, desconcertado, talvez não encontrasse mais ninguém. Mas, antes que avistasse a figueira onde repousava seu avô, ficara levemente feliz.

- A figueira ainda vive. Se bem que geralmente elas sobrevivem a sessenta, oitenta anos. Quem sabe, não encontro pelo menos meus pais, minha noiva.

Caminhava em uma carroça, em direção à velha casa e à figueira, um rapaz de boa aparência, cujo nome era Pietro. Curioso, Pierre se aproximou:

- Rapaz, preciso saber sobre a família que vive nessa casa. Os moradores, e (tremendo a voz) uma _résident_, perdão, uma moradora. É que estou confundindo ainda o francês com o português - se atrapalhara.

- Résident? Vish, pois o senhor não é daqui mesmo não. Dessa casa aí, moço, só restam três pessoas. Quatro comigo.

- Você? - estranhou.

- Venha comigo. O senhor vai ser bem-vindo, mas num venha com frescura francesa, não, que aqui é tudo muito simples - indicando-lhe o caminho que já era conhecido a Pierre.

- Esta casa pertencia a Joaquim Silva e Maria Silva. Eles só tiveram uma filha, chamada Antônia Silva. Esta última era uma aventureira, pensava alto demais, sonhava demais. Teve um filho só que... (titubeando)... morreu.

- E como ele se chamava?

- Espere um pouco, vou chamar quem pode lhe explicar melhor.

Pietro entrou casa adentro, enquanto Pierre recordava, com lisura, todas as suas memórias mais profundas sobre aquele terreiro e aquela figueira. A galinha doente do avô e os pratos quebrados já não estavam lá, mas o aroma da terra ainda o faziam reviver um sentimento saudosista.

- Mãe, eu quero descobrir o mundo. Eu quero viajar. Para de tentar me impedir - reclamava Inocêncio.

- Você não vai a lugar nenhum. Você já deve saber do exemplo do seu avô, que se foi e nunca mais voltou.

Abrindo, vagarosamente, a portinhola da velha casa, Pierre não hesitou em reconhecer:

 

- Helena?

- Pierre?

- Meu amor, me perdoa!

- Eu, escondida, observei tudo enquanto você chegava e conversava com ele, o Pietro, o... nosso filho!

- Filho?

- Sim, nosso filho, e este, Inocêncio, é nosso neto. O tempo passa, Pierre, mas o amor não. Eu nunca te esqueci. Nunca encontrei outro alguém como você.

Pierre se ajoelhara diante de Helena para lhe pedir perdão, enquanto ela, sábia de como estava procedendo, replicava:

- Seus avós, seus pais se foram. Eu não, eu continuo no balanço. Ali está a sepultura dos quatro. Mas o nosso amor, Pierre, não tem sepultura. Ele é vitalício. Eu te amo! As palavras da carta continuam valendo?

- Sem nenhuma dúvida! ( _Sans aucun doute_ ) (Risos).

- Pois, então, só nos resta um beijoo. E deixo dito: não me deixe nunca mais! Porque daqui a trinta anos, não tenho dúvidas de que minhas carnes estarão na frialdade inorgânica da terra.

 

 

 

 

 

 

                          CARTA 

                                    Deolinda Marques 

 

Umbuzeiro, 07 de maio de 1970.

 

Querido amigo Pierre,

 

Como prometi dar notícias logo que chegasse aqui, estou escrevendo esta carta muito mais pela necessidade de desabafar meu coração do que propriamente contar novidades do retorno à minha terra.

Não sei se fiz bem, depois de 30 anos, tentar reconstituir um passado que ficou nas minhas lembranças, todo esse tempo. A sensação que senti, ao retornar ao meu querido Umbuzeiro, é algo indescritível e muito dolorido.

A nossa velha casa, totalmente em ruínas, só me trouxe recordações de um passado que se foi. Como numa cena de filme, lembrei minha pobre mãe chorando e me recomendando a todos os santos da sua devoção, para que eu não fosse devorado pelas feras nem pegasse aquela doença terrível que chamavam sezão. Eu também chorava, mas não podia desistir dos meus sonhos. Precisava conhecer a terra da Borracha, mas com o firme propósito de voltar para casar com Socorrinha.

Hoje, o que pude encontrar foi uma velha cruz, gasta pelo tempo, numa sepultura ao lado onde, supostamente, era a do meu pai. Das outras, nada restava. Apenas o velho Juazeiro e o cinquentenário Jasmim branco resistiam ao tempo naquele espaço de terra-santa que também consumira os corpos dos meus avós e de tantos anjinhos ali enterrados.

Fui andando lentamente pelos escombros da antiga casa, tentando encontrar o quarto onde minha querida mãezinha me abençoara pela última vez. Nada mais restava. A banquinha de madeira, onde sempre colocava seu cachimbo e a lamparina... o empoeirado jarro de flores de papel crepom... a fotografia de meu Padim Padre Cícero com seu cajado na mão... onde foram parar?

Como num sonho, cheguei ao frondoso pé de Tamarina, que também resistira ao tempo como testemunha do nosso amor. Socorrinha, aquela jovem bonita com quem trocava olhares ingênuos e leves toques de mãos, e a quem prometi voltar pra casar e ser felizes para sempre, também se derramava em prantos. Naquele momento, uma senhora marcada pelas rugas dos anos, como um fantasma, caminha ao meu encontro e fala rancorosamente:

– Você me enganou! Te esperei tantos anos em vão!

Já não tinha mais nada daquela morena viçosa que preenchia meus sonhos e desejos. Confundia-se com a imagem da minha mãe que se desmanchava em prantos num soluço profundo e sofrido.

Pierre, amigo, por tudo isso, talvez volte à terra dos seringais e das castanheiras... Dessa vez, não mais com o sonho de enriquecer com o ouro branco, mas com intuito de defender o que resta das nossas florestas tão castigadas e destruídas pela própria ganância dos homens.

Um abraço... quem sabe, até breve.

Seu amigo:Jeremias de Sousa

                                                            RETORNANDO

                                                                                                                                     Nilvon Batista Brito

“Metade roubada ao mar, metade imaginação”. Desde às  dezessete horas, quando ouviu o Marujo gritar “  terra à vista!”, Pierre  internalizava o verso e, já à noite,  andando pelas ruas estreitas, repletas de mascates e de  pequenos comerciantes,  quase todos oriundos de Portugal e enriquecidos com os lucros , cada vez maiores , conseguidos na efervescência da atividade mercantil  que se criara em torno do Porto, decidira que ali não ficaria. A vila era linda com seus casarões e pontes herdadas dos holandeses, recém-  expulsos do Nordeste, deixaram ali seus sonhos, sua imaginação e  partiram para novas conquistas. Quanto mais andava mais os versos faziam sentido. Recife respirava arte.

Esse foi o cenário que Pierre encontrou no seu retorno ao Brasil.  Recife parecia o lugar perfeito para desenvolver e recomeçar a sua vida. No entanto, o comércio não era o seu objetivo, desde que perdera todo o ouro e diamante nas Minas Gerais ,por conta de um negócio mal sucedido, criara ojeriza ao comércio.

         O Retorno a Portugal fora a saída naquele momento, lembrou-se dos versos de Pessoa “navegar  é preciso”. Mesmo fracassado,  o destino era retornar para casa. Depois de 30 anos de Brasil, trabalhou muito, adquiriu fortuna e, ao final, retornar como um simples marujo não era o desfecho, nem nos  seus piores pesadelos.  Como se fosse pouca a tragédia vivida no Brasil, Pierre encontrou a antiga propriedade da família em Portugal, em ruínas, nem o daguerreótipo do seu pai salvou- se. As paredes rachadas com marcas de água escorrendo, e os poucos móveis que restaram estavam destroçados. Se não fosse pela senhora que repousava à sombra de um luzente pereiro , ele não teria ficado ciente do que se passara naqueles longos anos.

         Todas essas histórias passavam- se na sua memória naquele momento de dor. De onde estava,  podia contemplar o pôr do sol alaranjado, lembrou-se do dia em  que retornou ao Brasil e tivera que rezar dez Pai - Nossos e dez Ave - Marias como condição para desembarcar  em solo brasileiro. Agora fazia o mesmo, não mais por obrigação, mas por gratidão à sua amada que velara em sua ausência o paradeiro dos seus entes queridos, como também lhe fora  fiel, e o aguardou durante todo esse tempo.  Naquele pequeno cemitério, às margens do Riachão, onde prosperou criando gado e foi feliz com sua amada, mesmo que por pouco tempo, sepultava  entre um flamboyant e um ipê rosado a sua fiel companheira e chegara à  conclusão: estamos sempre retornando de alguma forma.

 

   ENCONTROS E DESENCONTROS NA RIO - BAHIA

                                                                                                            

Nilvon Batista Brito

 

Hoje, como em todos os dias, abri o portão da lanchonete às 7 horas da manhã. Os olhos ainda inchados e coçando, com a sensação de ter passado por um vendaval. Dormi muito pouco na noite anterior; sempre que Marta falta tenho que cobrir o turno da noite. Quando cheguei em casa, já passava da meia-noite e só fui dormir lá pelas duas da madruga, depois de fazer todo o serviço da casa. Às 6 da manhã, já estava de pé para deixar café pronto para Juvêncio. Era uma rotina muito pesada, mas desde que fui acolhida por Juvêncio, fazia de tudo para lhe agradar.

Deixei a casa de meus pais ainda de menor, quando meu pai descobriu que eu estava perdida. Ele não aceitava que uma filha sua estivesse grávida solteira, afinal, nem namorado eu tinha. Foi apenas uma aventura naquele forró. Foi uma noite terrível. Percorri a pé a estrada que ligava a pequena cidade à BR, só com a roupa do corpo e outra na sacola que minha mãe me deu escondida dele. A minha sorte foi que, ao chegar à BR, consegui uma carona com um caminhoneiro. Após alguns dias viajando e servindo o motorista de tudo, fui deixada neste posto de gasolina, aqui em Vitória da Conquista. Novamente a sorte, ou coincidência, se é que ela existe, me fez deparar com   um homem dormindo na calçada da lanchonete, provavelmente bêbado. Sentei-me ao lado dele com a minha sacolinha, chorando muito, até que o homem acordou e perguntou de onde eu vinha.

— Venho de muito distante, mas o problema não é de onde venho, mas para onde vou.

O bêbado disse que tinha uma casinha ali próximo, que habitava já há muitos anos, desde quando chegara ali vindo de Pernambuco, fugindo também, assim como eu. Contudo, Juvêncio, não fora expulso de casa, havia fugido. Não suportou a traição de sua esposa. Em um dia de infortúnio, Juvêncio voltando da roça, desconfiou que Carolina não estava só. As crianças estavam na escola. Entrou sem ser percebido e, ao testemunhar a cena de traição, saiu da mesma forma, em silêncio, caminhando sem destino, pegando carona, passando fome e frio, até chegar ao posto Jequié, onde encontrou um casebre abandonado ao lado. Passou a viver ali, bebendo e comendo das sobras dos viajantes. 

         Juvêncio me acolheu,  me convidou para dormir em sua casa e eu fui ficando até surgir uma vaga de faxineira na lanchonete. Após algum tempo trabalhando na limpeza, o gerente me deu o emprego de garçonete. Juvêncio me acompanha todos os dias e fica sentado esperando até que alguém lhe pague uma bebida, pode ser qualquer uma, o importante é manter-se embriagado como forma de aliviar sua dor.

 Essa é minha rotina. O entre e sai de clientes de todo o Brasil na lanchonete do posto Jequié também é rotineiro; no entanto, hoje foi um dia diferente. Dois clientes me tiraram da monotonia do serviço e me levaram para uma viagem distante.

Aproximadamente às 11 horas da manhã, parou um carro em frente à  lanchonete e, quando a porta se abriu, tomei o maior susto da minha vida, depois daquele  quando comecei a entojar. Não podia acreditar, o moço que saiu do carro, de óculos escuros e camisa de um time de futebol que eu não conhecia, era o ator global Guilherme Fontes! Trabalho aqui há muitos anos, já atendi pessoas de todo seguimento, mas nunca um ator. Minhas pernas ficaram bambas, meu coração palpitando e o corpo gelado.  Não perdi nenhuma novela dele desde que estreou na minissérie Desejo. Achei muito estranho o seu companheiro de viagem,  era o Bussunda do Casseta e Planeta.  O que faziam Guilheme Fontes  e Bussunda por essas bandas? Será se estavam fazendo algum filme aqui por perto?

Os dois entraram, e quanto mais se aproximavam mais eu ficava nervosa. Não consegui nem dar bom dia. Até que o Guilherme, após um breve olhar no freezer, fez seu pedido:

— Uma malzebier, por favor.

       — Uma pra mim também — falou Juvêncio, que passava o dia todo naquele cantinho da lanchonete à espera de um cliente que pagasse alguma bebida pra ele.

Foi aí que percebi o meu engano. Não poderia ser o ator, o sotaque era nordestino e de perto não tinha pose de ator, era muito magro, boca murcha e uma dicção não muito boa. E Guilherme Fontes jamais andaria num Corsa velho daquele.

— Pra mim uma cajuína. Não gosto de tomar cerveja quando estou dirigindo —falou o seu companheiro, que tinha sotaque paulista, e aí, de perto, vi que apenas se assemelhava com o Bussunda. 

Já um pouco recuperada do susto, me dirigi para o moço de sotaque nordestino e perguntei:

— O senhor é de que parte do Nordeste? 

— Sou de uma pequena cidade chamada André Ramos do Piauí.

Não poderia ser, naquele instante meu mundo parou, uma gota de suor desceu na espinha e um arrepiou tomou conta do meu corpo. Desde aquela maldita noite em que fui expulsa de casa, não ouvia falar de minha cidade. Aquele moço que parecia Guilherme Fontes era meu conterrâneo. Perguntaria para ele se conhecia seu Antão? Mandaria dizer pra minha mãe que eu tinha perdido a criança? Que eu estava viva?

— Jandira, Jandira! — gritava Juvêncio tentando me tirar do transe. — O moço deixou essa nota de 100 reais para pagar a conta e o troco para você. 

 

 

 

O QUE FICA

(Iara Marina)

Sossegado despertei dessa vez

fitado pela velha senhora

mesma figura que em outrora

aflorou-me a palidez.

Hoje me é companheira

e dona de grande parte

das rosas, pereiras

e figueiras

doces frutos da saudade.

A velha de olhar impávido

e pálida tez

tinge de cinza o azul do quarto

uma parede por vez. 

Da moldura do retrato

às penas dentro do vaso 

fez para si uma arte

mas o semblante de minha mãe

pelo sol desenhado no quadro

este não lhes fará parte

mesmo com sua insistência

velha senhora

que a história não tomou nota

eu a ti chamo de

Ausência.

 

 

                                            Meu lugar de paz              

                                                                     Honorato Lima       

Pierri saiu muito cedo da vivência com os primos e avós, para buscar uma educação melhor.

Ao voltar ao local que mais lhe trazia paz, não encontrou a mesma realidade e a tranqüilidade do passado. Ao abrir a porteira que dava acesso a um "grande terreiro”, através do qual se chegava ao "local de paz”, ali não existia mais o belo curral feito de angico, nem os berros dos bezerros, e o soar dos chocalhos  já não se ouvia.

  Atônito, Pierri dirigiu- se ao pé de ata que ficava ao lado da porteira, o qual encontrava- se sem vida. Em vão procurou o umbuzeiro, esse também já havia morrido e a pintobeira estava lutando para sobreviver.

  Do “aviamento” restava muito pouco: o cheiro do beiju de forno já não se sentia, nem mesmo o forno estava mais lá, só restaram à velha prensa, o jirau e a gamela de lavar goma. Nem mesmo a grande cisterna, que mais parecia uma piscina, não estava intacta.

   Ah, que maravilha que o velho barreiro estava lá! Entretanto, não havia aquele suave som dos “raspa- cuias. Foi muito doloroso para Pierri tudo isso, mas nem se igualava a tamanha  dor  de não ver aquela senhorinha amorosa ,  carinhosa e caridosa  sentada na cadeira de balanço , com as mãos sobre o olho  esquerdo , tampado para evitar a luz do sol em sua visão  delibitada,  à espera do jovem para lhe  abençoar.                                                                                         

   Muitas lembranças vieram- lhe à tona, as lágrimas escorriam- lhe pelo rosto como cachoeiras  incessantes.  A dor e a saudade cravavam - lhe o peito, como espinhos pontiagudos. Subitamente, Pierri respirou fundo, tentou recompor- se e exclamou: “quanta saudade eu sinto de ti, meu lugar de paz!"

                    

VALEU A PENA ESPERAR

                                                                                         Firmina Arrais

 

    Já havia muitos anos que Gregório vagava por terras estranhas; percorria sempre os mesmos caminhos; batia sempre nas mesmas portas; atendia sempre as mesmas freguesas.  

    Em toda casa que o homem chegava, era bem recebido, pois já o conheciam de muitos janeiros. Sentindo-se a vontade, Gregório logo adentrava à residência e espalhava sobre a mesa o ouro e a Michelin, e falava animado: 

    Vamos fazer uma comprinha, freguesas! Trouxe novidades. 

    As freguesas, mesmo pechinchando,terminavam fazendo uma boa compra, e ele, satisfeito, deixava a casa. Ora, tudo que ele queria era juntar um bom dinheiro para retornar à sua terra, rever seus velhos pais e casar-se com Amélia, que lá ficara à sua espera. 

     Após vender sua mercadoria Gregório analisava seus lucros, via que era pouco, mesmo assim, decidia voltar, não suportaria por muito tempo longe dos pais e da amada. E, a alegria do reencontro era imensa, mas o moço não podia ficar por mais tempo, pois via com tristeza que o dinheiro se acabava rapidamente. Não era ainda desta vez, que ele concretizaria seu sonho.

      Não tendo outra opção o rapaz decidia fazer nova viagem. Desta vez, quem sabe, poderia apurar o valor que precisava para viver com mais dignidade, juntamente aos seus. Isso entristecia os pais e deixava a namorada em desatino. Mesmo assim, ele viajava em busca dos seus objetivos. 

      Muitos anos se passaram, e Gregário sempre na peleja, e seus planos sempre fracassando. Mas o rapaz não se conformava com a vida regrada que levava junto aos pais. Não, não era isso que queria para sua Amélia. E assim, foram muitas idas e vindas, e Gregório sempre em busca dos seus ideais.

       O tempo se passava, o moço envelhecia, e sua condição financeira era sempre a mesma. Gregório desesperou-se de vez, e resolveu desistir dos seus planos. Pra que remar contra a maré a vida inteira? Pensou ele: É melhor ver Amélia casada com outro, do que vê-la ao meu lado, passando necessidade, junto aos nossos filhos, que um dia haveríamos de ter, ainda que esta decisão lhe cause desgosto e dilacere meu coração para sempre.  E, assim o fez: Do Mato Grosso migrou para outros estados e trabalhou anos a fim. Não escreveu mais aos seus, e estes, não tendo seu endereço, ficaram muitos anos sem notícias suas. 

        Com a difícil decisão que tomara Gregório meteu a cara no trabalho, para ele não havia domingo nem feriado, assim, não tinha tempo para chorar sua triste sorte. O tempo corria, e o homem na sua luta incansável, só se deu conta de que havia se passado muitos anos, quando suas forças começaram a faltar. Aí sim. Viu que era hora de parar.

        Decidido daquele dia em diante, aproveitar os dias que lhe restavam, o homem fez um balanço nas suas economias e viu que havia juntado uma pequena fortuna. Gregório poderia estar contente, a final fora para isso que largou tudo e todos; mas estava muito triste, pois se conscientizara de que não era mais um jovem, e sim um senhor.

       Caindo em si, o homem se encheu de remorsos, e arrependeu-se de ter sido tão egoísta, deixando os seus velhos pais e a amada sem notícias suas por tanto tempo. Então juntou tudo que possuía voltou para sua terra imediatamente.

        Logo que entrou na sua terra, foi lançando o olhar para todos os lados, e a saudade apertando o peito. Encontraria sua gente ainda com vida?   Ele se perguntava a cada instante. De longe avistou sua casinha: a frente caiada, a cal estava mais para um cinza amarelado do que pra branco; encostada na porta, uma velhinha com os olhos fixos no caminho, sempre na espera. O carro parou, ele desceu e correu para os braços de sua mãe, beijou a, chamou por mamãe; inútil, o Alzheimer não lhe deixava reconhecer o filho.

         Desesperado Gregório largou a, e sentou-se numa velha cadeira, baixou a cabeça, colocando a entre as mãos, e assim ficou por alguns instantes. Pouco depois, já refeito do susto, olhou em volta e não viu mais nada. Cadê o pai, que ele deixara na rede, se recuperando da tuberculose, e a galinha amarela, deitada sobre a ninhada de ovos, no canto da sala? Olhou para as paredes: a cela, os alforjes e o gibão de couro, ainda dependurados.

          Depois de um bom tempo tentando em vão conversar com a mãe, apareceu-lhe um moço e perguntou-lhe:

           Quem é o senhor, e o que deseja? 

            Gregório contou-lhe sua história: queria saber do pai e de Amélia. O moço respondeu-lhe:

             - Seu pai morreu há mais de dez anos, Amélia casou-se com Joaquim, meu pai, e moramos ali.  

              E o rapaz apontou para uma pequena tapera. Imediatamente Gregório correu para lá. Chamou na porta: 

              -Ô de casa!  

              Amélia apareceu, como sempre muito bela, apesar da idade e dos maus tratos. Ele desejou abraçá-la e beijá-la, mas se conteve. Ela por sua vez foi logo despejando sua ira: 

               -Ingrato! Agora é que você vem aparecer? Pois não deveria nem ter vindo. E deu-lhe as costas. 

                Daí por diante os dias que se seguiram foram de angustias para os dois: Gregório, porque via sua amada levando uma vida regrada com a família; Amélia porque continuava amando seu antigo namorado, em silêncio, pois não podia deixar o pai de seus filhos. Mas a sorte não foi de todo tão ingrata com eles; mais tarde Joaquim veio a falecer. Então eles se uniram e viveram o resto das suas vidas felizes para sempre; pois compreenderam que tudo tem seu tempo; e deveriam aproveitar o pouco que lhes restou. Assim, valeu a pena esperar.

 

                                                          Canafístula em flor

                                                                                Raimunda Leonília

A casa de adobe ladeada por alpendres, em sua frente, uma frondosa canafístula em flor abrigava besouros, lagartas, borboletas e beija-flores. Embaixo da árvore, o chão era revestido por um tapete de pétalas amarelas. Na lateral da casa, o mugir do gado e o berro dos cabritos prenunciavam a chegada da noite, a qual seria a mais longa nos 18 anos de vida de João Pedro. É que no dia seguinte, ele partiria para Brasília em busca de melhores condições de vida.

   Desde a morte do pai de João Pedro, a vida dele e a de sua mãe, Laura, não fora fácil: a estiagem e a falta de assistência dos órgãos governamentais dizimaram parte do rebanho e parte de suas lavouras. Assim, o jovem rapaz não via outra alternativa senão aventurar-se por outras terras. Para diminuir o trabalho de sua mãe, bem como para custear as despesas até que se estabilizasse, decidira vender algumas” cabeças de gado” antes que a fome, ocasionada pela terrível seca, as matasse.

   O jovem João Pedro, desde a mais tenra idade, nutria um profundo sentimento por Luísa e esta, também, correspondia em igual proporção. Era um misto de amizade, de paixão e de amor, esse benquerer cantado pelos poetas, celebrado e irradiado pela nostálgica luz da lua.

À época, João Pedro tinha 18 anos: era alto, franzino, olhos azuis, branco que nem parecia morar e trabalhar sob aquele sol tão quente e escaldante do semiárido nordestino. Por outro lado, Luísa contava com 17 anos: tinha estatura mediana, era esbelta, corpo de violão, pernas e coxas torneadas, morena cor de jambo, olhos verdes como duas esmeraldas, cabelos castanho-claros e levemente cacheados. Enfim, era a morena mais bela e mais cobiçada daquele árido sertão.

   Voltemos agora, estimado leitor, à noite que antecedera a viagem de João Pedro. As Plêiades haviam se escondido, a lua era nova, sua mãe escolhera essa fase porque, segundo os mais velhos, “era propícia para iniciar um novo projeto, um novo ciclo.” Os enamorados ficaram juntos por mais tempo do que o habitual. Então o pai de Luísa, sentindo a falta dela, ordenara que sua esposa fosse buscá-la, para que sua filha não ficasse “malfalada.”

   Desse modo, antes que a mãe da jovem chegasse à casa de João Pedro, os jovens fizeram um ritual de juras de amor:

   - Promete que não me troca por outra” sirigaita?”

   - Jamais! Você é o sol dos meus dias, amor meu.

   - Promete que volta logo para nos casar, meu amado?

   - Sim. Ficarei em Brasília só o tempo de arrumar uma condição melhor para nos casar. Pretendo ter filhos e quero que eles tenham um futuro promissor: estudem e se formem. E você promete que me espera?

   - Ora, que pergunta mais boba! É claro que espero. Você é, e será para sempre o único amor da minha vida.

- Adeus, meu amor!                                                                                                                       

   Quentes e calorosos beijos e abraços silenciaram suas vozes. Nesse momento, o vento assobiou, uma leve brisa tocou no rosto dos enamorados e, como “o rio que desce a encosta”, lágrimas rolaram sobre as suas faces. Essa noite fora a mais longa da vida do casal, nenhum dos dois conseguiu “pregar os olhos”.

O canto da sabiá, naquela quente madrugada de outubro de 1963, não tinha o mesmo encanto, nem a mesma melodia de outrora. Uma profunda melancolia invadira a alma de João Pedro. Separar-se de sua mãe e da flor mais bela do sertão, era doloroso demais para ele.

Subitamente, João Pedro levantou-se: tirou o leite das vacas, amamentou os cabritos órfãos, tomou banho, colocou sua melhor roupa, em seguida, percorreu a parte externa e interna da casa. Contemplou a canafístula de flores amarelas, a calçada na qual se sentava com sua doce Luísa, nas noites enluaradas, a sala onde estavam um vaso com penas de pavão e um relógio com as imagens dos personagens franceses, Paulo e Virgínia. O relógio fora um presente de um parente que morava na França. Dirigiu-se ao quarto de sua mãe, cujo piso era feito com ladrilhos, em que tinha um oratório com várias imagens, entre elas: a de São Sebastião, a de São José e a de Nossa Senhora da Conceição; ajoelhou-se e rezou. Voltou pela sala e, novamente, fixou o olhar para o relógio. Eram 8 horas da manhã e os animais já estavam selados em frente à sua casa para conduzi-lo à cidade mais próxima, e de lá pegaria outras conduções até a capital do Brasil. Sua mãe aproximou-se dele aos prantos:

  - Meu filho, tenha muito cuidado! Alimente-se bem, não beba, não fuma e nem se envolva com más companhias. Outra coisa, respeite Luísa! Ela é uma bela moça, é trabalhadora e fiel a você, além do mais, é filha de vizinhos e amigos muito importantes.

   - Eu sei, mãe!  E a senhora cuide-se, também, e preste atenção em Luísa!

   - Tá bom, meu filho! Vou mandando essa carta de recomendação para seus tios, a fim de que cuidem bem de você.

   - Benção, minha mãe!

   - Deus te abençoe, meu filho!  

   Além do cavalo que ia conduzir João Pedro, havia um outro animal com uma carga de alimentos para viagem dele, bem como alguns produtos regionais para os parentes do viajante: carne de bode seca, requeijão, doce de buriti, rapadura, paçoca de carne seca, grade, pão de ló, entre outras delícias.

   O jovem rapaz montou no cavalo e sua mãe o acompanhou rezando: “Deus vos salve a hora/ que tu sais de porta afora/ Deus vos acompanhe/ e a Virgem Nossa Senhora!”

   Ao chegar em Brasília, João Pedro fora bem acolhido pelos parentes. Tudo lhe fascinara naquele lugar: desde o projeto arquitetônico da cidade, até as oportunidades que lhe foram proporcionadas por seu tio e padrinho de batismo. E como o jovem pensava grande, meteu a cara no trabalho e nos estudos. Cursou o Ensino Fundamental, o Médio e, por fim, a Faculdade de Direito. Ingressou na profissão, e foi galgando mais e mais degraus na carreira que escolheu não só por necessidade, mas, também, por vocação.

   Durante esse tempo, o moço jamais esquecera as mulheres de sua vida: sua mãe, Laura, e a doce Luísa. Contudo, “a vida tem razões que a própria razão desconhece.”

   No ano de 1993, decorridos 30 anos da jornada de João Pedro à Brasília, ele resolve retornar ao seu torrão natal. Agora, a viagem fora diferente da inicial, pelo menos do ponto de vista do conforto, haja vista o desenvolvimento do país, bem como a sua ascensão social. Do volante do carro, contemplava o verde das paisagens de algumas regiões, já que soubera que, mais uma vez, o Piauí e muitos estados do Nordeste estavam passando por uma terrível seca.

   Durante toda a viagem, um turbilhão de pensamentos e de emoções invadiram todo o seu ser. Como estaria sua mãe? E o seu torrão natal? E a bela Luísa, será que lhe perdoaria por tamanha ingratidão?

   Finalmente, João Pedro chega ao interior do Piauí e percebera que algumas coisas mudaram: rodovias asfaltadas, bem como meios de convivência do homem e da mulher do campo no semiárido, entre eles, a construção de cisternas e de açudes. Soubera também que, apesar disso, a desigualdade social no sertão nordestino ainda perdurava.

   O advogado estacionou o carro em frente à sua antiga casa, onde ficara a bela canafístula em flor com o seu tapete de flores amarelas. Oh, desolação! No lugar dela, tinha uma latada com uma cobertura rala de maracujá do mato. As flores eram lilases, mas estavam tão murchas e tão diferentes das flores que deixara! Continuou percorrendo a parte externa da casa: a calçada onde ele e Luísa trocaram beijos, abraços e mil juras de amor, encontrava-se deteriorada; os alpendres estavam um pouco gastos, porém, firmes; o curral no qual os bois mugiam e os cabritos berravam, sobretudo, os órfãos, dele restara apenas o mourão da porteira. Resolvera, então, adentrar à casa: na sala, o vaso com penas de pavão esvaiu-se; o relógio, com a imagem de Paulo e Virgínia, já não se encontrava mais. No quarto de piso ladrilhado, encontrou uma senhora de cabelos brancos deitada numa cama e, ali próximo, estava uma moça balançando-se em uma rede.

   - Mãe! A minha benção! Mãe! Mãe! Mãe!

   - Quem é?

   - Sou eu, João Pedro!

   A senhora Laura tentou levantar-se, mas não conseguiu. Começou a chorar, tremer a voz, e sussurrando falou:

   - Meu filho!

    A moça prontamente pulou da rede e ajudou-lhe. A mãe de João Pedro o abraçou e, olhando para o oratório, agradeceu a Deus e a Virgem da Conceição pela graça. Antes que o advogado pusesse os olhos na moça, ela saiu para outro cômodo da casa.

   - Veja como estou, meu filho, em cima dessa cama. Só não morri ainda, porque apesar de sua ausência, você nunca deixou de mandar o dinheiro das consultas, dos remédios, dos alimentos e o da moça que cuida de mim.

   - E a senhora está tão ruim assim?

   - Olhe, meu filho, se não fossem os vizinhos, a cuidadora e os parentes, você nem teria achado sua mãe viva.

   - Perdoa-me, mãe!

   - Meu filho, coração de mãe não guarda rancor. Coração de mãe é só amor!

   - É verdade, mãe. Errei feio com a senhora.

   - Errou comigo e com outras pessoas também.

   - A senhora está falando de Luísa? Ela estava apressada demais, não quis esperar-me. Fizemos tantas promessas e juras de amor.

   - Apressada? Ela esperou 13 anos, já estava ficando velha...

   - E essa moça que estava aqui? É a que cuida da senhora?

 Dona Laura gaguejou, titubeou e finalmente soltou o verbo:

   - Ela é sua filha! Como estou doente e ela está de férias, resolveu vir dar uma força. Ela e a mãe têm muita mágoa de você.

   - Venha aqui, Raquel! Vem pedir a benção pro teu pai. Já estou velha e não quero saber de desavença na família.

   A filha veio para o quarto e deu a benção ao pai, este a abençoou e pediu-lhe perdão. Ouvira-se choros e soluços.

   - E sua mãe, como está?

   - Bem, graças a Deus!

  A filha contara ao pai todo o sofrimento que a mãe passara, durante anos. Contara, também, que ela vivia chorando pelos cantos, amargurada e, algumas vezes, cantarolava versos de Emilinha Borba, os quais descreviam a sua desilusão: “os teus olhos verdes me atraiçoaram/ na cruz suave dos teus braços/ foi que eu me perdi.”

   - Sendo assim, por que ela não me esperou?

   - É que o vovô já não estava bem de saúde e, antes de partir, queria ver a filha amparada. O senhor sabe como era a cabeça do povo daquele tempo.

  Raquel relatara que a mãe estava casada com um engenheiro pernambucano que viera, através da Queiroz Galvão, supervisionar os trabalhos de construção de estradas naquela região. Ele conhecera sua mãe, Luísa, e logo se apaixonara por ela. Contara, também que se casaram e tiveram um filho. O pai de Raquel já sabia dessa história, através de cartas que recebera de sua mãe. Porém, ouvir todos esses relatos pela boca de sua filha, foi doloroso demais.

De repente, Luísa aparece na porta do quarto de dona Laura, e hesita entre adentrar ao quarto ou sair correndo. João Pedro levanta-se e parte em direção à ex-namorada. Olharam-se intensamente e silenciosamente. Ele estava ciente de que nada, do que fosse dito, justificaria a sua ausência e a sua atitude egoísta. Por outro lado, Luísa também se sentia culpada por não ter esperado o grande amor de sua vida.

   Por alguns instantes, ficaram em estado de hipnose e olhando um para o outro, sem balbuciarem uma única palavra. Era uma explosão de sentimentos: um misto de amor, de paixão, de saudade, de ternura, de mágoa e de arrependimento.

   Apesar disso, João Pedro e Luísa compreenderam que os mágicos e aprazíveis momentos, que passaram juntos, deveriam ser eternizados em suas memórias, assim como a bela imagem da canafístula em flor.

 

-

                    Texto   III

 

Desenho de Fritz Miguel 

 

 

Mulher de Verdade

Deolinda Marques           

 

A mulher dos meus sonhos

tem cheiro de flor do campo,

sabor de fruto maduro.

Tem cor de terra molhada,

cabelos macios, de seda.

 

A mulher dos meus sonhos

tem o brilho das estrelas,

Tem o encanto da Lua.

Tem a quentura do Sol

e a sedução do arco-íris.

 

A mulher dos meus sonhos

é a mulher que sempre quis

e desejei ser pra você.

Sem segredos, falsidade...

Uma mulher de verdade.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

DAS VERDADES DA VIDA

( Romanilta Rocha)

 

Mulher que persiste

Em incendiar-se feito viva brasa

Ignora e desiste

De tudo que a atrasa

 


Sob o manto da coragem

Ela, fina tecelã

Vai bordando sua passagem

Na luta nem sempre vã.

 


E, a despeito da maldade

Mulher, toda coração

Crê na própria verdade

E faz sua revolução .

 


 

PS: Para Regivalda , a menina -mulher revolucionária do grupo, com carinho.

 

 

  

MULHER

Flaviana Alzira

 

Deus ao criar a mulher

Em sua plenitude divina

Pensou criar um ser inigualável

De modo que o seu encanto

Fosse por todos reverenciados


 

És deusa da criança

Trás no teu ventre a vida

Sonho dos deuses e dos homens

És forte e ao mesmo tempo frágil

Mesmo as vezes sendo mãe e pai

És  sobretudo mulher 

 


Mulher mãe, mulher pai, mulher filha

Mulher em forma de anjo

Que mesmo sendo humana é divina

 


Mulher forte, mulher nordestina

Mulher de todas as raças

Mulher de todos os credos

Mulher com traços,

Com rostos e corpos distintos

Mas com alma e coração de mulher

 


 

 MULHER 

 

Uma mulher tão bonita

Lábios doces como o mel

O corpo da Iracema

Cabelo da Rapunzel

Se fores minha querida

Eu prometo minha vida

Pra sempre lhe ser fiel

 


Levante a sua cabeça

E dê um olhar pra mim

Que desde muito pequeno

Sofro desse mal sem fim

De só me apaixonar

Por quem nunca vai me amar

Por que tem que ser assim?


 

Ao vê-la assim de longe

Com um corpo de sereia

O meu coração palpita

A minha mente vagueia

Pense na minha proposta

Que o poeta de ti gosta

E a alma por ti anseia


 

Bela como a Lua cheia

Com um perfume de flor

Tem o brilho de uma estrela

Por isso eu vou lhe propor

Seja a musa do repente

Pra o poeta novamente

Não ser morto pelo amor


 

 GEOVANE LEAL 



DA JANELA

Nilvon Batista

De onde ela está vê o pôr do sol

Pessoas passando apressadas, cansadas,

Espremidas.

Pessoas teleguiadas, enquadradas

Sem sair do lugar, entorpecidas.

 

Ela vê esgotos e bichos escrotos

Jovens vagando e velhos pensando

Paredes de concreto

E crepúsculos disfarçados  

 

De onde ela está vê um sujeito

Fechado, quadrado

Em um mundo sem cores

Onde amarras projetam lhe

Um moralismo viciado

cobrando o que não tem

 

No seu mundo ela  fica

Nua por inteiro e não pela metade

De onde estar não vê amor

Apenas dor

 

Quando o sol em ti se põe, o que fazer?

Da sua janela ela não vê o sol nascer

 

  

 

 

AMOR E VIDA

 

Erga a cabeça, mulher!

Não temas a porta/ mundo.

Tua essência, garra e fé

Têm o valor mais profundo.

 

Seja o que você quiser

Berço sagrado da vida!

Ame a quem te convier

Enfim, já foste remida.

 

Cristo já te libertou

Ninguém te atirou a pedra,

Cujo ventre fecundou

Com o amor que salva e medra.

 

Erga a cabeça, mulher!

És estrela, lua e flor!

Com ou sem rima qualquer

És um poema de amor!

 

De pé, siga empoderada!

Sem rival e sem dilema.

Não temas, sobe a calçada!

E recite o teu poema.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                A chama

                                                                    E. França

 

Uma olhada alma adentro. Um vislumbre de seu eu apócrifo. Homens circulam, eu sei. Mas por que me veem como se tentassem me ler? O que há de hieroglífico em minha imagem? A tarde translúcida expõe uma dor sutil e perene; a de se não reconhecer. Ontem, um namorado disse-lhe, da altitude de seu ser homem, que sua blusa era quase invisível e sua mania de se querer impor, intensa. Ontem, algo que o pai lhe ditou tinha a ver com a necessidade de automutilação. Além das acácias da rua, alguns raios de sol que não lhe chegam à alma. Além das duas quadras que se interpõem entre ela e o fórum, um segurança à porta dirá da proibição de sua participação na audiência com trajes impróprios. Vibrações em sua bolsa talvez ligadas a mensagens da amiga, também executiva da Raytheon Inc. Há um frio vácuo de desejos entre um ser em migalhas. Um querer potência, um viver com, sem sob. Vermelho de algumas begônias na banca da esquina. Um convite a instantes de paz sem culpa. Que lindas! Mesmo ali quase abandonadas sobre a feiura de asfalto cinza-insípido. Vou comprar dois buquês; minha mãe ama esses tons vívidos. Vem à mente uma infância guardada. Gelo. Idas a Bariloche. Botas de esqui unissex. Portas esquivas em bares perdidos. Seu inglês como forma de sobressair. O primeiro emprego a duras penas, festas da faculdade, regadas a horário regrado. Sua tia bem casada deitando a cabeça da menina ao colo, entre cafunés, dando conselhos para uma futura e prendada boa moça. Era de solidão seu olhar. Não havia companheiras ao redor. Um calor desértico a consumia a partir de dentro. Medo. Vergonha. Por que esse pudor? Santo Deus, estou nua! Olhando para baixo, viu que a partir das unhas dos pés seu corpo estava cheio de uma assustadora ausência de qualquer trapo de vestimenta. Alijada de toda espécie de tapa-sexo, era dominada por um terror nunca sentido antes. Esgueirou-se pelo beco, mas estava em frente à estação. Ela não embarcaria. Seria devorada. Por olhos e bocas. Por desejos alheios, vorazes, por projéteis morais agudos. O primeiro ímpeto, de choro por instantes imensos. Que ódio desses pelos que sequer aparei! Eles me verão como a uma bruxa. E eu... eu os queimarei. O maxilar ergueu-se ligeiro, um suspiro a traspassou de um orgulho novo e

 

prazeroso. Água que fecha o verão a partir do céu começou a cair em gotas ácidas. Súbito. Tomou o rumo de seu escritório no edifício Atlantic City em passos rápidos. Úmida, não tímida. Já no elevador, subiu muito. Era preciso. Centelhas de olhares não a inflamavam mais. Senhora, seu vestido... Madame, perdão, é que... Passos fundos e indiferentes continuavam a conduzi-la. Sua mesa de trabalho impecável. Senta-se nela, e seu ar é de príncipe à mesa do jantar de gala. Repensa. A um toque na tela do notebook, uma relação de homens que supostamente construíram a empresa. Ela ri. Estão demitidos. E despidos sem que o saibam.

 

QUEM É ESTA MULHER QUE ME VAGUEIA O SONO?

                                                  J.Neto

Seria por acaso a Sulamita  dos meus mais íntimos desejos:

Sua pele morena, suas aromas a base de Susinum ( lírio, mirra e canela) e Cyprinum (hena, cardamomo,canela, mirra e abrótano) ou Mandesian (a base de  mirra e cássia com gomas e resinas variados)

Seria minha? a mais pura e sonhada de todas as mulheres!

Ah! meus pensamentos irriquietos balbuciam a minha mente enquanto  a espero pelo instante eterno em que me deixas para observar algo dos recintos da casa, talvez quem sabe, uma janela aberta, ou uma simples entrada de ar ou mais alguma coisa que pudesse mudar o clímax geral daquela noite, daquela odisseia turbulenta de amores naquela nossa noite.

Numa pequena fresta da porta entreaberta do quarto, a vejo, seminua uma deusa; a deusa do amor, a que agora rege a minha alma com destreza e acalma todos os afãs da minha quase lúcida vida cotidianeira.

" Eu dormia, mas o meu coração velava; eis a voz do meu amado, que estava batendo: Abre-me, irmã minha, amiga minha, pomba minha, minha imaculada, porque a minha cabeça está cheia de orvalho, os meus cabelos, das gotas da noite. Já despi as minhas vestes; como as tornarei a vestir? Já lavei os meus pés; como os tornarei a sujar? O meu amado meteu a sua mão pela fresta da porta, e o meu coração estremeceu por amor dele. Eu me levantei para abrir ao meu amado, e as minhas mãos destilavam mirra, e os meus dedos gotejavam mirra sobre as aldravas da fechadura"

Juro meu amor por ti.

 

A MULHER PROIBIDA

Nonato Cipriano.

 





Oh senhora dona da tarde

Que vens de longe e passa

Por quem meu corpo só arde

E  a dor, ávida, me trespassa


 

Daqui, no banco do largo

A vejo, tão bela e tao linda

Com seus cabelos fartos

Seu corpo lindo, divina


 

Cá, eu me vejo pensando

Tua boca, que gosto tem

Teu cheiro da pele exalado

Pra quem agora é teu bem


 

Então me invade a tristeza

Por não tê-la, como bem

E ter comigo a certeza

Que pra ti serei ninguém

 

                   

 

                                                            RÔMULO ROSSI