Contos

A Outra Margem

Havia o rio. De um lado, a vila; do outro, a umas seis léguas, nosso roçado e a casa, na parte mais alta da serra. Nos meses de chuva, íamos para serra plantar; resto do ano morávamos na cidade. Quando chovia muito na nascente, havia as enchentes. O rio avançava pelas margens, entrava nas roças próximas. Era muita água. Descia até espuma, e muito, muito lixo: pedaços de pau, animais mortos, sujeira acumulada no fundo e que a força da correnteza arrastava sem dó. Nesse tempo de rio cheio, poucos conseguiam atravessá-lo. Barco não havia na região. Usavam câmaras de ar de pneus de carro. Então nossa família ficava ilhada na casa da serra até que a água abaixasse. Menos o meu pai. Ele atravessava em qualquer época, com correnteza forte e tudo. Usava cabaças amarradas com cordas para flutuar. Ele precisava de ir para a cidade e trazer mantimentos. Nós, os filhos todos, sete ou oito, íamos junto para admirar o pai nadando, vencendo o rio. O irmão mais velho implorava ao pai permissão para atravessar, mas só ouvia uma resposta: “Você não é homem ainda para a tarefa. Cuide de sua mãe e de seus irmãos que é melhor”. Eu tinha tanto orgulho do pai. E o tempo que ficávamos na serra era o melhor do ano. Meu pai ficava tempo junto da família. Íamos limpar o feijão, matar passarinho de espingarda, armar o fojo. À noitinha, no terreiro, ele contava causos antigos. No seu colo, eu sonhava com as suas palavras.

Naquele inverno, o plantio foi feito no seco e esperávamos agoniados pela chuva. Quando veio, durou três dias o aguaceiro. Naquele inverno foi a maior cheia do rio. Chegou a tomar todas as plantações perto do curso. Meu pai se preparou para ir às bodegas da cidade comprar comida e utensílios para passar o inverno. Ele andava calado por aqueles tempos. Nem caçar ele ia mais.

Foi à cidade. Ficamos na margem olhando, como sempre. O rio tão largo naquela enchente. Foi difícil passar, saiu do outro lado lá longe, cinqüenta braças abaixo. Depois voltou até o local da passagem, onde o caminho seguia para a cidade. Olhou para nós, demorou-se um pouco, nem levantou a mão dando tchau, e se foi. Não voltou naquela semana nem nas seguintes. Não podíamos atravessar o rio. Os parentes vieram avisar que nosso pai tinha ido embora. Chorei na minha rede à noite, baixinho, sozinho. Não sei se aconteceu com algum dos meus irmãos também. Minha mãe era apenas um rosto de vergonha. “Como pôde?”, resmungava pelos cantos. 

Foi uma infância pobre. Tantos filhos sem um pai. Só a mãe para arranjar o nosso de comer. Os irmãos mais velhos ajudavam. A família trabalhava de meia na roça dos outros. Na seca, fazia-se todo tipo de bico para arrumar o sustento. Minha mãe lamentava e culpava o pai por todo o nosso sofrer. Do meu lado, também não sabia mais o que sentia por ele.

Sobrevivemos. Menos um dos irmãos, que morreu com três anos, não se sabe do quê. A irmã Francisca nasceu doente da cabeça. A companhia de minha mãe pra vida toda. Os lá de casa, uns casaram e ainda cultivam um pedaço de terra próprio, comprado com sacrifício. Outros foram embora para São Paulo, trabalham em firmas por lá. Eu montei um comércio noutra região do nosso estado, um pouco longe da vila e dos parentes.

Venho visitar minha mãe, os irmãos e sobrinhos na Semana Santa e no Natal. Na última viagem, resolvi ir até a outra margem. Agora as coisas estavam fáceis — havia uma ponte. O rio que separava meus dois mundos da infância, e que também tanto uniu a nossa família, parecia quase não existir visto de cima da ponte. As margens tornaram-se imensas com o leito quase seco. Na serra, no local da casa, só havia tijolos se desmanchando pelo chão. Quase não localizei mais o lugar. O mato tomara tudo. Voltei com tristeza e decepção enchendo meu presente. Ao chegar novamente ao rio, ainda do lado da serra, olhei para a outra margem como havia feito uma ruma de vezes quando era criança, esperando que o pai aparecesse lá, de volta para nós. 

Demorou anos depois da sua partida até que a ilusão de que voltasse morresse. Foi quando descobrimos onde ele estava. Morava numa cidade no meio da floresta, num estado do Norte. Os manos arrumaram uma viagem pra lá. Fiquei indeciso, suando, e o medo de revê-lo era mais forte que a saudade. Eles foram. Eu e minha mãe ficamos. Minha irmã Francisca, tadinha, não lembrava nada do pai, mas falava dele com tanto orgulho que dava pena.

Ele arrumara outra família por lá e já era viúvo da segunda esposa. Um filho adulto foi o fruto dessa segunda união. 

Meus irmãos voltaram alegres, com muitas histórias do pai.  Disseram que numa próxima viagem trariam ele para visitar a mãe. Ela não queria nem ouvir o nome dele. “Um homem que deixa mulher e filhos passando fome não merece um pingo de consideração. Nesta casa ele não entra!”, dizia ela.

Acho que eu também não quero que volte. O meu pai se perdeu para mim naquela derradeira travessia. Minha infância não posso refazer, pois aqueles tempos, assim como as águas do rio, não podem voltar.

Jailson Klein