Desafio da Música

OBRA ABERTA


(Inspirada na música Construção de Chico Buarque) 

Jailson Klein

Acordar

 

O despertador tocou, como em quase todos os dias da vida, às cinco horas da manhã. Bento esforçou-se para manter os olhos abertos no escuro. Quando finalmente conseguiu, ficou a olhar para o teto sem conseguir visualizá-lo. Uma angústia estranha havia lhe invadido o peito sem razão.

Será se foi algum sonho que tive? Mas nem lembro o que sonhei!

Virou-se para o lado de Janete e disse:

— Está acordada?

— Sim. — E ela, puxando o cobertor para si, ajeitou-se mais na sua parte da cama. Ele ficou de lado, olhando para a esposa, apesar de ver somente sua silhueta, e disse:

— Você sabe que eu gosto muito de você e dos nossos filhos, né, Janete?

Ela sabia. E sabia que esse “gostar” dele significava “amar”, que o marido apenas tinha vergonha de falar àquela altura do relacionamento.

— Sei. Mas por que isso agora, Bento?

— Não sei... Acordei com uma coisa ruim aqui no peito, parecendo que tá tampando tudo...

— Um pressentimento? Não foi um sonho que teve?

— Não me lembro de sonho nenhum. Deve ser besteira!

— Tá na hora de você se levantar — disse Janete, já mais desperta.

— Tá. Vou deixar o dinheiro e o talão da luz debaixo do cesto da mesa. Tem que pagar hoje, Janete. Senão, vão cortar.

— E a bicicleta da Yasmin? Será que a gente consegue o dinheiro?

— Acho que sim, mas, seja como for, vamos comprar para ela. Não é possível que a gente não tenha condição nem dar um brinquedo para a filha no aniversário dela! De que adianta a gente se acabar de trabalhar nessa vida? — falou mais como desabafo do que como indagação.

Janete passou a mão pelos cabelos do marido. Naquele momento, Bento sentiu seu peito se inundar de uma emoção tão forte que ele pensou: se isso não é amor, então eu não sei o que é. No escuro, tateando com as mãos a cabeça da esposa, Bento abraçoua como há muito não fazia. Ela riu baixinho e disse:

— Que amor todo é esse hoje?

Ele ficou encabulado e levantou-se.

Antes de sair do quarto para o banheiro, foi até o berço onde dormia o caçula e fez um cafuné. Cheirou-o de mansinho e foi fazer sua programação matinal, antes que a coragem se esvaísse.

A pequena casa que Bento conseguira alugar fora uma das grandes felicidades da família nos últimos tempos. Tinha dois quartos, sendo que o segundo se assemelhava mais a uma despensa, de tão pequeno, mas suficiente para caber um beliche para os dois filhos mais velhos. Ficou apertado, mas fora uma alegria para o casal ter outro dormitório para tirar a filha, primogênita, e o menino do meio do quarto do casal. Com a chegada do caçula, o antigo quarto e sala que moravam ficou impossível de acomodar a todos com alguma privacidade.

A casa ficava nos fundos de um ponto comercial. No momento, ali funcionava um bar, para a infelicidade de todos. A casa era velha e malcuidada quando eles se mudaram, mas Bento fizera diversas melhorias, já que era pedreiro. Outros problemas do imóvel eram mais difíceis de solucionar, como a umidade nas paredes e no teto.

Naquele dia, Bento fez uma alteração em sua rigorosa rotina da manhã: depois do banheiro, entrou no quartinho dos filhos. A angústia que sentia desde que acordou não havia sumido, e esse sentimento o impulsionou a querer vê-los antes do trabalho.

Fez o mesmo ritual, com o filho do meio, que fizera com o caçula: cafuné e cheiro. Menino maravilhoso do papai. A filha mais velha dormia na parte de cima e a cama dela ficava quase na mesma altura do rosto dele. O dia clareava lá fora e ele já podia ver as feições da filha. Ela estava com o rosto virado para ele.

— Papai vai comprar a sua bicicleta, filha. Eu prometo — sussurrou para que ela não acordasse.

Sem motivos aparentes, sentiu vontade de chorar. E saiu.

Na cozinha, após tomar o café, colocou o dinheiro dobrado, junto com a conta da luz, debaixo da bandeja com frutas de plástico, que ficava no centro da mesa. 

A mulher é muito organizada e trabalhadora. Nunca vi essa mesa amanhecer com uma colher em cima. A pia, então, nem se fala!

Pegou sua bolsa — em estado precário — com a roupa velha de trabalho guardada por Janete, desodorante, pente, fitas-cassetes e outros objetos, e colocou a marmita por cima, também preparada na noite anterior pela esposa. Ao se dirigir à porta da rua, Janete apareceu do outro lado e se encostou à parede. Ele parou para olhá-la, e, depois, fez mais uma coisa fora de sua rotina: foi até a esposa e abraçou-a. Despediu-se, sem jeito, com um beijo na cabeça dela, como nunca havia feito antes.

— Só porque hoje é sábado e vai receber o salário da semana, não vá querer ir beber com os amigos depois do trabalho, viu? Você sabe que quando começa não para mais.

— Mas hoje é o aniversário de Julinho! Só que ele vai levar uns “negócios” pra comemorar é na hora do almoço. 

— Tá certo, então nada de ficar pelos bares depois.

— Tá bom, mulher. Eu não vou para lugar nenhum depois. — E ia fechando a porta, quando ela falou:

— Deus te acompanhe, amor!

— Até a noite!

 

 

Trabalhar

 

A construção ficava numa rua de bastante movimentação de automóveis e transeuntes, o que dava muita dor de cabeça ao senhor Pacheco, que tinha de organizar a entrada e a saída ou o estacionamento na rua das máquinas e caminhões de entrega e de retirada de entulhos. Para seu alívio, a estágio atual do edifício eliminara boa parte do tráfego de caminhões pesados.

Como sempre, o mestre de obras se posicionava à entrada para ver a chegada dos trabalhadores. Quando Bento bateu seu cartão, cumprimentou-o:

— Bom dia, senhor Pacheco!

— Bom dia... baiano! Como é mesmo seu nome?

— Bento. Francisco Bento da Silva.

— Bento, você está no 9º andar?

— Sim.

— Então eu quero aquilo ali fechado hoje, sem falta! O pessoal que está lá tem que apressar esse serviço. Nossos prazos estão atrasados e o engenheiro pega no meu pé todo dia, viu? Ainda faltam mais três andares para fechar as paredes na próxima semana. — O mestre de obras parecia justificar para Bento e para si mesmo da urgência.

— Sim, senhor. Vou falar com o pessoal que tá lá comigo. Vamos fechar as paredes de fora hoje. Pode deixar.

— Senão, não tem salário hoje – ameaçou Pacheco, de brincadeira.

— Que é isso, senhor Pacheco? Nem brinca!

— Vá lá, homem, faça seu trabalho direitinho que no final do dia terá seu ordenando. — Concluiu com um meio sorriso, já passando sua atenção para outro trabalhador que chegava.

— Deus lhe pague, senhor Pacheco! — disse Bento, agradecido, ao seu superior.

Pelo elevador de serviço, montado para transportar material e os trabalhadores, Bento subiu às alturas sem reparar em nada ao redor. Era tanto o costume que ele mal se dava conta do que acontecia ou de quem estava ali com ele naquela caixa de ferro. Fazia aquilo tão repetidamente, que se comparava, às vezes, à betoneira, misturando a massa em giros sem fim. Girando e girando sem propósito nem fadiga. De tão distraído, às vezes saía em andar errado, porque a maioria do grupo do elevador descia.

Sem consciência do que fazia, acompanhava os outros feito um boi seguindo a manada.

 

Instantes mais tarde, ele e os companheiros do andar começavam a erguer as paredes externas, como queria o mestre de obras. Em três frentes simultâneas, os homens fechavam os limites da laje daquele andar. Um dos lados permanecia aberto, sem nenhuma proteção aos trabalhadores. Nem mesmo havia andaime ali, somente nos andares inferiores, onde rebocavam o exterior. Um abismo perigoso à frente de todos.

O senhor Pacheco quer que fechemos tudo hoje, mas não sei se vai dar, pensava Bento, enquanto sentava tijolo após tijolo num desenho de retas e cantos que não se acabava. Às vezes, ele pensava que a sua vida era construir uma parede infinita, que tocaria o céu a qualquer momento. Bento já sonhara diversas vezes levantando essa parede sem fim, com seus inúmeros retângulos e linhas niveladas; tijolo sobre tijolo, uma fila após a outra, a parede subia e subia num desenho mágico, e ele se angustiava por nunca alcançar o teto.

Como uma máquina sentadora de tijolos e massa, Bento pensava em tudo na vida, menos naquilo que fazia. Dos seus lados da laje, os homens conversavam animados ao som de um pequeno rádio à pilha.

— O Julinho disse que na hora do almoço vai subir aqui pra gente comemorar o seu aniversário. Disse que vai trazer uma cachaça da boa e tira-gosto que a mulher dele preparou. Vamos fazer aquela farra! — disse um dos homens da turma.

— E se o senhor Pacheco pegar a gente bebendo? — perguntou Bento.

— Como ele vai pegar? Se o elevador parar aqui, a gente esconde tudo, oxente!

— respondeu Damião.

— Julinho vai trazer o toca-fitas também, Damião? — perguntou outro.

— Acho que sim. Sem música não tem graça — disse Damião e deu uma risada estardalhada.

— Não sei se é uma boa ideia — resmungou Bento.

— Deixa de ser medroso, Bento. Hoje é sábado e é o aniversário de nosso amigo. Que é que tem se a gente fizer uma pequena comemoração na hora de nosso almoço? —  Argumentou Damião.

Bento não mais contestou. Continuou na sua programação: colocava massa sobre a fila de blocos, na lateral do novo bloco e sentava-o na posição. Depois, pegava mais um e repetia o processo de novo. E de novo... e de novo...

Enquanto realizava esses atos mecanizados, Bento reparou no belo dia de sol que fazia. O céu estava de uma limpeza impressionante, com poucas nuvens e de um azul muito vivo. Olhando o céu pela lateral do andar ainda sem parede, Bento viajou por outros mundos, outros tempos.

Primeiro pensou na bicicleta da filha, e em como faria a prestação da compra. Vou ver com a Janete em quantas parcelas ela vai querer fazer. Faltavam duas semanas para o aniversário da filha e Bento julgava que era hora de irem à loja para fazer a compra. 

Vou falar pra Janete pesquisar e escolher a loja, que eu falo com o senhor Pacheco para chegar mais tarde num dia desses e vou até a loja fazer o crediário. 

Bento mudou o pensamento para a questão da umidade nas paredes de sua casa. Ele analisava os procedimentos a serem feitos para amenizar o problema. Teria que passar massa corrida e, pelo menos, duas demãos de tinta. Ele sabia que a umidade, junto com a poluição a que todos estavam expostos, eram os responsáveis pelos problemas respiratórios dos filhos e pela bronquite do seu filho do meio. E sem muita associação com esse pensamento, ele se lembrou da pensão Marmita de Ouro, em que morou alguns anos ao chegar da Bahia, e dos amigos que lá fizera, principalmente daqueles com quem dividia o quarto.

Ah! Saudades da pensão, dos meus amigos... Agnelo, que Deus o tenha!... Fabiano...

e meu grande amigo Cecilo. Já faz um tempo que não vejo Cecilo. Esta vida de casado, com três filhos para cuidar, toma todo o tempo da gente, mas hei de ir visitar meu amigo Cecilo... em breve. Na pensão ainda devem morar alguns conhecidos dos velhos tempos, mas os que dividiam o nosso quarto, esses não estão mais lá.

Ele passava de um pensamento a outro, muitas vezes sem conexão alguma, mas todos carregados de saudade e dor. Enquanto viajava nas lembranças e pensamentos soltos, Bento elevava sua parede. Neste fazer mecânico de colocar massa nos tijolos, pequenas porções respingavam em seu cabelo, rosto, sobrancelhas e até mesmo os cílios ficavam salpicados de cimento seco. E então, seus olhos se turvaram, não pelo cimento que castigava as córneas, mas pelas lágrimas de saudade e tristeza que lhe enchiam os olhos e escorriam em dois sulcos pelo rosto maculado de concreto e pó. Passou o punho da camisa no rosto, o que deixou uma mancha disforme de sujeira em suas faces.

Bento sentiu aquela angústia de mais cedo voltar com força, deixando-o meio sufocado. Para afastar essa sensação, Bento achou que as lembranças boas dos tempos antigos ajudariam, e buscou na memória a lembrança da sua musa da janela.

Será que minha deusa ainda mora naquele casarão? Será que encontrou um grande amor? Será que é feliz na vida... assim como eu? Na riqueza em que vivia, deve ser uma madame das altas rodas. Meu Deus, como eu admirava aquele corpo perfeito desfilando em frente à janela, aquele cabelo maravilhoso, aquela lindeza toda... e eu nunca descobri sequer o seu nome...

— Bento, acorde! — gritou Damião. — Está na hora do almoço, peão. Vamos comer ligeiro que Julinho deve chegar daqui a pouco.  

 

 

Divertir

 

Sentou-se para almoçar às onze horas. Numa mesa feita de blocos de cimento, apoiou sua marmita. Dois blocos sobrepostos faziam as vezes de cadeira.

A refeição, preparada com carinho e louváveis dotes culinários pela esposa, consistia em arroz, feijão e um raquítico pedaço de carne com pelanca. 

Nessa mordomia, com mesa, cadeira e uma refeição saborosa preparada pela mulher, estou mais é me sentindo um príncipe, pensou Bento.

Para acompanhar o almoço, uma caneca de água da garrafa térmica de Damião. Depois, quem sabe, uns goles da cachaça de Julinho.

E Julinho chegou logo após o grupo terminar de comer. Ele estava trabalhando no 8º andar e num instante apareceu no andar superior. Trazia a esperada cachaça e uma panela de alumínio enrolada num pano de prato numa mão e um toca-fitas na outra.

— Vamos lá, meu povo, que a cachaça e o tira-gosto hoje é por minha conta. Não esperem por um agrado desse carrasco do Pacheco nem de patrão nenhum no seu aniversário ou quando nascer um filho de vocês, porque isso nunca vamos ter — discursou animado Julinho.

Os homens se reuniram mais ao centro da laje e começaram a procurar copos e canecas velhas para servir a cachaça. O toca-fitas ficou na mesa de tijolos do Bento. Julinho abriu o tira-gosto e o cheiro da carne seca frita se espalhou.

— Huuum, tá cheirosa essa carne, hein, Julinho! Acho que vou tomar umas três talagadas para saborear essa carne de sol — brincou Damião.

Bento se aproximou, tímido, dos colegas e perguntou:

— Posso colocar uma fita minha para tocar, Julinho?

— Pode, meu amigo. Aqui tudo é nosso! Quem é o cantor, Bento?

— Roberto Carlos. É o último disco dele. Comprei a fita original.

— Opa! Roberto é pau pra toda obra, inclusive pra nossa. — E riu da própria piada.

Bento pôs a fita, rebobinou-a para a primeira música e apertou o play. 

 

[...]

Pra quem te traz no peito

O mundo é mais florido

A vida aqui na Terra

Tem um outro sentido

[...]

 

Bento foi até a cachaça e se serviu de uma dose, para aguentar a emoção daquela música. Fé, é disso que nós precisamos.

Quando a música tocou, Julinho bradava para o pessoal um de seus discursos de protesto.

— Se a gente tiver medo de reclamar com o Pacheco, com a firma, nós não vamos conseguir nenhum aumento do salário, nem qualquer direito. Se a gente baixar a cabeça e trabalhar que nem formiga, conformados, nós nunca vamos ter nenhuma melhoria no trabalho nem na vida. Ou vocês acham que, se a gente ficar somente de agradecimento com o Pacheco e com o engenheiro, ou com o patrão da firma, a gente consegue algo? Vocês têm que valorizar o suor de vocês, os calos das mãos!

— Mas, Julinho, por que não é certo a gente estar conformado com este emprego que temos, com o salário que vamos receber mais tarde? Quantas pessoas que conhecemos que não ganham um tostão pra comprar arroz, que não têm emprego, que passam fome, frio e sequer têm um teto para se abrigar do frio? — contestou Bento, após a segunda dose de cachaça.

— Sim, meu camarada, mas não podemos olhar para baixo, para a merda que está no solado das nossas botas. Temos que pegar como molde uma condição de vida melhor, com mais conforto, mais direitos, e não se nivelar por aqueles que estão na lama. Você acha que o seu salário é um favor que o empresário dono dessa construtora lhe presta? Que é um agrado? Não! Não, Bento! Você faz por merecer cada centavo do seu ordenado. O seu suor e o pó de cimento que engole todos os dias valem o salário que ganha. Valem até mais. Não podemos pensar assim, Bento, senão daqui a pouco estaremos agradecendo pelo pão velho que comemos, por esse chão duro em que dormimos. E até por essa cachaça forte que temos que beber.

— Eu sou conformado com o meu emprego. Penso que temos que trabalhar e cumprir com as nossas obrigações para que tenhamos a consideração de nosso patrão pelo nosso trabalho. É uma troca, eu trabalho duro e eles me pagam — falou Bento, que se mantinha no debate com Julinho. E bebeu mais um gole da pinga, que desceu queimando o esôfago, e comeu outro pedaço da carne.

— Eu penso que não temos ninguém por nós. Se a gente não se unir, não teremos força para reclamar por um benefício, uma melhoria que seja no trabalho. Quando um trabalhador desses cai do andaime e se acaba em cima das pedras e pontas de ferro, se não for contratada uma carpideira, não haverá ninguém da “firma” que se dobre para lamentar sobre defunto, só as moscas varejeiras.

— Pois eu lhe agradeço muito, Julinho, pela cachaça de graça, pelo tira-gosto e pela música do Rei. Feliz aniversário, meu amigo! — resmungou Bento, já com a fala um pouco mole.

Em menos de meia hora, os homens já estavam animados e falantes. Contavam histórias, piadas, brincavam uns com os outros. O mais alegre e, aparentemente, alcoolizado parecia ser o Bento. Por ser fã de Roberto Carlos, as músicas o deixaram mais inspirado e descontraído. Ele estava tão “alto” que passara a dançar e cantar nos últimos minutos. Damião julgou que ele havia bebido além do normal, para o horário do almoço. Umas das causas para ele ter passado da conta na bebida foi a sensação de tristeza que lhe perseguiu durante o dia. Talvez quisesse afogá-la no álcool. Ele já rodopiava pela laje quase inteira, subia na sua mesa de tijolos e cantava:

— “Tenho às vezes vontade de ser/ Novamente um menino/ E na...Hic!... hora do meu desespero/ Gritar por você”. Oh, minha mãezinha, me perdoe por não ter mandado seu fogão a gás. É que tive de comprar remédios para os meninos e gastei muito ultimamente. — Ele dançava como se houvesse um par, cantava e falava ao mesmo tempo. 

— Não vá para o outro lado, Bento. Ali é perigoso, está sem a parede — alertou Julinho.

— “Te pedir que me abrace/ E me leve de volta pra casa/ Que me conte uma história bonita/ E... Hic!... me faça dormir”. Cadê meu amigo Cecilo, meu camarada, meu parceiro? Ele é metido com esses protestos, igual a você, Julinho. Segue tudo o que aquele barbudo dos metalúrgicos manda.

— Acho que está na hora de voltarmos ao serviço, seu Bento — chamou Damião.

— Minha filha vai fazer aniversário na próxima semana, Damião, e eu não tenho o dinheiro de comprar uma bicicleta pra ela. Mas vou comprar à prestação. Minha princesa merece... Hic! Julinho, você já viu um céu mais bonito que esse? — E deu dois ou três passos em direção à lateral aberta.

Meu Deus, como esse céu hoje parece que foi pintado com a aquela tinta plástica, sabe, Damião? Dá a impressão até que ele está baixo, como se fosse um piso.

Que imensidão esse mundo! Parece existir tanta paz e tranquilidade nesse mar...

— Bento, venha para esse lado, homem — gritou um dos homens.

Foi exatamente nessa hora, quando ele estava fazendo uns passos de dança próximo ao limite da construção, que tropeçou em um pedaço de cano que saía do piso e caiu de costas, como se pretendesse deitar-se no céu; porém, como um pássaro ferido e sem forças, ele despencou feito um saco de cimento no abismo, com os braços estirados, como se a suplicar que alguém o segurasse. Lá embaixo, pontinhos minúsculos e coloridos se movimentavam apressados na rua, sem saber que, em segundos, um operário atrapalharia o trânsito e o sábado.

 

Descansar

 

O primeiro dos trabalhadores do 9º andar a chegar à rua foi Damião. Nesse momento, o buzinaço dos automóveis estava em plena execução. Ele foi tão rápido na descida que havia um círculo de poucas pessoas em volta de Bento. Era meio da tarde e o asfalto estava numa temperatura altíssima. Bento caíra no centro da rua, mas não sobre nenhum automóvel.

— O que é que está acontecendo aí? Vamos andar gente que estou atrasado! — gritava um motorista de um ponto distante.

A forma como o corpo caiu de costas no asfalto, deixou-o numa posição semelhante a alguém que se deita na grama para apreciar as estrelas. Se não fosse o círculo de sangue sob sua cabeça, e a maneira como ele se expandia no asfalto, ninguém diria que aquele homem sofrera qualquer lesão física. Na verdade, seus ossos e coluna estavam quebrados, seus órgãos internos estavam destruídos com impacto e o seu crânio se partira em vários lugares. Era um milagre que ele, mesmo com muita dificuldade, conseguisse respirar. Mas não conseguia mexer um dedo e nem falar. 

O grupo de pessoas em volta do homem caído se avolumava. As buzinas e reclamações dos motoristas também.

— Desimpeçam a rua! — gritava outro. — Seja lá o que for que esteja bloqueando a rua, tirem a coisa daí!

— Oh, pessoal aí da obra! Vamos ver se vocês ajudam a destravar o tráfego! Tenho hora para fazer um serviço, não posso perder tempo aqui com bobagem — reclamava um motorista.

O mestre de obras, Pacheco, chegou afastando o povo para ver o acontecido. Ficou de longe, com um ajudante ao seu lado. Quando viu que havia um de seus empregados caídos na rua, talvez morto, disse para o subalterno:

— Oh, meu Deus! Isso vai atrasar a obra ainda mais do que já estamos. Quem era esse?

— Era um tal de Bento. Um coitado!

— Não conheço.

— E agora, o que a gente faz? — indagou o ajudante do mestre de obras.

— Avise o pessoal do RH para chamar outro peão na segunda-feira, no lugar desse aí — ordenou Pacheco e, abrindo caminho entre os curiosos, voltou à sua sala.

(Não tem mais construção.)

A cada minuto que passava com o trânsito parado na rua, o barulho das buzinas dos carros aumentava. Houve até motoristas que pediram para puxar o corpo para um dos lados da rua a fim de liberar a passagem pelo outro.

Julinho e os outros desceram e estavam entre os agachados e próximos a Bento.

Damião tentava conversar com ele.

— Fique bem, camarada. A ambulância vai chegar logo, logo. Não se mexa.

(Não tem mais brincadeira.)

Ele não sabia que não havia a menor possibilidade de o colega realizar qualquer movimento. A respiração de Bento estava fraca e mal se conseguia ouvi-la. O coração se esforçava para bombear mais uma vez o sangue para o resto do corpo, mas a sua força minguava a cada batida. Bento continuava com os olhos abertos, vidrados no céu, e piscava de vez em quando, suavemente.

Janete... Meus filhos queridos... Damião, o meu salário... para minha esposa... Estou tranquilo... em paz... O céu está bonito... A bicicleta... Yasmin... não vou poder dar seu presente... Me perdoe, filha... “Me leve pra casa, Lady Laura”... Mandar fogão... presente minha mãe... Juncos... Bahia... Amigo Cecilo... Acho que não vou mais te ver... Hoje lembrei de nós... Da pensão... Da moça da janela... Não sinto dor... Não sinto nada... Quero aquele céu... Saudade... Família... Janete... Compre a bicicleta... Meus filhos, Janete, acho que já vou...

Damião, Julinho e muitos operários da obra estavam ali acompanhando a situação do colega. Parecia que eles não ouviam todo o barulho das buzinas, das reclamações dos motoristas, de todos os sons em volta. Concentravam-se no colega que morria ali caído no asfalto vermelho.

(Não tem mais confusão.) 

Bento sentia que a vida lhe deixava, mas o processo não lhe era dolorido, apenas triste. A respiração estava tão baixa e frágil que era quase imperceptível. Em certo momento, o coração, com um heroico esforço, deu uma batida final e parou.

Arregalou os olhos como se fossem místicos.

E descansou vencido sob um azul límpido.

 

 

 

 

i O presente capítulo foi escrito tomando como estrutura o roteiro narrativo da música “Construção”, de Chico Buarque (1971). Foram feitas diversas referências, literais ou não, a trechos tanto desta música quanto de “Deus lhe

Pague”, do mesmo álbum, que, por sua vez, é incidental àquela. Também foram citados trechos das músicas “Fé” e “Lady Laura”, de Roberto Carlos (1978). Além dessas, ainda foram transcritos alguns versos da música “Domingo no Parque”, de Gilberto Gil (1968).


Foste, não és mais!


(Inspirada na música Outra Vez de Roberto Carlos) 

Eva Graça Brito

 

Não me encantam mais

as tuas cheganças,

nem se quer restam lembranças.

Confesso, pra mim tanto faz.

 

Teu ego inflado,

fez-te míope e incapaz

de vislumbrar: “que amor com amor se paga.”

E sem reciprocidade, ele se desfaz.

 

Ah, mas nada como o tempo consequente!

Perdeste quando me deixaste pra trás.

Sofri, mas superei, renasci fênix!

Agora deixo-te para nunca mais.

 

Desfecho que não idealizei,

mas no contexto muito me agrada,

 saber que um dia foste tudo,

porém, hoje não és mais nada!


O Amor


(Inspirada na música Monte Castelo de Legião Urbana) 

Fritz Moura

Amor, meu grande amor, mesmo que seja como a cebola que me faz chorar, mesmo que seja como o espinho do mandacaru que me arranha e fere, ainda assim, és meu amor. Você me trouxe a sorte de uma vida intranquila. Mesmo que nunca chegue, ou que chegue na hora errada, sempre será certa, pois penetrou no meu coração, no ponto mais íntimo de meus pensamentos e fez morada. Você, meu amor, é aquele sentimento que não sei explicar, se é que tem explicação. É muito mais que o sentido de amizade, afeição, desejo intenso. Vai além daquela forte afeição que sentimos pelos que nos são muito queridos e com certeza é muito mais que atração baseada no desejo sexual.

O amor é um sentimento tão complexo, você pode amar uma pessoa de diversos modos, mesmo sendo um, por mais estranho que seja, são três ... Eros, ligado à ideia do desejo, portanto lhe amar é desejar fortemente me unir a ti, mas não é só isto, pois este desaparece quando é satisfeito, e o meu só aumenta mais quando me uno a você. Temos o amor Filos, vinculado à ideia de alegria, pois sei que sinto uma alegria tão intensa em estar ao seu lado, em dividir uma vida com você e não ter receio de dividir meus sentimentos contigo. E ainda temos o amor Ágape, o amor marcado pela renúncia, quando renuncio a mim mesmo em favor de ti, pois te amo e não espero nada de ti, se me amas ou não, nada diminui o meu amor por ti. Bendita trindade do amor, quando nos unimos, nos tornamos um só.

Ainda que eu fosse capaz de falar e compreender todas as línguas do céu e da terra, ainda que fosse capaz de me unir contigo em pensamento, sem o amor eu nada seria, o amor me dá sentido e substância, é só o amor que conhece a verdade, aquilo que jamais poderei confessar para ti, aquela verdade que você não precisa que eu diga, pois ao alhar no meu olho tudo conhece, tudo sabe sobre mim. E sem medo de repetir aquela música que muitos repetem de maneira impensada, lhe digo ...

O amor é bom, não quer o mal

Não sente inveja ou se envaidece

O amor é o fogo que arde sem se ver

É ferida que dói e não se sente

É um contentamento descontente

É dor que desatina sem doer

E sempre será este sentimento de profundo afeto que faz com que eu queira o seu bem, mesmo que seja distante de mim. Esta minha afeição viva por ti, é desejo, mas as vezes é solidão, sempre será devoção e paixão por seu ser, e não é por ser bela, formosa, não é por ser inteligente e sensível, não é, tenha certeza sei que me perco em ti, mil palavras não seriam suficientes para lhe falar como é grande o meu amor por ti. Você não é abstrata, é sólida e faz presença dentro de mim. E a ti sirvo, ponho minha lealdade e verdade em tuas mãos.

Este meu amor, real e platônico, é puro, inocente como a flor, eterno como o momento. E não me importa se és capaz de sentir o mesmo, pois não está ancorado em sua aprovação, ou mesmo correspondência, não requer um pagamento ou retorno. Meu amor existe, vive ... E jamais estarei só no mundo pois tenho este amor. “É solitário andar por entre a gente” E não conhecera maior contentamento do que quando o amor preenche o seu ser. Mesmo parecendo que perco a vida, estou ganhando, venço o vencedor mesmo perdendo a vida. E está dor não dói é contentamento.

Agora que conheci o amor sei que todos dormem, estão perdidos em brumas, eu vejo a verdade sobre a existência, pois sem amar nada sou, nada faço, nada construo, nada ... nada ... Amar assim você é como olhar frente a frente comigo mesmo e encarar a verdade do que sou, da minha essência, pois só o amor conhece a verdade. 

Estou irremediavelmente, contentemente preso a ti!


O TREM QUE FAZ E DESFAZ


(Inspirada na música No Rastro da Lua Cheia de Almir Sater) 

Nonato Cipriano

          O trem apontou na curva, tracejando  os trilhos frios do mês de junho, espargindo  seus vapores nevoentos, fumegando a núvem negra pela chaminé  e  soprando o apito aflito e desafinado. Antes mesmo de emparelhar-se com a estação, suas rodas rangeram-se e soltaram fagulhas incandescentes,  no atrito com as vigas presas aos dormentes; como se insistisse em manter o curso da viagem. Sob o madeirame que compunha o abrigo na Estação Santo Antônio, suspenso em mão francesa e com telhado de argila, estava Francisco, um jovem de dezoito anos, filho mais novo de seu genitor. No meio daquela multidão, seu olhar percorria, a esmo, sem dar-se conta das emoções emanadas daqueles passageiros que, ora choravam pela separação de alguém que ficara  ora sorriam para alguém que os abraçavam. Ali está ele, no meio da multidão, mas sem participar dos sentimentos que avultavam; contrito, pesaroso, fechado dentro de si. O chapéu de palhinha cobriam-lhe os cabelos fartos, os olhos esverdeados pestanejavam incessantemente, enquanto a mão roçava a boca seca, numa demonstração de inquietação misturada à angústia. Apresentava-se de forma elegante, com seu terno cinza, camisa branca e gravata cor de vinho. Ao seu lado, sobre o piso de ladrilhos, repousava sua mala de couro, feita por um fino seleiro do Crato.

          O relógio de pêndulo da estação, marcava sete horas, quando o maquinista abarrotou a fornalha vulcânica da locomotiva, pressionando  os pistões a  impulsionar o veículo articulado, sobre os trilhos.

          Francisco sentou-se à  poltrona  com o encosto virado ao sentido contrario da viagem e inclinou a cabeça sobre o vidro da janela,  seguindo com os olhos a estação que se afastava, sob a curva da ferrovia. Deixara na estação, sua mãe chorando , seu pai sisudo e a presença imaginária da doce Carolina. No interior do vagão, algumas mulheres bem vestidas abriam seus livros de romance, os cavalheiros sopravam a fumaça de seus cachimbos  e algumas moças flertavam, discretamente, antepostas aos  desenhos de seus leques, em vão, o formoso rapaz. Ele acompanhou os capinzais e arbustos que corriam acelerados contra a viagem,  até que seus olhos nevoaram e o pensamento vagou .

          O dia estava bem claro, as núvens riscavam o céu de azul  anil. Sobre o tronco que atravessava o riacho, na sua parte mais funda, estava Venâncio pescando, ao lado de seu filho Francisco, ainda juvenil. E quando já estavam quase a desistir, surgiu-lhe Carolina, uma menina mestiça,  de quinze anos de idade, cabelos pretos e encaracolados que se abrigava sob um chapéu branco, pele morena, rosto composto com traços finos, olhos grandes, cílios fartos, nariz afilado e boca pequena, com lábios carnudos e riso tímido. Sob o vestido branco de renda, os seios insistiam em mostrar suas proeminências distinguindo-se do corpo sã . Ali, os olhos de Francisco brilharam pela primeira vez, com o desejo que lhe aflorava dos sentidos. E foi naquele lugar, enquanto Carolina banhava nas águas claras e rasas, tão rasas que dava pra ver o chão, que o vento içou o chapéu da menina, deitando-o ao leito escorregadio das águas. Francisco atirouse sobre as águas salvando o chapéu das correntezas e ao devolvê-la, pode ver, de perto, a beleza encantadora da linda menina que chegara, pra morar, no Arraial de Santo Antônio; sob o olhar preconceituoso e sisudo do velho Venâncio. Eis que ali, surgira seu único e verdadeiro amor.

           A medida que o tempo passou, aumentou o amor entre Francisco e Carolina. Os dois encontravam-se, quase secretamente  e essa censura, por causa da cor de Carolina, era o fermento que sustentava e mantinha o amor ardente entre os dois enamorados. Não suportavam mais viver essa vida segregada, de encontros clandestinos, de amores reprimidos, de paixões sufocantes e delirantes...precisavam viver, serem felizes e seguirem a caminhada dos amantes, de olhar a lua juntos e de contar estrelas, deitados sobre o manto da relva,  sentindo seus corpos cálidos. Assim, firmaram um pacto de lealdade e fizeram juras de amor que prevalecesse até  a morte. 

          Depois de alguns meses combinaram que iriam fugir e viver o grande amor, longe de tudo e de todos.

          A lua delineava um manto luminoso. As estrelas, muitas ofuscadas, cintilavam sob o pouco de escuridão que restara. Francisco e Carolina encontraram-se à beira do riacho sob a luz leitosa  que se espalhava na superfície das águas e reluzia nas pedras sob seus pés descalços. Os dois deram-se as mãos e como crianças, rodopiaram como num carrossel, depois  percorreram o leito luminoso do pequeno rio, aparentemente tímidos, mas os corações palpitando de emoção. Com as águas cobrindo-lhes a parte superior dos corpos, Francisco abraçou Carolina, suas faces aproximaram-se até seus  lábios se tocarem, lentamente, se entregando a um logo beijo. Aos poucos  foram agachando-se até que as águas já lhes cobriam até os ombros. Depois emergiram, abraçados  como  se já vivessem, juntos, há muitos anos e vivessem um grande amor. Quando as águas escorreram  sobre os ombros de Carolina, seu vestido leve entregou-se, arrastado pelas águas que desciam rapidamente sobre os contornos de seu corpo, arrastando o vestido para baixo e expondo os seios nus e rígidos e a beleza de seu ventre, sob a luz prata da lua. Naquele instante os dois abraçaram-se como amantes, Francisco lançou o braço sobre o dorso nu de sua amada e seus corpos uniram-se numa dança lenta e calorosa.

          O Velho Venâncio chegou, sorrateiramente, como se os acompanhasse de longe e com um bote certeiro, atirou-se sobre o riacho, separando-os, à força, ao mesmo tempo que prendia o filho a si e deixava Carolina ser levada pela correnteza  impiedosa do riacho. Francisco gritava por Carolina e se contorcia,  tentando afastar-se do pai e salvar o seu grande amor, que terminou se entregando ao  lastro mais fundo das águas.

-   Pai! Gritou Francisco desesperado .

-   Eu sei o que é melhor pra você, filho – Disse o Velho Venâncio, com as sobrancelhas cerradas e a expressão marcada por vincos profundos no rosto.

-   Ela é a mulher que amo, pai! É a minha Carolina e o senhor não tem o direito de tolher  a minha vontade!

          A viagem de trem foi longa. Tão  longa que o tempo fez e desfez o pensamento de Francisco, percorrendo o passado, enquanto seu corpo insistia em seguir o futuro.


Se


(Inspirada na música Dia Branco de Geraldo Azevedo) 

Iara Marina

Não, não me converse de altar,

se o amanhã não lhe posso jurar.

venha,

venha agora

que está chegando a melhor hora

e temos todo um horizonte

de possibilidades a explorar.

venha, meu bem

e não deixe para depois

para depois não me deixar

aproveite que é primavera

e temos a linda festa

da vida, em seu desabrochar.

te espero em duas rodas

se você quiser e vier

agora me levar  

as estradas de pedras

ao alto das serras

ao âmago de mim

ao afago que espera

o doce selvagem surgir.

não ouse me desperdiçar

com juras de altar

pois o futuro é incerto

façamos da tarde um verso  

e da paixão um verão

para que entendas

querido,

que amanhã

é solidão.


A pé? – azar de vocês


(Inspirada na música Apesar de Você de Chico Buarque) 

Elves França

          I

hoje passeio num ortigário

caminho entre cactos e até eles

estão mortos hoje perdi o

tempo  que nunca tive porque

não tenho mais o que fazer de

tanto des- ocupado ditando o

não querer

morrer

 

às sete da mat

tina são quinhentos mil

corpos muitos

embrulhados em plásticas

artes de maca- BRo às duas

vespertinas

há mais cadáveres na rampa do plan-

 

“ALTO”, eu digo basta da

besta fora de órbita afora

de ordem e congresso  mas

não é meu brado que

ouvem

nem mais o do ipi-

ranga im- posto(r)

 

hoje assuntei tomei pé de

tudo e vi quem impede tu do

fazer o óbvio e sair às ruas

para trabalhar ou morrer

coroado da nova ce-

pa  da

invariável variante de

cinco séculos

 

andai-me

andaime até

que eu de

ti caia- 

do calado detive meu choro até a

presente data

 

II

 

a manhã será

mais bela que a tarde de ontem do eterno

ontem da casa grande onde nasci

haverá dias mais sutis

e sem medo

até as tosses serão

sem

febre

 

amanhã não haverá espere

ânsia que chegue a meus

pés meu grito contigo meu

samba obscuro meu baião

serão mais altos e frenéticos

 

faço serão até noite alta

para estar livre num amanhã

 

que não terá peões des- calços

que não terá patrões a jato

nem porões

 

 

e o que é

melhor

 

terá samba soul sol.

 

que manhã será

se não andarmos

somente a pé

no 

hoje 

RESISTIR É PRECISO!


(Inspirada na música Apesar de Você de Chico Buarque) 

Raimunda Leonília

Há flores e mais flores

em nossos férteis quintais:

perfumadas e sem olores,

descoradas e ornamentais.

 


Botões a desabrocharem,

rosas a se definharem.

Quando a vida se esvai,

o beija-flor vem e vai.

 


A despeito de você, há jardim

sábio a nos ensinar

que devemos lutar,

e resistir até o fim.


Quando cabemos na letra  da canção


(Inspirada na música Sou Rebelde de Lilian) 

Regivalda Sousa 

 Todas a s artes tem o poder de tocar a alma humana e despertar emoções profundas. A música, entre todas, tem esse poder de forma potencializada, visto que  está inserida na vida de tal forma que atribui significados à momentos e pessoas , mesmo sem ter sido criada com tal finalidade. 

A música captura a essência de cada vivência humana e nos permite sentir, repetidamente, sensações já adormecidas no interior da alma. Creio Eu, que todo ser já teve a rotina quebrada, por algum acorde que trouxe consigo uma saudade, uma lembrança bonita ou uma dor embalsamada. Como também, possivelmente , todo ser já se deparou com uma letra que fala diretamente para si, sobre si, como se o compositor tivesse construído a narrativa melódica tendo como base a sua história, a sua personalidade ou, por mais trivial, o seu momento. Sendo assim, como todos, eu tenho uma música que lembra minha mãe, outra que lembra meu pai... Em específico tenho AVÔHAI, de zé Ramalho, que traz de volta a lembrança de um avô. Sim, tenho músicas que me fazem sentir o cheiro da infância e despertam o desejo de encontrar o caminho da terra do nunca, para que possa viver no lugar onde todo " ERA UMA VEZ" tem o seu " FINAL FELIZ"; Sim, como todo mundo, tenho uma música que marcou os momentos que vivi , desde os momentos de luz até os momentos de trevas. 

Enfim, há uma música para falar de tudo o que há embaixo do céu e recentemente, uma dessas músicas  antigas veio pousar no meu coração. Sou Rebelde, criada em 1978 e eternizada na voz de Lilia. Ouvi essa música, pela primeira vez, na adolescência, no rádio, acredita? Nos tempos em que às 11 horas, a rádio cajueiro FM, situada em Alagoinha, transmitia o programa "Som dos bares". Era um programa tradicional, que, como o radialista costumava dizer, oferecia " músicas do passado de presente" para seu público. Naquele momento de minha vida, tal música caiu em meus ouvidos como um choro e até me comoveu, mas não ganhou nenhum significado em especial. 

Contudo o tempo foi passando ... a vida foi acontecendo e aquela que não passava de uma canção de rádio passou a dizer mais sobre mim, do que meus próprios poemas. Eu me via naquela música e isso me inquietava , afinal, embora a letra fosse bonita, a melodia e a narrativa em si eram simplesmente tristes, afinal, pelo menos aos meus olhos, trata-se do lamento de uma mulher frustrada,  solitária e fazendo uma análise superficial sobre a letra, e estabelecendo um paralelo comigo, eu chegava  a pensar que aquela mulher era eu. 

Pra inicio de conversa, por exemplo, A música já se inicia com uma palavra que a intitula e me rótula, "rebelde"... " sou rebelde porque o mundo quis assim", diz o eu lírico, e eu já havia perdido as contas de quantas vezes tinha sido tachada de "rebelde", " revoltada". Eu nem sabia se o era, pois, na verdade, sempre fui passiva, quieta... Nunca andei fora da linha e nem passei por cima de ninguém. Minha única arma sempre foram as palavras e, talvez, o meu jeito visceral de usá-la tenha me dado essa alcunha. Confesso, porém, que já quis muito ser rebelde, no sentido boêmio, poético, político do termo ( se é que existe) . Fazer o que penso e sinto, sem sentir o peso do mundo sobre as costas. 

No entanto, para a Rebeldia, eu nunca tive talento e nem coragem. " porque nunca me trataram com amor", justifica a canção, na sequência, um fato com o qual eu não quero comungar, mas que, naquele momento, dando a mão á palmatória, precisava reconhecer. Sempre fui amada e até mimada dentro de casa. Eu conquistava crianças, adolescentes... mas meu público parava por aí, ou meu repertório, não sei. " as pessoas se fecharam para mim", era o que constatava. Elas não me viam, não me ouviam, ou simplesmente me ignoravam, e eu me retraia e me escondia... as vezes, quase Sempre, quando me percebia como o elemento que sobra ou incomoda  na vida do outro, eu mesma, pensando em estar premiando o outro com minha ausência, pegava tudo o que era meu ( meus poemas, sonhos, dramas, afetos) e me retirava do coração alheio. Eles podiam viver sem mim e eu já havia me acostumado a viver sem eles. 

Talvez , nisso tenha consistido a minha rebeldia... No fato de ser sempre ave sem pouso, que canta no espaço, para quem quiser ouvir,  e voa para outro céu, quando a tempestade ameaça a cair ou  quando o espaço parece ser pouco acolhedor. Sim, eu me acostumei a ser instinto e me conformei com o fato de ter que voar sozinha sempre que necessário. "Independência", "liberdade", "solidão", " egocentrismo", "instinto de sobrevivência"... não sei... Sei apenas  que me acostumei a passar pela vida dos outros e que, naquele momento, sentia que estava, por conseguinte, passando pela minha própria vida, levando o que era meu ( sonhos não realizados, afetos não distribuídos) e sim, naquele momento de tribulação,  eu sentia que estava me tornando rebelde, revoltada , inconformada com a minha realidade e com todas as injustiças do mundo. 

Assim, eu dizia para mim mesma, no compasso da canção , " Eu sou rebelde porque sempre sem razão me negaram tudo aquilo que eu sonhei " . Sim, sonhos negados... sonhos quebrados. De repente, todo pequeno desejo ia sendo impedido de acontecer. As portas que antes se Abriam, começaram a fechar. Eu tinha a chave, mas  as portas iam se  trancando por dentro e eu ia me consumindo de todo. Eu vivi momentos dolorosos... culpabilizei-me e até me autoflagelei , por me sentir totalmente destruída, vazia. Sem vida. E quando eu indagava: e outros?  Respondia que " me deram tão somente incompreensão"... quem não se afastou de mim, aprendeu a me diminuir e tirar os créditos que eu nem cheguei a pedir. 

E, assim, sozinha, no limbo, lembrando de tudo o que já havia passado e das lutas travadas e das lágrimas e dos sonhos, tudo o que meu coração dizia era que " eu queria ser como uma criança, cheia de esperança e feliz "... livre e leve. Por quê ? Porque na fase mais difícil de minha vida, só elas me abraçaram . Só elas me cuidaram. Uma menina, vinha me roubar da tristeza, só para pentear os meus cabelos, por exemplo. 

Nos dias mais tristes, elas estavam lá e , de repente , o dia passava e as dores desapareciam. E, sim, eu queria ser como elas... " cheia de esperança", em dias melhores, Pois, entendi ali, que o que dá sentido a vida são os sonhos e o que nos mantém de pé, após cada golpe que recebemos, é a esperança. Assim, eu queria ter o brilho dos olhos de quem tem a plenitude da vida. 

Além disso, naquele momento, eu não queria ser mais estrela, como já havia desejado, eu só queria ser gente e ser gente " feliz".  " Eu queria dar tudo o que há em mim... tudo em troca de amizade"... queria ser capaz de tocar as pessoas, de cativa-las, conquista-las, para que o fato de eu fazer tudo por elas não fosse uma carta sem resposta.  Eu queria acolher e ser acolhida pelo outro " e cantar e viver, esquecer o rancor... E sonhar e sorri e sentir só amor"... queria ter somente o encanto de uma vida comum, cheia dessas coisinhas comuns que lhe atribui significados.   Nem o brilho das estrelas, nem aplausos de multidões, como o eu-lírico da canção, eu só queria ser amor. É o que devemos ser, não é? Enfim... o que importa nisto tudo é perceber quão poderosa é a arte, seja ela literária ou musical, e o quão atemporal também o é, pois ultrapassa as fronteiras geográficas, temporais e penetra no mais íntimo do ser pessoas plurais, dando significados   até para o que o próprio ser não consegue definir. 

As pessoas são efêmeras, então, mas a arte é eterna; as pessoas são pequenas e enfim , toda arte é gigante. cabe o mundo dentro de um poema, sabe? É possível, eu sei , que caiba o mundo numa pessoa. Só não sei se cabe em mim, pois sou pequena demais. E sim, choro ao ouvir a canção de Lilia, ela faz com que eu me reconheça pequenina.  recentemente, confesso, me senti estranha por ter sido reconhecida por um amigo nas letras da musica em questão, mas, pensando bem, é mágico quando a gente se encontra numa arte e quando somos encontrados pelo outro na mesma arte é sublime, pois dá evidência de que, realmente, cabemos dentro da letra da canção.


Nem tudo outra vez


(Inspirada na música Tudo Outra Vez de Belchior) 

Deolinda Marques 

Hoje, mais do que costumeiramente, amanheci sentindo uma enorme saudade, mesmo não estando distante de casa. Aliás, essa saudade talvez seja por estar há tanto tempo dentro de casa e pela solidão ter sido agravada por tantas músicas que nos transportam a tempos e lugares distantes. Senti saudade de tudo e, principalmente, dos amigos e das nossas reuniões na casa de todos nós, o Falecido Amor.

Mas esse momento atípico tem servido não apenas para sentir saudades. Tem nos feito sobretudo descobrir a inutilidade de tantas coisas que considerávamos importantes, mas que agora se configuram totalmente sem serventia. Sapatos, roupas, joias... para quê? As roupas, mesmo as mais leves e consideradas adequadas ao nosso clima, ou se estragaram ou já não nos cabem mais – estão apertadas. Sapatos, sandálias se decompõem, uma vez que apresentam vida útil com prazo de validade.

Relembrei tantos fatos da minha mocidade que insistem em se embaçar, distanciados pelo tempo. Avivada pelo amigo Elves, ressurgiu a imagem da rua Santa Rosa e da minha época de normalista (não tão linda, mas feliz), recheada de sonhos, fantasias e aventuras. Revivi, talvez, a maior de todas as aventuras: ficar à beira da pista na BR-316, aos domingos à tarde, pedindo carona aos caminhoneiros, para voltar do Km-75 depois dos mais belos finais de semana vividos na adolescência.

Constatei que, o que nos faz sentir saudades não é a falta de notícias, tantas vezes sentidas em épocas de comunicação difícil. Essas, hoje, temos muitas e de forma instantânea. A internet, através das redes sociais, tem nos “salvado” de ficar o tempo todo sozinhos a cismar. As conversas, a troca de informações, as brincadeiras têm conseguido amenizar a solidão, mas também nos dão a certeza de que nada substituirá a presença física, o aperto de mão, o abraço, o sentir o cheiro e calor das pessoas que amamos.

Os livros, os desabafos escritos, as conversas “dos poetas da madrugada” por meio do WhatsApp, mesmo sozinha no fundo da rede (não branca, mas) vermelha, têm ajudado imensamente a manter viva a nossa esperança. Quantos planejamentos, sonhos, projetos (talvez nunca realizados) alimentam nossas forças para enfrentarmos o dia-a-dia e a saudade de tantos amigos que se apressaram e se mandaram antes de nós; não nos esperaram para embarcarmos juntos.

Essa saudade que para mim sempre foi o sentimento de querer tudo outra vez, me fez ver e afirmar com toda convicção que, toda essa experiência nos permitiu adquirir um conhecimento grandioso que poderia ser certificado em muitos diplomas de sofrer nunca conseguidos nem mesmo nas mais renomadas universidades. São experiencias fortes, como a de ver a morte bem de pertinho e perder tantas pessoas conhecidas e queridas, as quais eu não quero vivenciar nunca mais outra vez.

 

Bocaina-PI, 24 de abril de 2021.


Amiúde


(Inspirada na música Chão de Giz de Zé Ramalho) 

Rômulo Rossy Leal Carvalho

Corro o sério risco

Em que me arrisco

Ser feliz.

E, assim, em virtude

De viver amiúde,

estou num chão de giz.

 

A canção-poesia

Que clareja maresia

Atropela meu ar.

Quedo desconfiado

Do selo dourado

Que vem me selar.

 

Submeto-me, sem empalho

A olhar Zé Ramalho

Falar enquanto canta.

Poucos assim o fazem

Quando dores jazem

Uma outra nos espanta.

 

O confete da canção

Fala-nos ao coração

E, aquém a ela, laureia

O celebrar infrene

De um amor solene

Que o tempo medeia.

 

As cinzas do cigarro

Que sobraram no barro

Onde tecido o amor

Na força do oxigênio

Concederam ao gênio

Célebre esplendor.

 

Ah, de tão sugestiva

Memorável, afetiva

Se fez a canção.

Torno a me encantar

Quando a declamar

Envolvo meu coração.

 

Assim, ó, juventude!

Riqueza amiúde.

Faça o que diz.

Feliz a herança

Que brinda esperança

Em um chão de giz.


O grande dia



(Inspirada na música O Pidido de Elomar) 

Romanilta Rocha

   Fim da década de 1990. Fincada no sertão piauiense, a Cidade de Dom Inocêncio, a antiga Curral Novo era um daqueles lugarzinhos que pareciam ter saído de algum romance ou novela.           Era outubro, a manhã já nascia abafada, prenúncio da tarde causticante que mais logo apontaria.

   Maria do Socorro Costa, a Maricas, antes mesmo de a barra do dia se firmar, já se encontrava de pé, pronta para a lida diária, botando comida para as galinhas; regando o canteiro; limpando, espanando os cômodos da sua casinha e cuidando do precioso jardim de rosas multicores.

   Ainda era cedo, mas  o “dicumê” dela e Bonitão , o seu gato de estimação, que descansava preguiçosamente aos seus pés mais da metade do dia, já estava preparado. Por ser de fato muito bonito, o bichano não demorou a ganhar este nome, naquela tarde vazia, há anos , quando apareceu sorrateiro no quintal de Maricas, que o acolheu (talvez usar recebeu) como se recebe o amor da sua vida. Todos os mimos e carinhos eram para ele.

   De súbito, o arisco felino levantou a cabeça e, num salto veloz e matreiro, pôs-se em sentinela. Um forte barulho de buzinas de carros se aproximava, rasgando as veredas daquele lugarejo, quebrando o silêncio daquela manhã calorenta e anunciando a chegada dos forasteiros.

   Maricas abriu a portinhola contígua ao jardim, avistou que ao longo dos caminhos, algumas camionetas e pequenos caminhões rompiam o matagal que quase fechava a trilha de acesso à pequena cidade. Eram os feirantes, vindos das bandas de Remanso, Casa Nova, na Bahia e, alguns de Petrolina, no Pernambuco, que a cada final de mês rumavam a Dom Inocêncio, pois era o dia da grande feira ou o “feirão”, como carinhosamente os moradores dali denominavam este acontecimento.

   Entrando em casa, Maricas apressou o asseio, engoliu a sua tapioca com café fervente, pois não queria perder tempo, estava ansiosa para ver tanta sorte de miudezas, bijuterias, roupas, guloseimas, uns “ trens” para casa, enfim um mundo de quinquilharias que aqueles feirantes traziam. Não tinha um só inocentino que não ficasse extasiado , tomado de alegria pelo o dia do feirão. A cada nova chegada destes comerciantes ,

Maricas e o restante do povo ficavam pasmos, divididos entre a admiração, o mistério e a curiosidade que aquele acontecimento sempre inspirava.

   O Gato Bonitão, tão logo instigado pela presença da caravana que se aproximava, eriçou os pelos e partiu em direção a um canto tranquilo e escondido da casa. Maricas, em vão, dizia:

   - Bonitão, não corra! Fique para ver os moços...Eles trazem tanta boniteza...

  Inútil seus apelos. Apenas ela e, mais ao longe, dois ou três curiosos já estavam de pé. Dos alpendres de suas casas saudavam, acenando alegremente, aquele cortejo tão esperado. A movimentação que tomaria a cidade era sempre bem-vinda.

   A carreata dirigiu-se para os arredores da praça que era próxima da igreja de uma torre só e que era dedicada ao Sagrado Coração de Jesus. Também próximo , já se encontravam alguns cavalos e burros amarrados ao tronco do frondoso pé de Juazeiro. Algumas mulheres estavam em seus rústicos quiosques e, com certa alquimia, preparavam desjejum para os famintos, pois o cheiro do café, do cuscuz, do beiju e da carne de bode já exalava de tão modo, que era um convite à gula mesmo dos que tivessem com o estômago forrado. Tamanha profusão de odores e de sabores seria aquele dia.

   Após os feirantes estarem alimentados, de supetão, as barracas já se encontravam dispostas . Maricas, com algumas notas de reais rotas , guardadas com grande disciplina desde o início do mês, mais algumas poucas moedas, era sempre uma das primeiras freguesas.  Não que no finalzinho da tarde , não retornasse com algumas economias e não fosse para pechinchar aquele vidro de loção ou mesmo aquela tigelinha de porcelana barata que ficara namorando pela manhã.

   Por volta do meio-dia, o feirão estava no seu ápice. Os alunos e as professoras , recém saídos do Ginásio de Dom Inocêncio, corriam em um frenesi para aproveitarem as delícias daquele dia. Os jovens não se cansavam de apreciar tantas novidades: ray-bans, bonés, cds, espelhos, pelúcias , eram tantas coisas lindas , quase como um universo onírico de tamanho esplendor. Ao redor, nas bodegas e bares, a alegria imperava. Sanfoneiros se revezavam num forró pé-de-serra, convidativo até para os mais tímidos. Riba do Acordeon, que também arranhava o violão, agora tocava a melodia “O'Pedido"de lomar Figueira,que parecia ter sido escrita para a trilha sonora daquele povo e daquele lugar. O forró era um apelo para as danças e para as promessas de amor eterno às belas moçoilas, ainda que o eterno só durasse apenas até o pôr-do-sol daquela sexta, quando a magia do dia da feira se acabava. O cheiro da fartura das comidas do interior impregnava o mercado de tal forma que, com sofreguidão, os feirantes e os visitantes pediam e repetiam a galinha caipira, a maria isabel de bode, o sarapatel, regados à dose da cachaça branquinha ou da cerveja.

   No fim do dia, Maricas, com o corpo quase octogenário, voltava cansada, porém feliz, qual uma menina faceira, rejuvenescida por tamanha maravilha que se traduzia no dia da feira.

   A lua despontava grandona por detrás dos morros que circundavam aquele lugar, Maricas deu-se conta da sua solidão e falou:

   - Bonitão, vem ver a lua! Deixe de preguiça!

   Mal sabia que para os gatos e os enamorados, telhados noturnos em noites enluaradas são sinônimos perfeitos para o amor e para exaltação da liberdade, da vida… Àquela hora Bonitão já estava longe...