Desafio: Memórias de Leitura 

DAS LETRAS AOS LIVROS


Deolinda Marques

 


Há muito tempo penso em reconstituir a minha História de Leitura antes que a memória comece a falhar e muitos fatos, que já não têm tanta nitidez, se tornem cada vez mais distantes.

Hoje, com o conhecimento que adquiri ao longo da vida, eu diria que o meu gosto pela leitura contraria todas as teorias que se tem sobre o processo de aquisição do hábito de ler, constituindo-se uma história de exceção. Digo isso porque só adquiri esse gosto depois de quase adulta. A começar porque, como quase todas as crianças que nasceram no interior do Nordeste na minha época, só fui para a escola com seis anos de idade, ainda como uma exceção, pois a grande maioria nem sequer a escola ia, formando a grande massa de analfabetos.

Como mencionei, fui à escola pela primeira vez com seis anos completos, juntamente com minhas duas irmãs (a mais velha com 10 anos e a outra com quase nove) e uma prima, que também já contava nove anos. Assim sendo, comecei em vantagem sobre os outros. Lembro ainda que, de todos os alunos daquela turma, eu era a menorzinha.

Não tenho lembranças se já havia andado naquele lugar antes... O dono da casa era um vizinho nosso por nome Hildebrando e que nós o tratávamos por tio Brando. Lembro que o conhecia do rio, dando água ao gado; era um homem grosseirão, de cara fechada, mas que nos tratava com muito carinho. E sua esposa, tia Isabel, conhecia das lavações de roupa, também no rio. Era uma pessoa muito meiga e simpática. A casa deles não era tão distante da nossa, mas já noutra comunidade – Cachoeiras – do outro lado do rio e, na época, para o meu tamanho, parecia uma longa distância. Além de tudo, tínhamos que atravessar o rio, que por algumas vezes não nos permitia, chegando a perder até três dias de aula seguidos por conta das enchentes. Lembro ainda que a passagem do rio é um fato que contribuiu para alguns constrangimentos, como deixar cair dentro d’agua o material escolar (meu pai pacientemente comprava outro) ou chegar à escola com a roupa molhada. Comigo isso sempre acontecia. Quando não molhava toda a roupa, como era pequenina, sempre molhava o fundo da calcinha. Além do incomodo, ainda tinha medo dos meninos “danados” me aperrearem, dizendo que eu tinha mijado na roupa. Não sei ao certo o mês nem o ano. Mas tudo indica ter sido em janeiro de 1965.

No primeiro dia, fomos acompanhadas por nosso pai, pois dele foi sempre o desejo e o incentivo para que estudássemos, e a quem cabia nos entregar à professora e ao dono da casa, como era de praxe. De certa forma este último também assumia uma certa responsabilidade com todas aquelas crianças. Lembro que, ao chegarmos à casa de tio Brando, fomos bem recebidas por todos. Fui apresentada à professora por nome Maria Arabela, pela qual me encantei pela beleza e também com o nome. Achei um nome muito diferente...  A sala de jantar da casa (transformada em sala de aula) me parecia enorme. As cadeiras, que eram levadas por cada aluno, eram dispostas meio em círculo (só não totalmente em círculo porque a sala era retangular) e, em frente, ficava a mesa da professora, de onde ela podia ver e acompanhar todos os alunos. A turma era muita heterogênea. Tinha de rapazes, moças, e até eu, que era a menorzinha, por isso fui colocada ao lado da professora, como uma forma de proteção. Lembro que alguns rapazes e moças sentavam em bancos de madeira. Para nós, papai levou cadeiras grandes. Mas, no dia seguinte, teve que providenciar uma cadeirinha para mim, pois, na cadeira grande, eu ficava com as pernas penduradas e tinha dificuldade até para sentar e levantar.

Desse mês de aula tenho poucas lembranças. Recordo apenas que sentia muito sono, até porque a cantilena de todos os alunos lendo em voz alta era como uma cantiga de ninar; que chamei muita atenção dos que visitavam a escola (era comum as pessoas da comunidade  ir conhecer – ver –  a escola; era uma grande novidade) pelo meu tamanho, bem como por ser considerada muito inteligente pela professora. Lembro ainda que alguns alunos davam trabalho à professora, que recebiam a visita dos pais e as ordens para castigá-los eram dadas em público à professora. Quando autorizada, a professora fazia isso sem nenhum constrangimento. A palmatória ficava sempre em cima da mesa e representava toda a autoridade da professora, juntamente com a “licença” – uma espécie de símbolo de permissão para que o aluno pudesse sair da sala para qualquer tipo de necessidade fisiológica ou para beber água. A licença era uma pedrinha branca e bonita, e só com ela em mãos o aluno podia se ausentar. Por isso era tão disputada. Os alunos mais espertos chegavam a correr para pegar a licença. Os mais tímidos chegavam às vezes a fazer xixi na roupa porque não conseguiam pegar a dita cuja.

E foi por conta dessa “bendita” licença que passei um dos primeiros constrangimentos na escola. Um dia, sentindo dor de barriga, não conseguia pegar e licença. Quando pensava em levantar-me, alguém já havia pegado. Me apertei tanto que tive de cochichar com a professora, que me permitiu sair sem a pedra. Os homens saíam pela porta da frente e as mulheres pela porta da cozinha para fazer as necessidades no mato. Isso tudo porque, naquela época, não havia sanitário nas casas.  O pior foi a grande enrascada. No oitão da casa, para onde iam as mulheres, não havia nada para fazer a limpeza, correndo-se o risco de usar folhas coceirentas... Demorei muito e voltei para a sala sentindo enorme vergonha.

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Como já foi dito, não tive grandes dificuldades em reconhecer as letras do alfabeto. Lembro que, logo no primeiro dia, já dei a primeira lição, enquanto alguns alunos levavam semanas numa mesma lição. O método de alfabetização era o mais tradicional possível (e hoje até condenado). Cada aluno levava sua cartilha de ABC e, posteriormente, um lápis (grafite) com borracha e um caderno, quando já tivesse “dado” todos os ABC, para ser iniciado no processo de aquisição da escrita. Isso constituía todo o material escolar, que era comprado pelos pais; assim como o professor, que era também pago por todos os pais. Vale lembrar que não havia escola pública. 

O aluno ia até à mesa, o professor passava a lição (lia em voz alta uma vez e às vezes uma segunda; o aluno repetindo). Depois o aluno voltava à sua cadeira e continuava lendo, ou tentando, sozinho. Todos liam em voz alta para que o professor pudesse observar quem estava realmente estudando. No final da manhã – ou quando o aluno falasse que já sabia a lição – ia até à mesa e lia para o professor. Dependendo do aluno, podia dar várias lições por dia. Mas os alunos, na sua maioria, se esquivavam de ir antes do final da manhã porque, aquele que fosse e errasse, dependendo do professor, podia até ser castigado.

Para o reconhecimento das letras, a professora cobria todo o alfabeto, deixando apenas uma letra de cada vez descoberta. Para isso era aberto um pequeno orifício redondo numa folha de papel, que mal cabia a letra, para não dar dica ao aluno da sua localização naquela sequência. O rigor era tão grande que, quando se passava para o alfabeto minúsculo, mudava-se o papel com um buraquinho ainda menor. Daí por diante, tudo era avalição oral. O aluno deveria ler a lição para o professor; o que também se constituía uma dificuldade. pois muitas vezes o aluno sabia a lição mas, quando ia ler para o professor, por timidez, errava tudo ou nem conseguia falar.

Como todas as crianças, estranhei quando percebi que letras de tamanho e formato completamente diferentes tinham o mesmo nome. Assim como não entendia porque aquelas cinco (a – e – i – o – u) mereciam destaque e às vezes vinham separadas. A professora nunca me informou o nome que tais seres recebiam: vogais e consoantes.

Passei para as sílabas e avancei com facilidade. Matei sozinha a charada que era só saber o som daquela letra e repetir com aquelas (as vogais) que se repetiam. Lembro que senti dificuldade em certos grupos consonantais, como as “família” do “R” e do “L”. A língua não dava! (Informando que essa história de “família” só vim a saber quando já era professora). Lembro também que senti vergonha na fila do “C”, quando chegava no “U”. falar aquele nome feio para a professora era terrível. Também não entendia porque o “C” com as vogais “e” e “i” tinham que ser pronunciado diferentemente, mas eu sempre queria dizer “c com e = qué”, c com i = qui”. Hoje sei que é uma das dificuldades do nosso “bendito” Alfabeto não-fonético!

Depois das sílabas, a Cartilha trazia algumas páginas com listas de palavras soltas e, por fim, uma página com frases. Dessa, tenho lembrança que pronunciava corretamente as palavras, mas não entendia absolutamente nada. Era uma lista de provérbios e guardo até hoje dois deles: “Quem tudo quer tudo perde” e “A preguiça é a chave da pobreza”. Tentava entender o sentido dessas frases, mas não conseguia. Como quero uma coisa e perco?  “Preguiça” eu sabia o que era, e “chave” também. Mas não entendia como uma chave podia abrir a preguiça. Não entendia nada (é claro!) de linguagem figurada.

O processo de aquisição da escrita consistia em começar “cobrindo letras” e depois desenhando-as abaixo das que a professora escrevia. A escrita era meramente cópia. Depois passava-se para as sílabas, e assim por diante, sem nenhuma atividade prévia para desenvolver a coordenação motora. Assim sendo, era muito comum as crianças sentirem dificuldade para segurar corretamente o lápis. Às vezes escreviam com muita força e furava o papel com a ponta do lápis ou apagando várias vezes, principalmente quando a borracha estava velha ou a ponta do lápis ruim. E por falar em ponta de lápis, essa sempre fora uma das minhas grandes dificuldades. Não havia apontador e as pontas de lápis eram feitas com facas ou lâminas de barbear. Eu não sabia fazer direito e ainda tinha medo de me cortar. Papai era quem sempre fazia a ponta dos nossos lápis. As atividades de escritas eram feitas em casa à noite, pois na sala de aula não tinha como. Não havia onde apoiar o caderno.

Durante a semana tinha aula e aos sábados era Dia de Argumento. Os alunos ficavam em pé em círculo e a professora fazia perguntas. Se o aluno respondesse corretamente, passava para o seguinte, com nova pergunta. Se o aluno perguntado não soubesse ou respondesse errado, a pergunta passaria para o seguinte até alguém acertar. O que acertava pegava a Palmatória e dava um “bolo” (ou quantos quisesse) em cada um dos que tivessem errado. Tinha alunos cruéis que davam muitos “bolos” e com muita força. Tinha outros que eram bonzinhos: davam apenas um “bolinho”, e bem levezinho.

No último Argumento do mês de aula na casa de tio Brando, a professora fez uma pergunta (não lembro qual) e todos foram dizendo que não sabiam (ou respondendo errado) e, quando chegou em mim, eu acertei. Foi a maior sensação para todos que estavam assistindo à argumentação (e naquele dia tinha muita gente porque era a despedida da Escola) a menorzinha da sala dar “bolo” em todos aqueles marmanjos.

Terminou o mês de aula juntamente comigo terminando a Carta de ABC. Naquele último dia de aula, foi um chororô, pois já havíamos nos apegado à professora e aos colegas. Alguns eram muito bons pra mim, principalmente os mais velhos que me davam pedaços de milho cozido, frutas de xique-xique, imbu e, às vezes, até florezinhas do campo.

Naquele mesmo ano, depois do inverno, foi a vez de meu pai contratar a mesma professora e de nossa sala se transformar em sala de aula. Não sei ao certo o mês; talvez julho porque ficaram na lembrança os banhos no rio com minha professora (que penteava cuidadosamente meus cabelos) quando o alho já estava grande nos canteiros.

No meu ambiente familiar e cercada de todas as atenções, voei na aprendizagem. Recordei rapidamente a Cartilha de ABC e parti para a Cartilha Lili. Que encantamento! Além de ser colorida, achava as lições muito fáceis. Eram frases curtas e com muitas sílabas e palavras repetidas. Tipo: “O bode bebe, bebe. O bode bebe na bacia. O bode é do Bebé.” Achava meio bobas e sem sentidos as lições. “Como bode beber em bacia?”, pensava. As ovelhas e os bodes do meu avô bebiam água era no rio. Ainda nesse mês, avancei muito na escrita, com ajuda (à noite) da professora, sobretudo fazendo a ponta do lápis que quebrava várias vezes, e entrei no mundo dos números. Começando pela Taboada, que decorei com muita rapidez, aprendi fazer conta de somar e diminuir (Adição e Subtração) com muita facilidade, causando admiração em todos; até porque, nesse campo, meu pai sabia muito me auxiliar. Mas o mês de aula chegou ao fim e aí que o chororô foi grande. A convivência com aquela professora na nossa casa foi um marco para sempre.

Não posso deixar de mencionar um fato que aconteceu nessa época e que marcou pra sempre minha vida: foi quando descobri meu verdadeiro nome. Já alfabetizada, lia com certa fluência, embora tropeçasse na pronuncia de muitas palavras que eram completamente desconhecias do nosso uso vocabular; agora precisava avançar na escrita. Uma noite, respondendo a lição, quis assinar meu nome no final. Aí foi quando meu pai falou: “Você precisa escrever seu nome correto. Seu nome é Deolinda”. Que susto! Aí escreveu, com aquele “D” florado, o nome.  Detestei! Além de muito grande (era acostumada escrever simplesmente Linda, como era chamada por todos) aquela letra inicial era muito difícil de fazer. Protestei, mas não tive alternativa. Tive que me acostumar com minha nova identidade. Deixei de ser Linda para me tornar Deolinda.

 

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No ano seguinte, a escola foi na casa de um vizinho bem próximo – Luiz Delmira. A professora era uma mocinha bem jovem – Salete – que era nossa vizinha e amiga; e a recomendação era que tínhamos que respeitá-la.  Bocaina já havia se emancipado e a professora já foi paga pelo poder público. Lá não avancei muito, não. Como a professora não tinha muita firmeza, alguns meninos davam muito trabalho, atrapalhavam muito, mesmo tendo, vez por outra, a interferência da dona da casa – Pretinha –, ajudando na disciplina. Lembro também que tivemos alguns problemas de saúde (acho que Tosse Braba) e faltamos muitos dias de aula. Essa professora também não sabia ensinar muito contar. O que me desestimulou um pouco, pois já sentia muita simpatia pelos números.

Recordei rapidamente a Cartilha Lili e passei para o Livro Saber. Nesse tive uma certa dificuldade. Acha as lições difíceis (sem ilustrações); decifrava as palavras, mas bem pouco entendia o que estava lendo. Foi neste livro que, pela primeira vez, vi um poema. Lembro que um deles era “Velhas árvores”, de Olavo Bilac. Também fui submetida a interpretar umas imagens. Era aquelas dos burrinhos amarrados que precisavam se unirem para poderem comer os montinhos de capim. Olhava, olhava mas não entendia nada. Depois papai me explicou.

No meio do ano, a escola vai para nossa casa, com outro professor. Era um rapaz – Luís Francisco Vieira, conhecido como Luís de Chico Brejo –, meio metido a galã e por quem as alunas maiores começavam a suspirar. Esse era firme na disciplina, mas muito amigo de todos os alunos e, para minha alegria, gostava muito de Matemática. Me dava uma atenção especial e admirava minha inteligência. Acho que até nos Argumentos me favorecia, fazendo-me sempre as perguntas mais fáceis. Eu sempre acertava todas e dava “bolo” em todo mundo. Desse período tenho boas lembranças.

No ano seguinte, o mesmo professor, mas dessa vez a escola muda-se para a casa do seu pai. Lá, a sala também era grande e moravam na casa apenas ele, seus pais – Chico Brejo e a Nêga –  e seu irmão Antônio, que o ajudava, passando e tomando lição dos alunos, tendo em vista que a turma crescera muito e um só professor já não dava conta sozinho,  e, às vezes, até lhe substituindo alguns dias. Acho que a escola mudou pra lá sobretudo porque na nossa casa tinha muitas crianças (meus outros irmãos) que ainda não estavam em idade escolar e atrapalhavam muito, correndo pelo meio da sala e às vezes até chorando muito alto.

Dessa época, talvez o que tenha mais me marcado tenha sido o jardim que a Nêga cultivava, com uma variedade imensa (pra época) de flores: Rescendente, Cravo e Rosa de Canteiro, Imbigo de Velho (de várias cores; uns capeados) Jasmim Estrela, Bonina, Bogari e Rosas La França e Paroara... O jardim ficava no terreiro da cozinha, para onde saíamos (as mulheres) para as necessidades fisiológicas, e eu sempre adorava ver aquelas flores. Até hoje guardo na mente aquele cheiro de flores.

Outro fato marcante era poder sair da sala para outro cômodo da casa (um quarto), quando ia resolver as grandes operações matemáticas, pois o barulho dos outros alunos lendo em voz alta atrapalhava a concentração. Sabia todas as “casas” da Taboada na ponta da língua, o que me dava a oportunidade de “dar bolo” em todo mundo nos Dias de Argumentos. Dominava bem as quatro operações de conta: conta de “mais” com várias parcelas, tirando sempre a prova dos noves fora; conta de “menos” e de “vezes’ (que enchiam uma folha inteira do caderno) e as contas de dividir, “por até três letras”. Até hoje não sei como conseguia aquelas façanhas. Hoje recorro a uma calculadora até para as somas mais simples. Naquele ano, além do avanço nas contas, li todo o Livro Nordeste do Primeiro Ano e comecei no do Segundo Ano; desenvolvi a escrita de cartas, e lembro que fiz minha primeira redação sobre “As Férias”, quando voltamos em agosto, pois a escola já funcionava durante oito meses: de março a junho e de agosto a novembro.

 

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No ano seguinte (1968), meu papai decidiu que iríamos estudar na cidade, até porque aquela Escola Rural, além da turma ser multisseriada, não fornecia documentação e o ensino tinha passado a ser seriado. Ou seja uma série em cada turma e durante um ano. Decidiu também que eu e Quindor entraríamos no 2º ano e Hilda, como estava mais atrasada, por ter perdido muito tempo de aula por motivo de doenças, entraria no 1º ano.

Pela primeira vez, teria que sair sozinha da minha querida LG e teria que enfrentar o mundo, como o menino Sérgio de O Ateneu.

Foi meu primeiro desafio. Senti medo de não dar conta. O ensino era completamente diferente do que eu tinha costume. A distância de três quilômetros que tínhamos que percorrer a pé, um ambiente novo e estranho, meninos desconhecidos... Tudo era diferente. As carteiras eram dispostas em filas; havia o birô da professora, o quadro-negro, a caixa de giz, o apagador e a caderneta de chamada, que era guardada na gaveta da professora. Todos os alunos tinham o mesmo livro (Nordeste – 2º Ano) e a professora explicava a lição para todos de uma só vez. Tinha aula de outras matérias: História, Geografia, Matemática, Ciência e Português. Cada aluno levantava-se, lá mesmo em sua carteira, para ler em voz alta a lição (isso era um sacrifício enorme, por conta da timidez); as atividades em sala de aula eram copiadas do quadro, respondidas e mostradas à professora, que dava o visto e/ou corrigia; passava o Dever de Casa... As provas passaram a ser escritas (e mensalmente), às vezes também orais. Inicialmente senti um pouco o impacto, mas logo me adaptei sem grandes dificuldades.

A sexta-feira era dia de Recreação (desenho e recitativo). Detestava esse dia. Não sabia desenhar nem cantar; muito menos conseguia decorar poesias para recitar; morria de vergonha. Tudo tinha que ser decorado e, se repetíssemos músicas, poesias ou até mesmo desenhos, sofríamos o que hoje é chamado de “bullying”. Queria faltar à escola naqueles dias, mas minha mãe não deixava.

Quatro anos transcorreram sem nenhuma novidade. Tive como professores Dona Eva (2º Ano), José Humberto (3º Ano), Dona Enói (4º Ano) e Dona Hercília (5º Ano). Era um professor por ano e o ano todo, ensinando todas as matérias. Todos excelentes professores, cada um no seu estilo. Mas não tinha nenhuma motivação. Desse período, o único ganho, além da aprendizagem de conteúdos que me rendeu a aprovação no Exame de Admissão, foi a minha letra que mudou completamente. Já no 5º Ano passei a imitar a letra da professora (Dona Hercília) que era perfeita. Lembro que meu pai passou a elogiar minha caligrafia. Tirava boas notas, mas nunca me destacava em nada. Como sempre era da turma da minha irmã Quindor (que era mais velha do que eu quase 4 anos), ela era quem se destacava; era brincalhona, fazia amizade com todos da turma (inclusive se tornava amiga de todos os professores). Eu, muito tímida, continuava no meu canto, no anonimato.

Lembro que, no último ano no Elias Martins, apareceu, num canto da nossa sala, uma pequena estante de madeira com livros coloridos. Na hora do recreio, os alunos podiam pegar para ler. Mas eu nunca toquei em nenhum. Lembro que Quindor conseguia, com permissão da professora, levar livros para casa. Guardei o título apenas de um: Aladim e a Lâmpada Maravilhosa; mas não li.

 

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E assim, sem muitas novidades, fiz do 2º ao 5º Ano. Nós fomos a última turma a fazer o Exame de Admissão ao Ginásio. Naquele ano ocorreu uma Reforma no Ensino e foi abolido o Exame de Admissão, bem como o Primário passou a ser só até o 4º Ano e o Ginásio, do 1º ao 4º Ano também. Em 1973 houve uma mudança na terminologia, passando a ser denominado – da 1ª à 8ª série – Ensino Fundamental.

O Exame de Admissão era um verdadeiro Vestibular e barrava o ingresso de muita gente ao Ginásio. Fui fazer o Exame sem nenhum entusiasmo, sem nenhum interesse, pois não tinha perspectiva de ir estudar em Picos. Naquela época, só tinha Ginásio lá. Mesmo assim, sem estudar, passei e até com uma nota muito boa. Quando foi em março de 1972 meu pai decidiu, contra a vontade de todos, que iriamos fazer o Ginásio. Fomos (eu e Quindor), começando uma nova e desafiadora aventura. Eu era tão “criança” que fui para Picos ainda levando a minha boneca de estimação. Num canto da sala, armei sua redinha, tinha uma caixa com as roupinhas e, quando checava do colégio (Marcos Parente), ia brincar com a boneca.

Aos treze anos de idade, li o primeiro livro na minha vida. A professora de português, Dona Camila, mandou que fôssemos à Biblioteca escolher um livro para ler e fazer uma Ficha de Leitura. Eu não tinha ideia do que se tratava e como não falava com ninguém em sala de aula, subi ao 1º andar do prédio do colégio, pela primeira vez, entrei naquela Biblioteca enorme (que segundo Ozildo Batista, em artigo-denúncia, “virou bufa de anum”) e estava olhando os livros, completamente atordoada, quando uma colega, hoje uma amiga –  Caetana – me falou onde estavam os livros que serviam para o trabalho (hoje sei que era os de Literatura), mas foi logo adiantando que, os bons, já haviam sido escolhidos. Olhei, olhei e pequei um para levar emprestado. Escolhi pelo título, que guardo até hoje: As Maluquices do Imperador. Recentemente, procurei pesquisar e descobri que é um romance histórico de Paulo Setúbal.

Li o livro, sem entender quase nada e, como essa menina já havia se aproximado de mim, tomei coragem e comentei com ela que não tinha entendi quase nada do livro. Ela falou que era melhor eu fazer a tal Ficha de outro livro e também me explicou que os outros livros tinham sido escolhidos antes porque nem se precisava ler porque já havia fichas respondidas. Nesse momento descobri uma outra forma de burlar o professor, além da conhecida “pesca’’ cuja prática já conhecia. Não praticada por mim, mas por outros alunos.

Fui salva pelo gongo porque, no dia de responder à Ficha de Leitura, a professora realizou a tarefa em duplas e a mesma Caetana me convidou para ficar com ela.

Como primeira experiência de leitura, vejam que foi muito decepcionante e traumatizante. Talvez o que tenha me salvado tenha sido as aulas de Artes com as professoras Francisca Barros (na 5ª série) e Maria das Dores Rufino (na 6ª série). A primeira nos dava aula de canto e nos levou a música “Luar do Sertão” que entoamos em vários coros; a segunda levava poemas de Manuel Bandeira: “Meninos Carvoeiros”, “Balõezinhos” (lembro desses dois) e nos mandava ler em coro, ilustrar, criar outras formas de arte.

No Ginásio, foi só isso e adeus leitura!

Quando estava na 8ª série, mudaram-me para o Vidal de Freitas. Lá também havia uma significativa Biblioteca. Mas eu não tinha nenhum interesse por leitura. Não havia incentivo. Mas meu destino estava traçado.

Em setembro, por ocasião da Semana da Pátria, promoveram um concurso de redação. Mas os alunos da 8ª série não podiam participar. Hilda, minha irmã, que estudava a 7ª, me pediu para lhe ajudar escrever a redação, pois incialmente todos os alunos deveriam escrever o texto que valeria uma nota pra Português. Eu escrevi apenas para ela ganhar a nota, mas, para nossa surpresa, a redação “dela” ganhou o segundo lugar. O prêmio era nada menos que uma coleção de livros da capa preta (Série Bom Livro): O Guarani, Inocência, O Ateneu, Amor de Perdição, O Seminarista, Cinco Minutos – A Viuvinha, A Pata da Gazela, Dom Casmurro, O tronco do Ipê, A Moreninha, Iracema... Lembro bem desses. Quando vi aquela riqueza, fiquei com raiva por não ter podido participar do concurso e, por pirraça, Hilda não me deu nenhum dos livros.

Depois da Colação de Grau do Ginásio, voltei de férias para minha querida Lagoa Grande e o que me esperava era roça. Mas por ironia do destino caí com catapora. Doença terrível. Além de coceira, dá uma insônia danada. Sem conseguir dormir, comecei a ler A Moreninha. Me agradei do título... Mas, para minha surpresa, não queria mas parar. Minha mãe acordou e começou a reclamar, me mandando apagar a lamparina. Apaguei, mas não consegui dormir.

Como estava com catapora, não podia ir pra roça, muito menos fazer tarefas domésticas. Aproveitei e li o que pude daquela coleção que Hilda era a dona, mas acho que nunca leu nenhum dos livros. Viajei como nunca, conheci diversos lugares, vivi experiências maravilhosas, senti emoções desconhecidas, sonhei de olhos abertos... Estava contaminada pela catapora e pela tracinha dos livros. Lembro que lia a biografia dos autores e me encantava com as informações: estudou no Largo do São Francisco... Começava a fantasiar com uma biografia minha... Mas aquilo era um sonho impossível. Quando que aquela menina pobre da Lagoa Grande um dia seria escritora? Nunca.

Curada da catapora, não consegui ler todos os livros. As tarefas da roça e os afazeres de casa não me permitiram mais.

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Retornando as aulas, fui para a Escola Normal. Já sabia que iria ser professora; e a coisa mudou. Passei a me interessar por tudo, a me dedicar muito aos estudos.

Quando cheguei à Escola Normal, já moça, tomei contato pela primeira vez com as Revistas. Uma escola estritamente feminina (com predominância de moças e adolescentes), quase todas andavam com uma Revista escondida, uma vez que a Diretora – Dona Zizi – não permitia esse tipo de leitura na escola. Comecei a tomar revistas emprestado (Contigo, Capricho, Sétimo Céu) e logo me tornei uma devoradora das fotonovelas da “Revista Capricho”. Hoje tenho certeza de que foi nesse período que fui picada definitivamente pelo “mosquito” transmissor do gosto pela leitura.

Eu estudava pela manhã e minha irmã Quindor à tarde, numa turma de moças mais velhas e muitas senhoras casadas. Passei a ler os livros que eram emprestados à minha irmã e os que ela pegava na Biblioteca da Escola. Lembro-me que uma das que estudavam com Quindor e nos emprestava muitos livros era Gracinha Lima. Talvez tenha sido dela o livro que me transformou na leitora que sou hoje.

Lembro que, numa aula de Geografia, Dona Darci de Deus nos falou dos escritores piauienses, Contou-nos que tinha um escritor de Picos chamado Fontes Ibiapina que escrevera um livro: Chão de Meu Deus (achei esse título lindo!) e outro de Francisco Santos, por nome Chico Miguel, que tinha um livro por nome Areias. Era difícil acreditar. Para mim, os escritores eram seres meios ficcionais. Era como se não fossem de verdade. Queria conhecer aqueles livros, mas sentia vergonha de ir até a Biblioteca pegá-los emprestados.

Não tínhamos nenhum tipo de entretenimento, a não ser as brincadeiras com os amigos da Rua Santa Rosa. Por isso às vezes dormíamos muito cedo. Lembro que depois da janta, deitei-me na rede e comecei a ler o livro que Quindor havia trazido... E só parei quando terminei, apesar das reclamações das outras para que eu apagasse a lâmpada.

Guardei apenas o título do livro, que lembro até hoje, por isso pude descobrir a autora. Não lembro o nome de nenhuma personagem; quase nada ficou sobre o enredo. Apenas que é uma moça que reencontra um amado quinze anos depois. Daí o título: Quinze anos depois. Muitos anos depois, descobri que a autora é uma escritora piauiense: Lilizinha Castelo Branco.

Dessa noite até hoje, nunca mais parei de ler, apesar da dificuldade de encontrar livros disponíveis, uma vez que, só depois que comecei a trabalhar como professora, pude comprar meu primeiro livro, na Livraria Educativa, em Picos. Adivinha de quem? Chico Miguel: Universo das Águas. Passei a viver procurando Bibliotecas (por isso já fui apelidada até de “Tracinha”), pedindo livros emprestados e, quando pude, passei a comprá-los, apesar das reclamações de minha mãe que dizia que “tudo que eu ganhava era pra comprar papel”. E eu sempre respondia: “Não é papel, mamãe; são livros”. E sempre digo que eles (meus livros) são a única riqueza que tenho na vida.

Pois bem, terminei o Curso Pedagógico em outubro de 1978, voltei à minha querida LG, depois de uma semana de choro, que praticamente só emendou com outro maior. Dia 18 de novembro nos mudamos definitivamente para Bocaina, deixando para trás o chão que me viu nascer, onde vivi os melhores e mais ingênuos anos da minha vida. Dia 12 de dezembro foi a minha Formatura (sem festa), recebendo como presente do meu amado pai o anel de professora que guardo até hoje, como uma das mais amadas relíquias.

Na primeira segunda-feira de março de 1979 (com 20 anos) estava numa sala de aula como professora de Matemática. Trabalhava à noite numa escola da CNEC; durante o dia, nos afazeres domésticos, e continuava ajudando meu pai e meus irmão na roça e nos serviços da vazante. Mas todo restinho de tempo que me sobrava era dedicado à leitura, bem como toda moedinha era aplicada na compra de livros, como tantos outros, da Ediouro ou na Livraria Educativa, em Picos (terra do “já teve”), do amigo Erivan Lima.

Como era professora dessa área, em 1980 fiz o Vestibular pra Matemática, mas não passei. Mais uma vez a linha do destino fez-se forte. Em 1982, quando fui novamente inscrever-me no Vestibular, decidi que seria pra Letras. Sem estudar nem um dia, especificamente para isso, passei, em boa colocação, na Universidade Federal da Paraíba. Vale lembrar que naquela época só havia Faculdade nas capitais ou em grandes cidades, como Campina Grande.

Considero desnecessário relatar o quanto me encontrei no Curso de Letras e o quanto cresci como leitora, conhecendo os mais diversos autores (lembrando aqui o meu queridíssimo professor de Literatura Ariosvaldo Guimarães, exímio leitor) e me encantando pela Teoria da Literatura e pela arte de escrever (com outro tão querido professor Edilson Amorim). Foi somente nessa época (depois de adulta) que pude ter contato com a Literatura Infantil, através de um Projeto de Extensão da Universidade numa escola pública de Campina Grande, do qual participei e que contribuiu imensamente para a minha formação como professora. Nessa época, li tudo que pintou em minha frente. Passava praticamente o tempo todo lendo e me encantei por Ana Maria Machado, Ruth Rocha, Lígia Bojunga, Sylvia Orthof, Ziraldo, para citar apenas alguns. Foi também, completamente fora de época, que conheci o mundo dos Quadrinhos; me apaixonando perdidamente por Maurício de Souza e suas inesquecíveis crianças. Acho que virei também uma delas.

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Como pode ser constatado, eu me considero uma exceção, como leitora, pois a minha história contraria todas as teorias de formação de leitores que conheci no Curso de Letras. Não li quando criança; não tive contato com livros infantis (só depois de adulta); não recebi nenhum tipo de incentivo à leitura (não lembro de nenhum professor me dizer que era importante ler). Comecei com uma leitura impositiva, e pelos clássicos, para uma atividade hoje condenada: Ficha de Leitura. Acho que fui salva pela catapora.

Mesmo assim, me considero, hoje, uma leitora razoável. Leio tudo (e com muito prazer). Tenho anotado o título e o autor de todos os livros que já li, mas não sei ao certo quantos. Há algum tempo não atualizo a lista. Também perdi as anotações do ano de 2007. Mas já deve passar muito de mil livros. Meu recorde foi 108 livros num ano. E só conto os que leio de capa-a-capa. Tenho poucas preferências. Sempre digo que, “só não gosto de ler Bula de Remédio”. Tenho a leitura como entretenimento, diversão, passatempo preferido. Também gosto muito de ler Teoria da Literatura e os novos escritores, principalmente os piauienses, por considerá-los de excelente qualidade. Da literatura universal, o meu autor preferido é Gabriel García Márquez. Entre os brasileiros (na ficção), sem nenhuma dúvida, o predileto é Graciliano Ramos. Considero São Bernardo o melhor romance da nossa lavra e já perdi a conta de quantas vezes o reli. Dos mais recentes, sou leitora apaixonada de Moacyr Scliar e... posso citar Jailson Klein? Entre os poetas, reconheço a grandiosidade de Drummond, mas a minha predileção é Bandeira. Também sou fã de Florbela Espanca, Paulo Leminsky e Nicolas Behr. Dos nossos, sou fã de tudo que Chico Miguel escreve e adoro a poesia de Ozildo Batista e Vilebaldo Rocha.

Por fim, não posso citar todos os livros bons que li nessa vida até agora. Seria uma lista interminável. Mas direi que alguns, especificamente, marcaram a minha vida: Quinze anos depois, de Lilizinha Castelo Branco; O meu pé de laranja lima, de José Mauro de Vasconcelos; O encontro marcado, de Fernando Sabino; Margem das lembranças, de Hermilo Borba Filho; e, sobretudo, O Quinze, de Rachel de Queiroz.

Hoje, a única coisa que peço a Deus é que me conceda sempre a minha visão para que possa continuar lendo. É tudo que eu desejo.

 


MINHAS LEITURAS: DE AVIÃO A UVA


Jailson Klein

 

Para Amélia e minhas professoras de Português

Começarei a minha história pelo início: pelo “A” de avião. “A” maiúsculo, é claro.

Na primeira vez que me dirigi a uma escola, com quatro anos incompletos, as coisas não deram muito certo. Foi uma iniciação com o pé esquerdo ou, talvez fosse melhor dizer, com o pé no lugar errado.

Minha mãe havia me dado banho, penteado e arrumado com a jardineira do Jardim da Infância estampada com o Pato Donald no bolso, e eu segui feliz, conduzido pelo meu irmão mais velho, para o recém-inaugurado e chique prédio do Centro Social, onde funcionaria o Jardim da Infância. Logo ao chegar, fui brincar próximo a um buraco que havia no jardim, usado pelos trabalhadores para fazer a massa de cimento usada para os acabamentos da construção. Escorreguei na borda molhada e caí na lama que se acumulara no fundo. Enlameei-me por inteiro, especialmente o uniforme que estreava naquele dia. Voltei para minha casa sujo e chorando.

Então, melhor voltar e recomeçar essas memórias.

O prédio do Centro Social fica na mesma rua em que morávamos em Santo Antônio de Lisboa. Digo que fica porque o imóvel ainda continua lá, à espera de reabertura e funcionamento. Na época de sua inauguração, era um dos prédios mais modernos da cidade. O piso de mosaico e os banheiros — nas extremidades do salão, um para os meninos e outro para as meninas — eram as partes mais legais. Foi nesse local que um livro me caiu nas mãos pela primeira vez na vida. Tratava-se de uma cartilha, para ser exato. E acho que todo o seu conteúdo consistia na apresentação das vogais, das vogais maiúsculas e minúsculas, pelo que me lembro. Em cada página, vinha a vogal em tamanho grande, um desenho de alguma coisa cujo nome se iniciasse com a dita vogal e várias linhas com uma infinidade da vogal tracejada para que cobríssemos. O “A” era de avião — no desenho o avião fazia uma pirueta, representada por uma linha tracejada que indicava o movimento; o “E”, de escola; o “I” de igreja; o “O”, de ovo; e o “U” de uva, no final.

Nossa professora-deusa se chamava Amélia. Era tão dócil, bela e jeitosa no trato para conosco que não havia uma criança na turma que não a adorasse. Um anjo em nossas vidas inocentes. Por falar em beleza, quem também chamava a atenção dos meninos eram as gêmeas filhas do Cabo Câmara. Duas moreninhas que não se sabia quem era quem, nem se havia alguma menos linda que a outra. Meu Deus, só tínhamos quatro ou cinco anos, mas ainda lembro como elas encantavam os meninos! Ainda bem que eram duas.

Por muitas vezes, nossa doce Amélia nos mostrou as vogais minúsculas apontando com o giz na lousa onde escrevera a da vez em tamanho gigante. Mas eu não tinha tempo a perder com aquelas vogais chatas; o meu precioso tempo era consagrado a admirar quem apontava, e não a coisa apontada. Se não cultuando a nossa fada — cujo nome começava com “a”, mas um “A” daquele jeito bonito, maiúsculo —, acompanhando curioso os movimentos das filhas do Cabo. Danem-se as vogais minúsculas!

Décadas mais tarde, em volta de uma mesa com toalha florida, no mesmo local e sobre o mesmo piso de mosaico, eu haveria de me lembrar daquelas manhãs em que quatro meninos dividiam uma mesinha de fórmica e, curiosos, olhavam Amélia a escrever mistérios no quadro negro, que ficava ao lado da porta de entrada, e a nos apresentar as primeiras letras de uma longa e mágica viagem pela leitura.

 

***

 

Após dois anos no Jardim de Infância, já com a idade mínima exigida e com o coração destroçado, fui obrigado a dizer adeus a Amélia e ao prédio do Centro Social. Fui desbravar o Primário (Fundamental I). Naquele tempo, esse período compreendia quatro séries, sendo que a 1ª, a alfabetização, era dividida em dois anos: Níveis 1 e 2. Cinco anos até alcançar o Ginásio (Fundamental II).

A escola se chamava Grupo Escolar Maria de Carvalho. No meu primeiro ano, tive outro grande desgosto. O uniforme para os meninos consistia em camisa branca de botão, short azul e tênis — os mais comuns eram Kichute e Conga. Na camisa havia um bolso, e nele as iniciais da escola bordadas. Justamente por aqueles tempos foi alterada a nomenclatura da escola, passando a se chamar Unidade Escolar Maria de Carvalho. Não sei se aproveitando a camisa do meu irmão, só sei que na minha estava bordado no bolso G.E.M.C. (Grupo Escolar Maria de Carvalho), enquanto a maioria das crianças já estava com a moderna camisa com bordado U.E.M.C. Não aceitava essa desatualização e dei muita dor de cabeça à minha mãe por causa disso.

Por falar em minha mãe, tenho que registrar que ela era professora tanto no Primário quanto no Ginásio, então, se isso me trouxe certas vantagens por um lado, estive sempre dentro do seu campo de visão, permitindo-lhe que nos trouxesse, a mim e a meu irmão, ali ó, na rédea curta.

Da alfabetização, recordo-me da professora do Nível 1, Antônia de Marco. Muito boazinha e de quem levei boas lembranças. Lembro de calçar os tamancos das meninas no meio da aula e sair caminhando pela sala somente para ouvir o barulho do toc-toc no piso, numa tentativa frustrada de ser engraçado. Antônia, por respeito e consideração à minha mãe, nunca levou reclamações para ela ou para a Diretora. Agradeço por isso, professora Antônia.

As malditas letras minúsculas voltaram e agora vieram acompanhadas das famílias. A primeira foi a do “B”: B com A = BA; B com E = BE; e demais parentes. A cartilha que usávamos era a “Caminho Suave”. Como ainda não lia e não entendia direito quando os outros pronunciavam, eu falava “Caminho Suado”. A diretora da época, Nonata de Sabido, achava graça e repetia sorrindo:

— É verdade, Jailson, o caminho é suado, mesmo.

Demorei muito tempo para entender a metáfora e hoje sei o quanto é suado para ambos os lados no processo educacional, professores e alunos.

Não guardo o momento em que aprendi a ler, mas eu tinha um método para burlar essa cobrança no 2º Ano. Como havia palavras que não conseguia ler a contento, por parecerem estranhas e com encontros consonantais difíceis para articulação da minha língua infantil, eu decorava o texto quando minha mãe lia. Na minha vez de ler, eu olhava para o texto, mas falava de cor, sem reparar muito o que estava no livro. Tinha uma lição que falava sobre a chegada de um circo na cidade que era mais ou menos assim; “Marcelo, Marta e Pedrinho brincavam sentados na calçada quando, de repente, ouviram um barulho vindo da praça da cidade. Curiosos, correram para ver e descobriram que era um circo que chegara à cidade...”. Acho que Marcelo e Marta eram irmãos nesse livro, porque havia uma lição que contava que eles esperavam a chegada de um irmãozinho. O texto relatava que Marcelo torcia para que o bebê fosse menino, e Marta, para que fosse menina. Acontece que eu não conseguia pronunciar “torce”, e dizia todas as vezes “troce”. Minha mãe corrigia, mas não tinha jeito. Foi uma luta pesada para aprender a dizer “troce”, quer dizer, “tor-ce”.

Havia uma situação que minha mãe torcia muito para que nunca acontecesse. Infelizmente, ela chegou no 2º Ano: eu caí na turma que ela era a professora. No começo, tudo bem, até chegar o dia em que eu me recusei a fazer uma tarefa. Não houve conversa que me persuadisse. Sem ter o que fazer, minha mãe recorreu à Diretora. Nonata, com muito tato e argumento, conseguiu me convencer.

Um mês depois, fui transferido para a sala de outro professor.

Minha mãe não tinha do que reclamar, meus rendimentos eram excelentes. No Primário, fui o primeiro da sala em quase todos os anos.

Fora os livros didáticos, dessa época ainda tenho vaga memória das cartilhas do programa de alfabetização de adultos, chamado MOBRAL – Movimento Brasileiro de Alfabetização. Não sei se eram as figuras, as histórias ou as cartelas destacáveis que vinham ao final do livro. Essas cartelas traziam o alfabeto maiúsculo de um lado e o minúsculo do outro. As letras eram destacáveis individualmente, uma vez que o papel era picotado entre elas justamente para que os alunos pudessem separá-las e, depois, formarem palavras. Hoje em dia existem muitos joguinhos com as letras em peças de madeira e outros materiais.

Vinculado ao MOBRAL, foi instalado na cidade o Posto Cultural, que continha, além de outros atrativos, uma pequena biblioteca. Acredito que a primeira da cidade. As crianças da cidade iam muito a esse Posto, talvez por causa dos brinquedos que lá havia: pega-varetas, dominó, damas etc. Não consigo me lembrar de nenhum livro infantil daquela biblioteca, nem de revistas em quadrinhos, talvez porque não me interessasse naquele momento. Não sei, mas não lembro de livros infantis no Jardim da Infância, na Escola Maria de Carvalho nem na biblioteca do Posto Cultural.

Belas manhãs fiquei naquele prédio de calçada alta jogando pega-varetas, brincando com os outros meninos ou, simplesmente, dando trabalho a Leni, a funcionária.

Meu período de Primário se fecha com um delito. Nos últimos anos estava muito influenciado por um amigo, alguns anos mais velho do que eu, que, por isso, tornara-se o meu guru. E, além disso, ele sabia tudo sobre as histórias em quadrinhos e também era dono de um grande acervo de revistas. Ele então arquitetou um furto: invadirmos a cantina da escola. O muro era relativamente baixo e a janela da cantina, por onde serviam a merenda aos alunos, era fechada com um simples ferrolho. O nosso objetivo principal era a paçoca ou o mingau com bolinhas de milho. Tudo saiu de acordo com os planos. Passamos fácil pela janela e, uma vez dentro da cantina, bastava localizar os alvos em meio a livros, mobília quebrada e demais objetos que nada tinham a ver com cantina. Eu mesmo fiquei folheando uma cartilha do MOBRAL e encontrei a cartela com o alfabeto no final. De imediato, destaquei as letras e comecei a separá-las. Num trabalho bastante calculado e rápido, encontrei as letras do meu nome, do lado das maiúsculas, é claro. Naqueles dias já havia concluído que o alfabeto minúsculo fora criado para as meninas. Aquelas formas arredondadas, bem torneadas, eu achava todas muito chatas. As maiúsculas é que eram imponentes, que estavam pintadas na frente das repartições, nos cartazes e em todos os lugares de destaque. Formei meu nome ali mesmo na mesa próxima ao janelão. Meu amigo, após uma busca minuciosa na despensa, conseguiu salvar nossa empreitada com um saco de leite em pó.

— Pelo menos podemos fazer um doce de leite à noite — disse ele, mostrando o pacote. E se aproximou de mim. — O que é que está fazendo... NÃO! Você está louco?! Deixar seu nome aí! Quer revelar quem entrou aqui? — Passou-me o maior sermão. Misturei as letras, mas deixei-as em cima da mesa.

À noite daquele mesmo dia, na área aberta do Centro Social, ficamos sentados no mosaico frio e limpo conversando, enquanto uma panela ardia sobre trempes no chão entre o prédio e a mureta da frente. Cardápio do dia: doce de leite.

Foi um dia dedicado às instituições de ensino. Visitei minhas duas primeiras escolas num só dia.

A minha primeira infância foi dedicada quase que exclusivamente às revistas em quadrinhos e à televisão. Nada de livros.

 

***

 

Há uma história que contam na cidade, que não sei se tem algum fundo de verdade, de que um poeta popular, um violeiro da região, teria dito que

— Eu não vou perder meu tempo botando “meus filho” para fazer esse negócio de Primário. Quando eles completarem 12 anos, eu boto direto no Ginásio. Eles são tudo sabido demais. Não tem um que não diga quantas peças tem uma lamparina!

Como diria Nonata, a Diretora, o caminho é realmente suado. Mas necessário. Um pensamento que vigia na nossa família, pelo fato de minha mãe ser professora, é que abandono de estudos não era uma alternativa sequer cogitável. Na mudança do Primário para o Ginásio, alguns alunos desistiam. Do Ginásio para o 2º Grau (Ensino Médio), poucos continuavam.

Iniciei o Ginásio sob a proteção e os privilégios da docência de minha mãe na instituição. Podia entrar ao meu bel prazer na Sala dos Professores (que era a mesma da Diretoria), tomar cafezinho e olhar os títulos dos livros dispostos nas duas estantes de face dupla, também instaladas na sala. Mas somente quando cursava a 7ª e 8ª Séries comecei a pegar livros dali para ler. Uma porque somente na última série era exigido a leitura e fichamento de romances da Literatura Brasileira; outra porque o acervo se resumia a volumes da Série Bom Livro (a edição da capa preta), da Editora Ática, salvo um ou outro exemplar da coleção Vagalume, da mesma editora. O resto era, na maioria, de livros didáticos.

Nos anos ginasiais, minha professora de Português foi Maria dos Remédios. Ela foi a responsável pelo meu interesse inicial no estudo da Gramática da Língua Portuguesa e quem me impulsionou rumo à literatura. Excelente mestra.

Nesse período, o que monopolizava de fato a minha atenção era a televisão. Eu assisti a tudo o que passava na telinha durante muitos anos. Acredito que as narrativas televisivas, como os filmes, telenovelas, seriados e minisséries, me direcionaram para os livros. Fui buscar muitas vezes nos livros a narrativa original das histórias que via na tevê. E essa foi a razão de o cinema ser minha segunda paixão nas artes, depois da literatura.

Nas revistas de palavras cruzadas — Coquetel —, havia um encarte ao final ou no centro da revista que trazia diversos livros da Editora Ediouro (Tecnoprint) à venda para pedidos pelos Correios. Era ainda muito jovem, mas comecei a pedir. O Ari, funcionário dos Correios, no início implicou um pouco porque eu era criança e, justificava ele, não podia fazer pedidos em meu nome; depois, ele se acostumou, ficamos amigos, e eu fazia os pedidos normalmente. Minha mãe que reclamava da despesa.

Certa vez fui passear na casa do meu tio, em Teresina. Meu primo Fritz Moura me ensinou a jogar xadrez. Ele me presenteou com um jogo que não usava mais, na realidade, eram dois jogos na mesma caixa: xadrez e damas. Em toda Santo Antônio, não havia uma alma viva que soubesse jogar xadrez, então ensinei uns amigos meus a jogar. No início, eu sempre vencia, mas, com o passar do tempo, eles começaram a me vencer. Fui obrigado a usar de uma estratégia para melhorar meu desempenho: pedi pelo reembolso postal o livro Xadrez para Principiantes, da Ediouro. Um dos primeiros que lembro de adquirir. Por um tempo até que funcionou meus estudos pelo livro. Outros antigos da Ediouro que me lembro de ler foram da série O Que É, O Que É? e da Por Incrível que Pareça! Gostava de descobrir coisas ocultas, segredos nunca revelados, só para jogar na cara dos amigos que eu sabia mais sobre coisas estranhas do que eles, do tipo de Nas Fronteiras do Desconhecido e de Nos Domínios do Mistério.

Outra série de livros da Ediouro que li muitos foi O Pensamento Vivo de. Tinha de muitas personalidades históricas, como Gandhi, Buda, Einstein etc. Na capa do livro vinha uma frase da personalidade biografada. A de Gandhi era “Eu não tenho mensagem. Minha mensagem é a minha vida”. E a de Buda, “O que somos é a consequência do que pensamos”.

O Posto Cultural havia sido extinto e a sua pequena biblioteca transferida para uma diminuta sala na prefeitura. Aquela sala faria parte do meu roteiro quase que diário nos anos seguintes.

Enquanto jogávamos conversa fora, gostava de folhear uma enciclopédia que lá havia. Uma imagem me chocava muito naquele livro: uma pintura de Tiradentes esquartejado. Perna para um lado, cabeça para outro, o tronco jogado. Terrível!

E de lá saíram os livros que fariam parte da minha iniciação como leitor de livros, e não somente de quadrinhos. Apesar de que havia alguns volumes de clássicos da literatura em quadrinhos. Em quadrinhos, li O Guarani (José de Alencar), Os Filhos do Capitão Grant (Júlio Verne) e talvez outros, mas não me vêm à cabeça agora. Adulto, li o livro de Júlio Verne em prosa, mas O Guarani nunca até hoje.

Em formato de livro — sem quadrinhos nem ilustrações —, dois títulos do acervo que me marcaram inicialmente foram A Vida É Fantástica (Lúcia Machado de Almeida) e O Cavalo Cego (Josué Guimarães), em especial o conto “Noite de Chuva”. Este conto nunca mais me saiu da cabeça.

Sempre estava lá na prateleira, sozinho e muito gorducho, o romance de Margareth Mitchell ...E o Vento Levou. Eu me perguntava como um ser humano era capaz de ler aquelas quase mil páginas. Não ousava pegá-lo emprestado. Não peguei esse, mas peguei, li e adorei Rebecca – Uma Mulher Inesquecível (Daphne Du Maurier). Soube posteriormente que houve um debate internacional sobre um possível plágio pela escritora inglesa Daphne Du Maurier, a partir do romance brasileiro A Sucessora (Carolina Nabuco). Não li o romance brasileiro, mas assisti à telenovela global. Serve?

  No acervo da biblioteca do Posto Cultural estava um livrinho de bolso, capa esverdeada, meio perdido e espremido pelos mais altos e robustos, que me marcaria por toda a minha vida. Trata-se do belíssimo O Meu Pé de Laranja Lima (José Mauro de Vasconcelos). Antes, ouvira comentários de colegas de que se tratava de uma história bastante comovente. Fiz o empréstimo na biblioteca da prefeitura e fui comprovar se era tudo isso mesmo. Nunca tive que parar tantas vezes uma leitura a fim de me recompor... e conseguir enxergar, já que a abundância de lágrimas prejudicava muito a visão. Nunca podia imaginar que a história de meninozinho do interior do Rio de Janeiro, em suas relações com a família, um amigo adulto e a vida prosaica que levava, pudesse trazer tanta pureza, beleza e ternura. Excepcional! Não direi mais nada além disso.

Ao devolver a história de Zezé ao seu lugar na prateleira, com suas páginas à beira de se soltarem, num voo de ilusão, imaginei que, se as gêmeas cor de jambo do Cabo Câmara aparecessem já mocinhas por aquelas paragens, eu indicaria para elas ou para aquela com quem eu mais simpatizasse a leitura desse livro. Se elas não voltassem mais à cidade, quem sabe eu não poderia escrever uma história de fantasia em que esse encontro fosse possível? E nessa história, eu poderia indicar o livro para ela, talvez até acompanhado de um míni wafer Triunfo de presente. Pelos velhos tempos do Jardim da Infância.

Nesse tempo ainda não sabia a diferença entre pessoa e personagem, até confundia realidade com imaginação. Não sabia ainda que podíamos encontrar a felicidade no mundo da fantasia. Um dia, no futuro, descobriria que os livros são feitos de saberes e sentimentos, que existem vários mundos dentro de suas páginas, várias vidas para viver e vários lugares para se conhecer. Lá, sob a tinta das palavras, sou amigo do rei; lá a existência é uma aventura e eu posso ser quem eu quiser; posso até ser puro como Zezé.

Nos dois últimos anos do Ginásio, comecei a usufruir das duas estantes de livros da Sala dos Professores. Era o período das fichas de leitura, e que até o mais resistente à prática da leitura era obrigado a fazê-la. Maria do Remédios fazia as recomendações e, posteriormente, as cobranças ao final do ano.

A maioria dos alunos preferia as obras do Romantismo. Os mais velhos comentavam sobre a comovente história do romance O Seminarista (Bernardo Guimarães). Este era um dos prediletos dos alunos. Li e gostei, apesar da desgraceira toda. Por conta, li também o clássico A Escrava Isaura, mas acho que foi em outro momento, e O Garimpeiro, todos do mesmo autor. Outro livro da Série “Desgraça Pouca é Bobagem” muito prestigiado era Amor de Perdição (Camilo Castelo Branco). Existia outro desse autor português chamado Amor de Salvação. Tenho a impressão de ter lido, mas não me lembro absolutamente de nada. De Inocência (Visconde de Taunay), gostei muito da linguagem regional e de época, apesar de difícil em algumas partes.

  Mas o autor preferido pela maioria na época era mesmo José de Alencar, e pode me incluir nessa maioria. Acho que fui iniciado na literatura alencarina por Cinco Minutos – A Viuvinha; depois vieram Lucíola, O Tronco do Ipê — tenho um alto conceito sobre esse livro, mas nunca tive a oportunidade de relê-lo —, Diva e a obra prima Senhora. Deste último já foram três leituras até o momento.

Minha querida professora Maria dos Remédios colocou na lista de leitura Memórias Póstumas de Brás Cubas (Machado de Assis). Para ser sincero, não gostei muito; achei chato. Li ainda de Machado Contos, da Série Bom Livro, Ática, e O Alienista. Os contos do Bruxo são maravilhosos a qualquer tempo.

E assim me despedi do Ginásio Santo Antônio e de uma fase de leituras e aprendizados. O 2º Grau (Ensino Médio) seria realizado em outra cidade, outra instituição e com um novo ciclo de influências.

 

***

 

Quero parafrasear o Velho Graça quando, pela caneta de Paulo Honório, diz, no final do Capítulo 2 de São Bernardo (Graciliano Ramos), que foram dois capítulos perdidos. O 2º Grau Técnico em Contabilidade foram três anos quase perdidos. As poucas disciplinas de humanas salvaram-no do completo desastre, em especial História, de Ana Lúcia, e Português, de Elizete. As aulas de gramática e literatura eram extraordinárias. Uma dúvida sempre me aflige: sempre gostei das professoras por causa do Português ou do Português por causa das ótimas professoras?

Tempo perdido, sim, com contabilidades, economias e matemáticas.

A escola se chamava PREMEN. A turma era composta por alunos de diversas cidades vizinhas a Picos. Da cidade-sede havia uma turma razoável, e muitos desses alunos de Picos me influenciaram em termos de leitura. O principal deles foi Ronaldo Jericó, mas havia também Gilvando Matos, Joscelene Rodrigues, Márcia Barbosa, Luciano (in memoriam), Eufrausina, Tetê, Timóteo e outros.

Nossa simpática professora de Português e Literatura, Elizete, nos fez ler alguns romances da Literatura Brasileira e Portuguesa durante sua regência. Um que me recordo bem foi Memórias Póstumas de Brás Cubas. Era a segunda vez que o lia, mas ainda não seria dessa vez que ele me cativaria.

No PREMEN havia uma biblioteca com um acervo bastante grande. Éramos amigos da moça que trabalhava lá e isso facilitava a retirada e de dar um jeitinho quando atrasávamos nas devoluções (e contribuído para que eu esquecesse de devolver um ou outro livro.

Nessa época tomei conhecimento e me associei ao clube Círculo do Livro. Uma das melhores decisões que tomei na vida de leitor. Eis, então, as duas principais fontes de leitura nesses três anos: a biblioteca da escola e o Círculo do Livro.

Da biblioteca, ficaram gravadas as leituras de Cem Anos de Solidão (Gabriel Garcia Marquez) — simplesmente um dos melhores que já li na vida —, Holocausto (Gerald Green) — deste, recordo-me lendo o capítulo final num banco da escola, sozinho, e chorando sem parar —, A Mulher do Tenente Francês (John Fowles), Chistiane F., Treze Anos, Drogada, Prostituída... — livro que me convenceu a ficar somente no álcool e no cigarro, renunciando a experimentar qualquer outra droga —,  Hitler no Banco dos Réus (Philippe Van Rjndt); e comecei, nesse tempo, a ler Agatha Christie, autora a que não largaria nunca mais. O primeiro acho que foi Um Gato entre os Pombos. Seguiram O Assassinato de Roger Ackroyd, O Caso dos Dez Negrinhos — hoje com o título E Não Sobrou Nenhum —, O Mistério do Trem Azul, Assassinato no Expresso Oriente e outros. No segmento de mistério, também fiquei fã de Arthur Conan Doyle, iniciando sua obra por As Aventuras de Sherlock Holmes e seguindo com O Cão dos Baskerville e Um Estudo em Vermelho.

Apreciava o gênero mistério e segui, interessado, pelo segmento do suspense, terror e policial. Havia uma coleção de contos chamada “Alfred Hitchcock Apresenta” em que havia alguns títulos na biblioteca. Lembro de dois títulos que li: Histórias Para Ler à Meia-Noite e Histórias Para Ler às Sextas-Feiras.

No Círculo do Livro, os associados tinham que pedir pelo menos um livro por mês. O livro vinha numa bela edição em capa dura. Um dos primeiros que pedi foi Ben-Hur (Lewis Wallace). Outro que me vem à mente foi O Triângulo das Bermudas (Charles Berlitz), e tome-lhe Agatha Christie!

E o autor mais best dos best sellers que havia: Sidney Sheldon. Comecei com A Outra Face; depois A Ira dos Anjos; Um Estranho no Espelho; O Reverso da Medalha e por aí foi. Ele era o rei do thriller. Uma espécie de Dan Brown dos anos 80.

Em Santo Antônio, a biblioteca na prefeitura resistia e ...E o Vento Levou continuava lá me paquerando. Certa vez fiz um acerto com a funcionário: ela me daria um prazo de dois meses no empréstimo. Concordamos e levei o calhamaço para casa. Todos os dias dava um paquerada e me preparava para virar a capa. Nunca comecei. Uma semana depois devolvi à biblioteca sem ler. Um dia...

Nessa época, já havia criado um hábito enraizado de leitura. Às vezes, eu passava um período do ano dedicado a outros afazeres. Mas havia os períodos em que li rotineiramente. Então era isso: caso não estivesse namorando, bebendo com os amigos, ouvindo música pela madrugada, assistindo tevê, trabalhando, estudando ou dormindo, estava lendo.

Ah, esqueci de mencionar: no Primário fui o primeiro da sala nas avaliações em quase todos os anos; no Ginásio, a começar pela 5ª Série, eu perdia posições no ranking a cada ano escolar que se findava, até eu cair para o lugar vergonhoso do meio da lista, no final da 8ª Série. E o meu desempenho continuou a minguar também no 2º Grau. No ato e ano finais, fiquei em recuperação em Matemática. Também, para que diabos serve a matemática?!

A culpa sempre foi das garotas. Elas que me enfeitiçavam com seus encantos, feito sereias hipnotizadoras. Desviavam a nós, coitados estudantes inocentes, do caminho de retidão e da aplicação na vida escolar.

Com 18 anos incompletos, após concluir com distinção e uma recuperação o 2º Grau, mudei-me para Salvador para morar num apartamento do meu tio Chico Miguel. Lá residiam meu primo Fritz Moura e meu irmão.

 

***

 

Foram seis meses iniciais em total ostracismo na capital baiana. Nem trabalho, nem estudos. Restava-me curtir saudades da namorada, dos amigos, e ver televisão. Mas sempre há uma alternativa. Meu primo Fritz tinha uma estante pequena de madeira, de um metro e pouco, repleta de livros, na sua maior parte de edições do Círculo do Livro. Pensando agora, vejo que naquele tempo essa mania de organização, de método, de ordem já se manifestava. Um leve TOC, diriam os invejosos. Bem, a questão é que comecei a ler os livros da estante dele da prateleira de ficção, pelo primeiro do lado esquerdo.

Cuca Fundida (Woody Allen) — Woody Allen sendo Woody Allen —; Um Erro Judiciário (A. J. Cronin); O Processo (Franz Kafka) — angustiante —; Diário de uma Guerra Estranha (Jean Paul Sartre) — chato! Acho que ainda não estava pronto para Sartre —; A Metamorfose (Franz Kafka) — não sabia que se podia construir uma história daquele jeito e ainda ser boa —; O Nome da Rosa (Umberto Eco) — não me lembro se este era do acervo de Fritz, mas sei que depois das primeiras e difíceis cem páginas, o livro fica maravilhoso —; Zona Morta (Stephen King) — esse foi o primeiro de muitos, porque começar a ler King é um caminho sem volta —; O Velho e o Mar (Ernest Hemingway) — adorável! Adorável! Impossível não gostar —; O Pequeno Príncipe (Antoine de Saint-Exupéry) — pois é, demorei a conhecer essa linda obra —; Papillon (Henri Charrière) — um daqueles que o filme me fez procurar o livro. Um tijolo! Será que agora conseguiria ler ...E o Vento Levou? ...E o que mais, Fritz, tinha naquela estante?

Quando meu irmão e eu nos mudamos do apartamento do meu tio, ainda não tinha concluído a leitura da prateleira de Fritz. Fiquei meio frustrado com isso.

Trabalhando e com algum recurso financeiro, descobri nas bancas de revistas e no sebo Graúna ótimos pontos para adquirir livros mais em conta. Nas bancas, numa época de ouro para aquisição de obras em edições populares, foram lançadas algumas séries de livros, tanto pela Editora Record, quanto pela Abril Cultural e Rio Gráfica. A edição era em papel de jornal, mas não tinha problema. De colecionar todos os números, a primeira de que me lembro de completar foi de Agatha Christie — pois é, continuava gostando e lendo sempre. Comprava livros esparsos de várias séries. Normalmente, esses títulos eram de best-sellers modernos, no geral thrillers de ação, policiais ou de terror.

Já deu para notar que a poesia e a Literatura Brasileira estavam excluídas das minhas leituras. Santa ingenuidade a minha!

Houve uma ocasião que saiu uma série, nas bancas ainda, chamada de “Campeões de Bilheteria”. Seria uma publicação de obras literárias que inspiraram filmes de sucesso no cinema, num total de 20 títulos. Entres esses livros lançados nessa coleção, estava Holocausto, cuja leitura havia me comovido em demasia.

Nos finais de semana, com pouco a fazer, comecei a ler essa coleção adotando novamente um método organizacional de leitura: iniciaria pelo número 01 — Rambo (David Morrell) — e seguiria na ordem crescente.

Nos passeios frequentes ao Piauí, mas não tão frequentes quanto gostaria, levava livros para minha namorada ler, emprestados. Já havia lhe presenteado anteriormente com De Mariazinha a Maria (Martha Suplicy), comprado nA Educativa, em Picos; de Salvador, o primeiro presente de livro foi Meu Pé de Laranja Lima. Não me importava mais com as gêmeas, tinha outros amores: os livros, / a namorada à minha espera/ Meu refúgio, meu regresso, minha vida, meu amor (Roberto Carlos, 1971).

E podem me perguntar: “Cadê os clássicos, a poesia, a Literatura Brasileira?” Esses vieram nos tempos de São Paulo, da Faculdade, os clássicos e a Literatura Brasileira, quero dizer, porque a poesia vem-me a conta gotas, assim como a Literatura Piauiense. Uma pena!

 

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Quando vim para São Paulo, fiquei na casa de outro tio, Zé Elias. Era uma casa pequena e eu dormia na sala, uma espécie de escritório. Não havia televisão no cômodo, era julho e fazia um frio lascado; então, antes de dormir, só me restava ler. Uma irmã de um dos trabalhadores da tapeçaria do meu tio me deu alguns livros. Lembro-me de ter lido pelo menos três títulos: Sempre um Colegial (John Le Carré), Princesa Margarida (Judith Krantz) e o grandioso Grande Sertão: Veredas (Guimarães Rosa) — confesso que, no início, a leitura dessa obra não foi lá muito fácil, no que tange à linguagem. Mas valeu a pena!

Nos próximos dez anos, me dedicaria (não gosto de mesóclises) com afinco a montar a biblioteca Miguel Guarani — a particular —, com acervo oriundo dos muitos sebos que existiam na cidade, alguns novos de livrarias e muitos de pontas de estoque. Entretanto, como o meu propósito não é falar sobre livros, mas sobre leituras, vou apenas mencionar en passant que nesse meio tempo me casei e incorporei os volumes Meu Pé de Laranja Lima e De Mariazinha a Maria, entre outros, à biblioteca Miguel Guarani.

Na década de 1990, o clube Círculo do Livro encerrou suas atividades. Lamento esse fato até hoje. E algumas séries de livros pararam de ser lançadas em bancas, porém, em compensação, outras foram lançadas, como a “Clássicos da Literatura Universal”, de uma parceria entre a Publifolha e a Editora Ediouro. Foram 20 volumes. Me joguei de cabeça na leitura dos clássicos dessa coleção. Vamos lá, alguns que li, na ordem, é claro: A Divina Comédia (Dante Alighieri) — em prosa essa tradução —; Madame Bovary (Gustave Flaubert); As Relações Perigosas (Chordelos de Laclos) — em outras traduções saiu como “As Ligações Perigosas” —; O Vermelho e o Negro (Stendhal); Crime e Castigo (Fiódor Dostoiévski); O Morro dos Ventos Uivantes (Emily Brontë); Orgulho e Preconceito (Jane Austen) etc. Todos muito bons!

Mas faltava ler um certo romance.

Num belo dia, estava eu deitado na minha cama olhando para a estante de livros. Já tinha conseguido, naquele momento, expandir o acervo da Miguel Guarani suficiente para completar uma estante. No meio de tantas lombadas, eu parei naquela mais larga. Havia parte de uma imagem ali e eu sabia muito bem do que se tratava: era parte do braço de Rhett Butler carregando Scarlett O´Hara. Aparecia a perna e o vestido vermelho dela. Fui lá e o tirei da prateleira. Virei a capa e, finalmente, venci suas 960 páginas. Eu já gostava do filme e passei a ter um excelente conceito do livro. Tanto que comprei a continuação da história, escrita por uma autora conterrânea de Margaret Mitchell: Alexandra Ripley. O título da continuação é Scarlett. Outro calhamaço. Emprestei para uma amiga e ela nem leu nem me devolveu.

E agora reservarei este parágrafo para uma vergonha: minhas escassas leituras da Literatura Piauiense. Fui tão injusto e li tão pouco nossos autores que será um parágrafo curto. Quando ainda era criança, na nossa casa tinha um exemplar de As Regras da Vida em Máximas (José Baptista). Achei que aquele autor — e acreditava à época que os livros continham verdades absolutas — era revoltado demais com as mulheres. De Chico Miguel, o primeiro que li foi Os Estigmas. Além deste, li o livro de crônicas E a Vida se Fez Crônica; o de contos Rebelião das Almas; o de poemas Quinteto em Mi(m); o romance D. Xicote; a antologia 50 Poemas Escolhidos pelo Autor; Miguel Guarani – Mestre e Violeiro; o Antologia; o livreto Chico Miguel na Academia; talvez mais algum de crônica e vários poemas/artigos esparsos. De Gilson Chagas, A Ferro e Fogo, Música para Pensar e, por fotos, alguns poemas do Curvas do Meu Caminho. Infelizmente, as obras do autor sobre contabilidade não tive nem tenho entusiasmo suficiente para conhecer, haja vista os traumas causados pelo 2º Grau Técnico nessa área. Conheci mais recentemente o interessantíssimo Os Que Bebem como os Cães (Assis Brasil). Li também a obra ou parte dela de autores da cidade de Santo Antônio ou da região circunvizinha. Além dos já citados, li Edilberto Di Carvalho, Francisco Valentim Neto, João Erismá de Moura, Alacídio Franco Pereira, Teresinha de Jesus Rodrigues Sousa, Nilvon Batista Brito, Adailson Medeiros & Elodi Batista de Medeiros, João Bosco, Adalberto Antônio de Lima, Neomísia Antônia de Sousa, Francisco de Assis Lima e Silva, Ítala Loyane, Deolinda Marques e Francisco de Assis Sousa. Pouquíssimos, eu sei, mas pretendo me dedicar mais daqui em diante.

 

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Parei antes de subir os dois lances da escada que dava para a entrada do prédio da Faculdade de Letras. Pensei em como eu e Nonata de Sabido estávamos certos: o caminho é suado. Mas vale a pena. Vale demais! Quem diria que um meninozinho do interior do Piauí, que não conseguia nem dizer direito “torce”, entraria no melhor curso de Letras do país? Orgulho. E olhe que nem sou muito chegado em letras minúsculas!

 No primeiro semestre, a professora de “Introdução ao Estudo da Língua Portuguesa I” era loira, olhos claros, cabelos longos e lisos. Seu nome era Rosane. Meu Deus! Parecia a reencarnação de Amélia! O melhor é que era uma pessoa muito simpática e nos ajudava como podia, sempre com boa-vontade. Não teve jeito, tive que presenteá-la com uma latinha de bombons Sonho de Valsa. Ao fazê-lo, pensei: “Isso é por Amélia, por Maria dos Remédios, por Elizete e por você”. Adoráveis, todas! E não podiam ser diferentes: professoras de Português!

Durante o curso, li diversos livros da Literatura Brasileira e da Portuguesa. Citarei aqui apenas os mais significativos, para não tornar a leitura ainda mais enfadonha do que já está. O Primo Basílio (Eça de Queiroz); Dom Casmurro (Machado de Assis) — reli, mas desta vez acompanhado de um estudo aprofundado do professor, que era especialista no mestre Machado —; A Bagaceira (José Américo de Almeida); O Ano da Morte de Ricardo Reis (José Saramago); Fogo Morto (José Lins do Rêgo) — quero indicar este a quem ainda não o leu. Excelente! —; Melhores Contos, A Hora da Estrela e Perto do Coração Selvagem (Clarice Lispector); O Quinze (Rachel de Queiroz); São Bernardo (Graciliano Ramos) — esse nem vou dizer nada, meu silêncio vai falar por mim —; Os Ratos (Dyonélio Machado); Coração, Cabeça e Estômago (Camilo Castelo Branco); Senhora (José de Alencar) — a terceira leitura desta obra-prima de José de Alencar; um grande prazer —; A Relíquia (Eça de Queiroz) e Sagarana (Guimarães Rosa). Recentemente, Essa Terra (Antônio Torres) — grande descoberta!

Aquele professor de que falei, o especialista em Machado de Assis, pediu para que lêssemos alguns romances do autor do Cosme Velho durante o semestre. Um deles foi Memórias Póstumas de Brás Cubas. E lá fui eu para uma terceira tentativa de me entender com esse livro que nunca me agradou. Li. Não teve jeito, vou desistir. Não dá liga entre mim e Brás Cubas.

Concomitantemente, lia livros técnicos/de História/teóricos/não-ficcionais, best-sellers — normalmente estrangeiros — e romances clássicos da Literatura Universal. Listarei alguns de ficção que me marcaram de forma especial nos últimos tempos, mas sei que esquecerei outros tão importantes quanto estes: A Odisseia e Ilíada (Homero – Trad. Carlos Alberto Nunes) — tudo começou aí —; Grandes Esperanças (Charles Dickens) — um do meus autores top five —; Enquanto Agonizo (William Fulkner) — este valeria somente pelo título, um dos mais belos que já vi —; Lolita (Vladimir Nabokov) — grata surpresa a prosa deste autor; tornei-me fã de carteirinha; Crônica de uma Morte Anunciada (Gabriel Garcia Marquez) — não há livro ruim de Gabo; Pedro Páramo (Juan Rulfo) — este livro é uma das construções narrativas mais impressionantes que conheço; Elogio da Madrasta (Mario Vargas Llosa) — prosa digna de prêmio Nobel  — para citar só alguns.

Para finalizar essa breve menção aos clássicos da literatura, trago uma definição do livro Por que Ler os Clássicos (Italo Calvino):

“Os clássicos são aqueles livros dos quais, em geral, se ouve dizer: “Estou relendo...” e nunca “Estou lendo...”.

Segundo o autor italiano, “isso acontece pelo menos com aquelas pessoas que se consideram “grandes leitores”; não vale para a juventude, idade em que o encontro com o mundo e com os clássicos como parte do mundo vale exatamente enquanto primeiro encontro”.

 

Após as inúmeras leituras realizadas por indicação dos professores escolares, nas diferentes fases do ensino formal, ou por causa de um leque reduzido de opções à mão, neste momento, tenho o privilégio de poder escolher — e olha que às vezes esta decisão é bastante difícil — entre diversos títulos disponíveis na Biblioteca Miguel Guarani ou adquirir de forma rápida e fácil nas livrarias virtuais, principalmente. Lamentavelmente, as livrarias físicas têm desaparecido das ruas e shoppings.

Na hora de escolher um título na estante para ler, tenho buscado livros de diversos gêneros literários, revezando entre ficcionais e não ficcionais.

Tenho uma seção considerável na minha biblioteca de livros técnicos/acadêmicos sobre Linguística, sobre Gramática da Língua Portuguesa, sobre Teoria e Crítica Literária, além de alguns sobre Narrativa Literária, especificamente.

Além destes segmentos, gosto muito de História, Biografias e outros de áreas diversas. Na maioria das vezes, leio dois livros ao mesmo tempo: um de ficção e outro não. Dentre os de ficção, vario entre os clássicos e os que são classificados como literatura de massa. São livros de Literatura Policial (sou fã), de Terror, de Suspense ou, resumindo, thrillers. Esse tipo de livro, por ser mais uma leitura fácil e com entretenimento garantido e instantâneo, fica sempre ali, como uma tentação que me tenta fisgar. Mas após a leitura de um ou dois clássicos, não há nada melhor para relaxar do que um livro desses. Minha biblioteca está cheia deles por todas as partes.

Nesses gêneros citados acima, alguns dos autores que mais aprecio atualmente são Stephen King — primeiro e sempre —, Dean Koontz, Denis Lehane, Agatha Christie — esta última eu nunca abandono — Karin Slaugther, Ken Follett, John Le Carré, Arthur Hailey e uma quantidade infinita de autores que têm uma ou poucas obras publicadas.

Da literatura dita “alta”, meus autores prediletos são Charles Dickens, Jane Austen, Ian McEwan, Mario Vargas Llosa, Graciliano Ramos, José de Alencar, Machado de Assis, Gabriel Garcia Marquez, Edgar Allan Poe, Dostoiévski, Vladimir Nabokov, Alexandre Dumas, Balzac, Somerset Maugham, Graham Greene, Ernest Hemingway e outros. Deu para ver que tenho uma queda pela Literatura Inglesa. Na poesia, como sou fraquinho, gosto dos mais cultuados: Drummond, Manuel Bandeira, Cecília Meireles, Fernando Pessoa, Camões e, agora, Florbela Espanca.

 

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Vou cometer outro deslize, no que tange ao meu propósito de tratar, neste texto, exclusivamente das minhas leituras, e aproveitar esta parte final para comentar sobre escolas, livros, tempo e saudade.

Em certa época, iniciei um projeto junto à Prefeitura de SAL, contando como grande apoio de amigos e colaboradores, de montarmos uma biblioteca pública municipal com maior acervo de livros e melhor estrutura. Havia duas estantes com escassos livros numa sala do prédio da Secretaria de Educação que chamavam de biblioteca. Funcionava precariamente, carente de acervo e usuários. Quando fizemos um inventário dos livros ali constantes, excluídos os inúteis totais, de estatísticas, atas da administração e outras bobagens, sobraram menos de 30 volumes. Pensei logo nas duas bibliotecas que havia na minha época de criança: uma na prefeitura, espólio do Posto cultural do MOBRAL, e outra no Ginásio. Realmente não me lembro se conseguimos incorporar alguma coisa da biblioteca da prefeitura ou se o seu acervo já havia sido somado aos 30 volumes atuais. Da biblioteca do Ginásio, conseguimos resgatar numa sala qualquer, com a ajuda de Luzia, filha do antigo Diretor, de 12 a 15 exemplares de romances da Série Bom Livro, aquela mesma que pegávamos para ler na 8ª Série.

Depois de muitos anos, conseguimos montar uma enorme biblioteca, que se ampliou bastante depois que recebeu um acervo considerável de um projeto do Governo Federal de instalar uma biblioteca em cada munícipio do Brasil.

A dúvida que me veio agora foi se o exemplar de Meu Pé de Laranja Lima está no acervo atual, mesmo que suas páginas há muito tenham se soltado, ou se ele se perdeu para sempre.

 

No final do ano de 2010, fui passear em Santo Antônio, como fazia em intervalos rigorosos de um ano e meio. Foi enorme a minha surpresa quando soube que o prédio do Centro Social, que há tempos estava abandonado e em ruínas, havia sido cedido ao nosso mestre das panelas local, Tubão, para abrigar o seu restaurante, “O Rango”. Após promover a recuperação do prédio em quase todas as partes, já que o teto e algumas paredes haviam caído —apenas o piso permanecia o original, o restaurante foi inaugurado no local.

Em certa “meidia”, eu, meu amigo Giovan — que também mora aqui no sul e fazia parte do quarteto que dividia a mesinha no Jardim da Infância — e Dandim, um grande amigo da adolescência, fomos conhecer o restaurante, instalado há um ano e pouco no Centro Social, mas que nós dois, que morávamos fora, não conhecíamos.

Tubão colocara uma porta de vidro no lugar daquela antiga de madeira e de várias folhas, e também um chique e bem-vindo ar-condicionado. Sentamo-nos a uma mesa de madeira, estilo de cozinha e com enorme toalha florida, situada mais ou menos no meio do salão.

Após pedirmos a cerveja e conversamos um pouco, olhei para Giovan e fiquei me questionando se ele estaria se lembrando.

Olhei para o chão e pareceu-me que ouvia os gritos das outras crianças em volta. O mosaico era exatamente o mesmo daquele tempo. Mosaico estampado com retângulos sombreados e sobrepostos. Que loucura! Estava de frente para a porta de entrada. Ao lado da porta, ficava a lousa verde na qual Amélia desenhava figuras e letras. A lousa não estava mais lá. Em seu lugar, alguns cartazes de propaganda de cervejas e de festas. Não havia mais Amélia com o giz na mão nos explicando que aquilo que escrevera era um “e” minúsculo. Não gostava de “es” minúsculos nem da sua ausência, queria-a de novo nos revelando os mistérios daquelas vogais difíceis. Mas ela não estava mais ali, em pé, olhando para a sala em que era rainha inconteste. Ela não estava em lugar algum. Há muito que fora ser anjo em outro lugar, guiar outros puros.

Após alguns copos de cerveja, perguntei para Tubão onde ficava o banheiro. Ele apontou para um dos cantos no fundo do salão. No mesmo local, pensei. Quando entrei naquele banheiro me vieram as lembranças de muitos momentos ali, na bagunça de tantas crianças a tentar escovar os dentes, lavar as mãos. Apesar de renovado, trocada a louça, a planta permanecia a mesma. Naquele instante, me dei conta de que fazia uns 35 anos desde a última vez que entrara ali.

Por essa mesma época, fui escovar os dentes no banheiro da casa da minha mãe e, ao enxugar as mãos na toalha de rosto, achei-a familiar. Tudo bem, poderia ser dali mesmo da nossa casa, mas quando a estendi para ver melhor a estampa, vi o meu nome bordado em um canto. Era a toalhinha de rosto que usei por dois anos no Jardim da Infância.

É possível que maliciosos leitores venham a crer que partes dessas memórias não passe de imaginação, porém, conforme nos explica o professor Massaud Moisés em seu Dicionário de Termos Literários, no verbete sobre o gênero narrativo de Memórias, “[...] a veracidade que possam ter [as memórias] é menos documental do que vivencial: o subjetivismo [...] alcança neste caso suma intensidade, aproximando-se ainda mais do terreno ocupado pela narrativa ficcional ou pelo lirismo”.

Mas não é assim que as nossas leituras nos trazem seus mundos de fantasia, como se verdadeiros? Contudo, mesmo considerando que nem tudo seja verdade nas narrativas que lemos ou ouvimos, a nós, leitores, basta-nos pensar e acreditar que elas poderiam ser.

 

 

 

 

 

U

 


CLIQUE


Iara Marina

 


Clique. Estou na antiga casa, desço as escadas e chego ao quarto de despensa. Meu quarto. Não onde durmo. Onde existo. Sento no seu piso frio e sinto o cheiro de mofo das paredes. As paredes rapidamente me abraçam e logo o piso vira colo e logo o mofo vira selva. Pego na prateleira um dos muitos, velhos e até rasgados livros que ali dormem e existem, ou esperam por mim para tal. Livros de português. Meus preferidos. Fundamental ou médio, não sei. Eu sei das charges. São muitas e coloridas. Eu sei das poesias. Eu faço poesias com as charges. Eu faço músicas com as poesias. E chamo minha irmã para ouvi-las. A sua favorita é a do sapo, ela diz e me pergunta como fiz aquilo. O tipo de coisa que não sabemos responder. Clique. Estou dentro do ônibus. Da janela olho para as casas que parecem pertencer à pessoas pequeninas. Algumas dessas pessoas olham pra mim e logo me esquecem. O ônibus para no sinal. Lá fora tem um menino dentro de outro ônibus. Ele é maior que eu. Nossos olhares se cruzam e percebo que ele tem olhos iguais aos do meu amigo que só aparece quando quer. Talvez ele tenha o cabelo igual também. O sinal abre com meu adeus ao bonito estranho. Lembro da nova amizade que fiz com o Smilinguido que a essa hora aguarda meu retorno de dentro de sua página. Que ele não passe muito frio, eu penso. Clique. Estou em Teresina. Meu pai sorri quando me vê e diz: “como está grandinha a caçula de papai!” Eu acho que continuo pequena como as pessoas das casinhas. Minha irmã logo corre para visitar as amigas que há muito não vê. Minha irmã tem amigos em toda parte. Aqui e lá. Minha mãe me compra um caderno e eu sinto que não tenho amigos em parte alguma; Exceto o que só aparece quando quer e os que moram nas páginas dos livros. E eu escrevo no caderno sobre passarinhos, vida e morte e sobre meu amigo de olhos estrelados. Eu levo o caderno pra todo canto. Clique. Estou de volta em casa. Corro para o Smilinguido e peço desculpas pela demora; lhe dou bolo e café com leite, depois o coloco pra dormir embrulhando-o com um pano verde. Minha mãe pergunta o que eu fiz que rasgou a página. Eu cuidei, mãe! Eu cuidei. Ela não briga comigo, acha engraçado. Eu não vejo graça alguma em perder o novo e frágil amigo que rasgou-se com meu excesso de carinho. Vou para o quarto onde existo para chorar e escrever poesias sobre perdas. Clique. Estou na casa de minha avó. No seu quarto da despensa. Brinco com as tampas de garrafas que ela coleciona. São coloridas como as charges. Encontro um livro. É diferente dos que moram na minha despensa. Esse não tem figuras, só palavras. Começo a ler e logo chega a hora de ir embora. Me despeço da avó com sua benção e do livro com seu afago. Dia seguinte volto para os dois. O livro demora para me contar o que acontece no final. Tive de voltar para ele várias vezes. Não sei porque não o levei para casa emprestado. Não quis causar ciúmes aos outros. Gostei da espera, do mistério e do resultado. Para a minha avó eu volto até hoje. Clique. A casa está sendo reformada e minha mãe disse que não há mais espaço para o quarto de despensa na nova casa. Triste. Onde haverei de existir, mãe?. Clique. Fui ao meu lugar no dia de nossa despedida e fiz uma poesia e uma música para ele. Adeus. Tudo bem. Depois arranjei um jeito.

 

Iara Marina de Sales Santos

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Oi, queridos e queridas, tudo bem? Abaixo vou compartilhar algumas das poesias sobre passarinhos, amigos imaginários e etc. que escrevi quando criança (tinha 8 ou 9 anos) nesse caderninho do Scooby-doo.


 

 

Vida: será que a vida é uma pessoa que escreve em um caderno, dizendo se seremos felizes por um minuto ou seremos tristes para/pela eternidade?

Morte: será que a morte é um aniversário do qual só nós seremos os convidados e só veremos nossa família depois que tudo terminar?

Vida: será que a vida é um jogo do qual seremos os participantes e precisamos enfrentar uma terrível batalha?

Morte: será que a morte é uma ferida da qual nunca se esqueceremos, mas que olhamos lá de cima o passado que vivemos?

Vida: não sei se minha vida vai durar anos ou vai durar pouco, mas só sei que até hoje vou aproveitar e melhorar com o meu mundo. Fim.

 

Passarinho


Nasceu um passarinho tão novo e tão sozinho, abandonado por sua mãe. Um passarinho cheio de sonhos, mas não podia sonhar e em/os seus sonhos transformou em músicas. “Quero ter um amiguinho que me faça acreditar que a vida é cheia de surpresas, basta querer acreditar”. E quando encontrar minha mãe, vou pedir é obrigado, mesmo por ter me abandonado, mas me deu a chance de viver e de conhecer a vida e de conhecer o mundo. E um dia posso sonhar tanto que se torne realidade, que encontre meu amigo e que sonho seja só sonho, pois é a realidade que a gente deve acreditar.

 

Meu amigo


meu amigo meu companheiro

meu querido conselheiro

que me dizia o que fazer

que contava-me teus segredos.

Meu amigo meu companheiro

meu querido conselheiro

que corrigia coisas erradas

e que nunca ria de minha cara.

Meu amigo meu companheiro

fiquei triste de ir embora

mas não pense que te esqueci

pois sempre te guardei na memória.

Meu amigo meu companheiro

eu só peço a deus um dia

que a gente possa se encontrar

e repita as mesmas coisas

e que nada possa nos separar.


 

Fim.


RELÍQUIAS ESTUDANTIS


Nonato Cipriano 

 


Antes mesmo que tivera completado cinco anos, eu já conhecia as letras do alfabeto, mesmo não havendo frequentado escola em períodos anteriores. Numa das paredes azuis da minha casa, em Itaueira-PI, meu pai havia pintado as letras do ABC em caixa alta e logo nos primeiros anos de vida eu era incentivado a repetir aquelas letras. Essa prática virou uma espécie de desafio: todos que vinham nos visitar ou que por algum motivo adentrasse a sala, instigavam-me a responder uma determinada letra que estivesse sendo apontada por aquela pessoa. Não demorou muito e lá estava eu, conhecedor de todas as letras do alfabeto. Não me recordo se naquela época havia alguma escola com maternal, na minha cidade. Se havia não frequentei.

 

A minha tia Maria da Paz Saraiva, hoje ainda viva e com aproximadamente 100 anos, ensinava em sua própria casa, uma espécie de preparativo para ingressar o aluno no primeiro ano da escola e foi, oficialmente, a minha primeira professora. Era uma turma pequena com seis a oito alunos, sentados em cadeiras de madeira com assento de couro, na mesma sala em que ficava sua máquina de costurar. Um pequeno quadro negro em moldura de madeira e pendurado por um barbante a um prego cravado na parede, servia como apoio para suas explicações. Ali se ensinava as letras do alfabeto, os numerais de zero a nove e outros ensinamentos que servisse de base àqueles iniciantes. Nessa época não havia estímulo à coordenação motora nem tampouco essas metodologias pedagógicas aplicadas aos nossos filhos, desde o primeiro ano de vida, quando já começam sua jornada na escola.

 

O meu primeiro dia de aula foi à tarde. Antes do almoço papai chegou do comércio trazendo um caderno de doze folhas, daqueles de capa com linhas azuis e vermelhas que se cruzavam perpendicularmente formando uma estampa semelhante à nossa toalha de mesa. Além do caderno, um lápis, sem fazer a ponta, com uma borracha encaixada na sua parte superior. Esse era todo o material escolar que eu precisava. Nesse dia tomei um banho caprichado, vesti a melhor roupa que tinha: uma camisa e uma bermuda de tecido, ambas feita por minha mãe que também era costureira e uma sandália modelo japonesa da marca Cariri. Papai aplicou um creme cheiroso no meu cabelo para assentar o penteado, depois o partiu de lado, no formato habitual e então sentei-me para almoçar.

 

Após o almoço, seguimos, a pé, em direção à casa de minha tia. Quando chegamos havia um lugar reservado na primeira cadeira, bem próximo à professora. A turma já estava com sua lotação quase completa, inclusive com a presença de um vizinho de rua, recém-chegado do interior, por nome Dominguinho. Sentei-me confortavelmente na cadeira com a segurança e com o aditamento de ser a professora, minha tia. Papai fez as devidas recomendações e pôs-se do lado de fora da casa, encostado à soleira da janela, exercendo um papel de âncora para minha insegurança. Ao meu redor, crianças com os olhos cheios d’água, outras chorando tanto que


permaneciam soluçando, de tanta saudade de casa. Eu ali, permaneci firme, na casa de minha tia e com meu pai me olhando da janela, sereno e confiante. Fortuna que só durou até o momento em que me virei em direção à janela e meu pai não se encontrava lá: tinha voltado para casa. O que era uma fortaleza em mim, desmoronou-se em choro e agonia, superado apenas quando ele veio buscar-me. Os dias foram passando e eu fui me acostumando a ficar só, na sala de aula. Agora,  meu  pai  apenas  ia  deixar-me  na  escola, o retorno para casa vinha na companhia do meu,    digamos, amigo, Dominguinho. Explico. Dominguinho, recém-chegado do povoado, tinha muita dificuldade de aprender as letras e numerais, enquanto eu passava quase toda a aula batendo com a borracha no caderno, tendo em vista a professora ser minha tia e eu já saber tudo que ela estava explicando. Ele sentava-se uma cadeira atrás  da minha e passava a tarde toda espetando minhas costas com a ponta do lápis para eu tirar suas dúvidas. Ora, veja! Eu estava em pleno conforto e  meu ego infantil não permitia aderir facilmente àquelas propostas. Daí em diante Dominguinho começou a me ameaçar, dizendo que iria me deferir tapas e cascudos quando voltasse para casa. Foi então que passei a sentir medo e depois apanhar de Dominguinho.

 

No retorno da escola, a gente costumava fazer um atalho para não ter que dar uma volta maior no quarteirão. Para isso, a gente passava por um beco estreito que ficava entre a casa de Manoel Cipriano e Zezinho Gualberto. Era um local muito deserto e ali Dominguinho desferia seus cascudos em minha cabeça, sem dó nem piedade, como acerto de conta por não o ter ensinado. Eu apenas chorava porque tinha medo dele, por ser mais forte que eu, por ele ser estranho e por medo de apanhar de novo, quando chegasse em casa. Papai tinha uma conduta de que se brigasse na rua, apanharia em casa. Então eu apanhava só na rua e assim conclui essa minha fase escolar que correspondia à alfabetização.

 

Janeiro do ano seguinte, fui matriculado na Primeira Série A, no Grupo Escolar Monsenhor Uchoa. Professora? Neuzália Saraiva, minha tia.

 

O momento exigia um pouco mais de preparativos. Fui com meu pai até o comércio da cidade comprar o material escolar: dois cadernos de doze folhas com a mesma capa daqueles anteriores, um lápis, uma borracha e uma conga azul. Isso mesmo, uma Conga azul. “Caderno de arame” era luxo. Eu iria estudar no Grupão e precisava estar fardado com camisa de tecido branco, bolso com as iniciais pintadas G.E.M.U., calça azul, meia branca e a tão sonhada Conga azul. Agora eu era um aluno de verdade, com farda e estudando no Monsenhor Uchoa. E o melhor: Dominguinho tinha voltado para o interior porque o milharal estava tomado pelo mato e precisando ser limpo.

 

Deus no fez envelhecer, mas preservou o que há de mais sublime em nossa vida: nossas lembranças da infância. Mesmo com os rigores do Alzheimer, nossa memória infantil permanece intacta. E lembro como se fosse esse instante, tia Neuzália escrevendo as letras do alfabeto em meu caderno, uma em cada linha, traço pontilhado, para eu “cobrir” com o lápis. Agora que eu já sabia reconhecer as letras, estava aprendendo a escrevê-las. Esse momento foi importante em minha vida: foi o momento que eu aprendi escrever. Eu tinha uma facilidade muito grande de aprender, quaisquer coisas e essa facilidade me fazia o tempo sobrar, enquanto outros tentavam. Esse tempo “vago” aproveitava para sair da sala e imitar pessoas e animais. Meu primo Joacy Cipriano que estudava na mesma sala, gostava de pedir para eu imitar um pai-de-chiqueiro. Certo dia eu estava imitando o pai-de-chiqueiro subindo na cabra, quando a professora sentiu falta de mim na sala. Flagrou-me com a bermuda até os joelhos, bodejando e fazendo a parede de cabra, enquanto Joacy se esvaia em risadas. Não foi mais difícil para mim porque ela era minha tia.

 

Problemas à parte, foi um ano proveitoso, de notas excelentes e destacando-me como um dos melhores alunos da turma. Tão certo que a professora insistiu com minha mãe para eu ser matriculado na Segunda Série, sem passar pela Primeira Série B. Minha mãe relutou e eu tive que cumprir a grade curricular tradicional.

 

No ano seguinte, estávamos no primeiro dia de aula, da Primeira Série B, aguardando a professora. Eis-me que entra a professora (aqui vou chamá-la Maria, por motivos particulares) esposa de um inimigo mortal de nossa família. O céu desabou. Como eu diria ao meu pai que a

minha professora era a tal mulher! Foi um ano tenso, mas consegui romper, sem agravos.

 

Confesso que não foi fácil para uma criança de oito anos.

 

Os anos de 1976 e 1977 foram muito difíceis para nós. Em 1976, perdemos as eleições para um grupo de inimigos políticos e pessoais, cujo prefeito eleito era enteado da minha ex-professora, Maria. Meu pai era um ativista político do antigo MDB e por esse motivo sofreu perseguição política e até correu risco de vida. Com o resultado das eleições, mudamos para uma pequena propriedade distante quatro quilômetros da cidade, com receio de represálias da euforia pós vitória. Nesse lugarejo, papai comprou um jumento para mim. Esse jumento me servia de montaria para ir de nossas terras até a Escola. Foi um ano de muitas quedas, literalmente, levando em conta que o animal não estava bem domesticado e, parece-me, sentia muita saudade do seu antigo dono. Essa jornada durou de março até maio, quando voltamos à cidade para então concluir meu segundo ano primário. Esse foi o ano de minha primeira e inocente paixão, meramente imaginária por uma colega de sala, Gilvanete. Ela nunca soube dos momentos que me deixava brando, quando se sentava ao meu lado, na “carteira” de dois lugares. No ano de 1977, meu pai viajou para o Maranhão em busca de dias melhores e então ficamos sós, com minha mãe, até findar o ano.

 

No ano de 1978, ingressei na Terceira Série. Professora? Lulu Saraiva, prima de mamãe.

 

Foi o ano do meu exílio.

 

Ano que meu pai precisou sair da terra que nascemos e amávamos. Terra que nos viu nascer, crescer e correr por suas campinas, como nobres crianças felizes. Tempos de alegria, felicidade... tempo que minhas pálpebras se cansaram de tanto chorar e na madrugada fria partimos, com o peito cingido para despertar em outras terras, nas terras do vasto Maranhão. Minha terra, a minha escola, Gilvanete, minha prima Teresa, minha prima Alice, meu padrinho Vicente... ninguém... nada... nada nos segurou em nossa terra. Partimos. Mas de Deus é que vem o bem. Ainda hoje choro essa viagem desmedida, sem prumos, sem esperança, concorrendo para nosso viver.

 

Loreto-Maranhão, a cidade que nos acolheu.

 

Ali ingressei na Escola Dr. Isaac Martins. Tudo era diferente da minha querida Itaueira. Eu não tinha Tia Maria da Paz, Tia Neuzália nem Lulu. Cada disciplina tinha um professor. Foi a primeira vez que aprendi conjugar verbo, com a professora Iracema. Lá, em Loreto, eu estudei Português, Moral e Cívica, Ciências, Estudos Sociais, História, Religião...tudo separado, cada disciplina com seu professor. Achei aquilo elevadíssimo. A única coisa que lembrava minha cidade querida era cantar o Hino Nacional antes de entrar na sala de aula. Outra coisa que diferia era que em Loreto, a farda era camisa e bermuda e não, calça, mas as cores eram as mesma: camisa branca, calça azul e conga da mesma cor da bermuda.

 

A minha primeira aula de história foi inesquecível. O tema era o Descobrimento do Brasil, com a Professora Luzia. Ela nos ensinava como se estivesse contando uma história da qual tivesse participado. Algumas disciplinas que eram novas para mim, chamava-me atenção: Moral e Cívica e Estudos Sociais com seus livro ilustrados com imagens coloridas de cidades, aviões, animais, rios e barcos. Português tinha virado Comunicação e Expressão, um livro com muitas histórias como: A Lenda da Noite, Iara, A Cobra Honorato e O Sítio do Pica-pau Amarelo, meu primeiro despertar para a leitura.

 

Na Quarta Série, com a mesma turma que fora a Terceira Série, havia um entrosamento maior devido o período que havíamos permanecidos juntos. Outras novidades surgiram, por meio da Professora Carmem, durante as aulas, onde as meninas da turma gostavam de cantar e recitar poemas ao lado da mesa da professora, no início de cada aula. A escola era bastante atuante no aspecto social, desenvolvimento da expressão e linguagem. Todas as datas sociais eram comemoradas com participação dos pais e alunos, onde eram apresentados pequenos ensaios teatrais, cantos e se recitavam poemas. Muito comum na Páscoa, Dia das Mães, São João, Dia dos Pais, Natal, entre outros.

 

Nas comemorações da Páscoa, a Professora Carmem perguntou se eu gostaria de recitar um poema e, ainda incerto da decisão, aceitei. Era um pequeno poema de quatro versos, com o título O Cordeiro Pascal. Li, reli, decorei e quando chegou a hora de minha apresentação a fiz com muita desenvoltura o que me rendeu muitos aplausos. Quando chegou próximo ao Dia das Mães, a professora indagou-me, novamente, se eu aceitaria declamar um poema, na festa que a Escola iria fazer. Eu, ainda no fervor da minha atuação da Páscoa, prontamente aceitei. Então ela abriu seu caderno e entregou-me uma folha com um poema extenso com o título, Mãe, do autor Astério de Campos e se não me falha a memória, cinco estrofes.

As comemorações, dessa vez, foram no pequeno teatro do Salão Paroquial. As cadeiras estavam lotadas por mães, pais, alunos e professores. Eu que estava atrás das cortinas não tinha a mínima ideia da volumosa plateia. Chegou o momento de declamar os poemas. Eu era o primeiro da fila e o texto não estava muito bem memorizado, mas mantinha certa confiança já que o poema estava em meu bolso para um consulta emergencial. Abriram-se as cortinas. Quando me deparei diante daquela multidão, um frio ascendeu-me dos pés para o abdômen, concluindo com um estado de náuseas. Comecei a perceber um início de redemoinho das imagens em minha volta, até que senti uma mão me puxando, do local onde me encontrava. Não consegui iniciar o primeiro verso do poema e fui substituído pelo colega que estava na vez seguinte.

 

No curso Ginasial, tive os primeiros contatos com as obras literárias clássicas. Os primeiros livros que li foram O Guarani, de José de Alencar; A Ilha do Tesouro, de Robert Louis Stevenson; A Volta ao Mundo em 80 Dias, de Júlio Verne; Da Terra à Lua, de Júlio Verne; todos em quadrinhos. Depois li A Ilha Perdida, de Maria José Dupré e Iracema, de José de Alencar. No decorrer dos anos passei por um jejum literário que foi rompido no período véspera do vestibular, quando estudávamos diversos períodos literário e seus autores. Nesse meio de tempo li Fernando Pessoa, Camilo Castelo Branco, Machado de Assis...mais com o objetivo obter uma aprovação no vestibular que propriamente desfrutar daqueles conteúdos como fiel leitor.

 

Concomitante aos estudos, foi o tempo que aprendi tocar violão, fazer luau e

 

experimentar o ânimo e alegria que a cerveja proporcionava, no ano que fui morar em Teresina-PI, na casa de minha tia Rosa. Estudei bastante, mas não o suficiente para passar no curso de Medicina da UFPI. Quando saiu o resultado do vestibular hesitei em contar para meu pai que contava certo, minha aprovação. Passados alguns dias, ele me telefonou cobrando o resultado e eu lhe disse que não havia passado, mas que no outro dia iria refazer minha matrícula no curso


preparatório de vestibular do Colégio Objetivo. Ele, determinantemente, pediu que eu retornasse à Loreto e obediente que era, rumei viagem de volta para casa. Quando desci da condução com uma bolsa, um violão, o cabelo grande e as costeletas abaixo da linha mandibular, nos abraçamos, ele olhou firme para mim e disse: “Meu filho, agora eu sei porque você não passou no vestibular” Deixei passar alguns dias para acontecer a dessensibilização e quando o indaguei sobre minha volta a Teresina ele me disse que eu já estava contratado pela Escola Dr. Isaac Martins para lecionar Geografia, Artes e que estava matriculado num curso de datilografia. Deixei o café sentar o pó.

 

O ditado “há males que vem pra bem” não querendo dizer que estando em minha casa paternal seria um mal, tem um resquício de verdade. Foi o período que mais li em toda minha vida. Quando voltei para a cidade de Loreto, a Secretaria de Educação tinha inaugurado um biblioteca pública com uma variedade imensa de bons livros. Naquela bucólica cidade, sem muitas opções de entretenimento, eu passava o dia lendo. Lia de três a quatro livros por semana, incansavelmente. Nesse período consumi todas as obras de Machado de Assis, os poemas de Drummond, li Iracema, O Til, A Viuvinha, O Cabeleira, Luzia Homem, O Cortiço, A Moreninha... entre tantos outros que levaria tempo descrevendo. Essas leituras impulsionaram-me a escrever e foi quando despertei para a escrita, escrevendo meus primeiros poemas que ainda hoje os guardo no mesmo caderno que escrevi, no ano de 1987.

 

Em 1988, mudei-me para São Luís do Maranhão, a convite do meu tio Vicente Cipriano que achava um absurdo um jovem da minha idade, sem estudar. Preparei-me para o vestibular e logrei êxito, passando em primeiro lugar para o Curso de Enfermagem, na UFMA. E veio mais um jejum literário. Nada de livro, nada de escrever... somente os livros de assunto do curso. Em 1994, conclui minha graduação como enfermeiro.

 

No ano de 2001, um grande corisco caiu próximo de mim e me trouxe uma vontade inevitável de escrever. Então comecei as pesquisas de RODEADOR Memórias de Ângelo. Daí em diante a vontade permanente de escrever tomou-me conta e tive a grande recompensa de ser convidado pelo Nilvon, para fazer parte da Academia de Letras do Vale do Riachão.


NAS SOMBRAS DE UM INFANTE, UMA LEITURA!


Rômulo Rossy 

Talvez a brisa do horizonte que me embebia de ternura tenha sido minha primeira provença e mestra das letras. Aprendi a ler a terra antes de ler o alfabeto cuja origem se atribui aos fenícios. No alto da serra, de nome Cantagalo – justamente pelo fato de, quando estarem decidindo o nome do lugar, um galo ter cantado – eu fui balbuciando o que hoje, em memória, creio que não mais se definharia, ao não ser por amnésia ou Alzheimer.

Primeiro que, antes de ler, eu sempre fui muito afeito a canetas. Parecia um vício. Geralmente, do alto dos meus seis, sete anos, eu gastava uma por semana. Tudo que eu via, reproduzia na escrita; por conseguinte, os pequenos caderninhos do mercado podiam dar adeus às prateleiras e serem armazenados à minha estante.

Minha tia, Francisca Edilene. Dez reais mensais. Era este o valor que minha mãe, Enilda, a ela despendia para que me ensinasse a ler. Imagina, eu estava com cinco anos – mas como penso hoje, que tenho uma alma de uns setenta –, quem sabe à época eu já não tivesse um pouco mais. Fui rabiscando o bê-á-bá muito mais do que prestando atenção na leitura. Por isso, se eu for observar, eu sempre fui muito mais um escritor do que um leitor.

Ao tempo em que aprendia a ler, aprendi a interpretar as benesses da minha terra fecunda. Residia na chapada, caí na areia; na velha monark azul, sem antes ir à escola para a Alfabetização (hoje 1º ano do Ensino Fundamental I), com minha mãe – na motocicleta Honda vermelha, do mesmo ano que eu, 1999 –, que, categórica, deixava o ultimato:

– Ou estuda direito, aprende e tira boas notas, ou apanha? Qual você escolhe?

– Eu tenho escolha, mãe?

– Não!

Minha professora do antigo primário, Maria Helena Rocha, era a doçura em pessoa. Graças a Deus ainda é. Hoje reside em Picos, com o esposo. Filha da também doce Helena Rocha, irmã de “Riquinha” – Maria seu verdadeiro nome –, de quem também tornei-me, desde a infância, muito amigo, bem como de suas filhas: Judite, Nenen e Detinha. Sempre gostei de conversar com pessoas que tivessem mais anos que eu – com todo respeito cabido.

A figueira que abrigava a casa de Helena, no Cansanção, que hoje deve contar uns setenta anos, continua viva e feliz. Pena que, embora “de pé”, não mais esteja como a árvore a estrutura do colégio onde estudei minha primeira série, a unidade escolar Amélio dos Anjos – nome este de seu falecido esposo. Ela, que enviuvou-se no entorno de seus trinta e três anos, nunca mais casou-se.

Maria Helena, simples, amiga, companheira, foi me ensinando à medida que pôde, mas eu sempre tive um tempo um pouco estranho de aprendizado. Eu gostava de escrever, não de ler – talvez hoje eu entendo o porquê. Com o tempo, um ano ou dois depois, foi que “caiu-me a ficha” de que para se escrever bem é preciso ler bem, o que não quer dizer que todo aquele que lê bem o faz na escrita.

Até hoje, meus presentes favoritos são caneta, livro e dinheiro. A primeira porque marcou e marca a minha vida, o segundo porque me preenche a alma, e o terceiro porque, se não posso liquidar alguma dívida, consigo comprar a caneta e o livro. Sinto muito a falta de uma época, aos meus olhos, áurea, no seu sentido mais literal. Quando eu, recostando a bicicleta, depois de pedalar quatro quilômetros, na cerca em volta de cansanções, adentrava à sala, vivia em um universo paralelo, e em casa, a mesma viagem com os livros que me eram presenteados, sobretudo as compilações dos textos de Monteiro Lobato, o primeiro autor com o qual tive contato.

Depois, lembro-me, com um olhar sorumbático, do dicionário ilustrado que ganhei como presente pelas minhas boas notas. O ultimato era de 9.0 a 10.0. Às vezes um 8.0, um 8.5 “conspurcava” meu boletim. Isso se automatizou tanto em mim que, até à universidade, tive esse compromisso com as boas notas, e concluí minha graduação com 9.8566 – o IRA (Índice de Rendimento Acadêmico), resultado das médias de todas as quarenta e sete disciplinas que cursei divididas pela carga horária. Até em processo de receber a Láurea Acadêmica estou.

Por um lado, posso acentuar que hoje leio o mundo pelo curso que fiz, mas nos meus diamantinos anos de primário aprendi a ler a vida com os olhos fitados no horizonte. Tanto que o que escrevo vem de lá, não somente de inspiração do que vejo, sinto. Minha avó, Zefinha, fritando pipoca à tarde, minha mãe lavando roupa pelas 06 da manhã, meu avô, em sua carrocinha – que hoje guardo em memória dele – carregando capim para o gado, só me trazem aos olhos a certeza de que viver vale a pena.

Tive muitos percalços. Colegas tendentes a valentes, como fôra Eduardo, que não parava de me azucrinar. Não que eu fosse imaculado, mas o comportamento do neto de Maria de Elpídio chegava a amofinar, até, os nervos de “Xuré”, nossa merendeira, filha de Antônio Enéas. Eduardo, vituperioso, não economizava xingamentos.

– Xuré, vá pro inferno!

– Vá você, que sabe o caminho!

Xuré não era caranguejo, nunca andou para trás. Construiu uma bela família. Hoje ainda vive nos arrabaldes do Amélio dos Anjos, que depois da nucleação das escolas municipais da zona rural, não funciona mais. Tudo tem seu tempo, e acontece na hora que tem que acontecer. Eu, como muito da minha inspiração ficamos sepultados no alto daquela serra. Se eu pudesse viver uma regressão, não tenho dúvida de que, por pelo menos um dia, reviveria aquele aprendizado, aquela experiência de leitura que foi muito além do abecedário.

A essas horas, 06 às 07h, antes mesmo de ir à escola com Mara, minha vizinha mais próxima, filha caçula de Toinha e Galdino, estaria tomando um cafezinho e papagueando literalmente. Eles tinham um papagaio, e eu, que não posso me conter diante de animais, sempre sou taxado de insano, por conversar com eles – à minha maneira. Quem me ensinou a ler, titia Edilene, Maria Helena e, em termos poéticos, não materiais, a própria vida e experiência com a terra, levarei sempre comigo, além dos esforços imensuráveis de minha mãe, que atendia aos meus pedidos de comprar uma caneta e um caderninho por semana.

Soube que a vida é um sopro, e concordo. Eu também o sou. Deixei-me conduzir por aquelas letras de um sertão que me fez viver tanto que hoje, até na escrita, o pouco que posso conceber é, em voga, a gratidão pela infância e as primeiras letras que tive. Como volto a dizer, não sou mais o menino azucrinante que não parava de falar – herança familiar – pois, tornei-me o menino, a jovem velha criança (título de um poema meu), que, além de não parar de falar o quanto pode, também tece algumas linhas poéticas, de ensaio, crônicas, textos científicos e ficção. O que vivi, porém, anda longe desta última apesar de poder ser transformado nela. Eu, no fundo e para sempre, sou uma memória. Enquanto vida eu tiver, lembrar-me-ei de Abílio e Maria, meus outros vizinhos mais próximos, me ensinando a fazer chá de cidreira; vovô Zé Abel me recomendando proteção à carrocinha, vovó Zefinha, na cozinha, com a memorável trança de alho envolta sobre o fio da lâmpada, dizendo: “Rômulo, venha comer o beiju. Já tá feito!” 

O tempo a Deus pertence. O meu, talvez, já tenha passado. Se eu tivesse de ir hoje às verdes pastagens, iria com a certeza e o profundo comprazimento de que aprendi não só a ler e escrever, mas que, no intervalo de ambos, o mais importante foi eu ter vivido para ambos consumar: a leitura e a escrita.


RASTROS


Romanilta Rocha 

A retomada dos dias da minha infância para melhor situar minha história de leitura proporcionou-me a evocação  de momentos que se traduziam em perfeitos encontros com o que costumamos denominar “leitura de mundo”. Contudo, à luz da minha “ignorância infantil” não podia vislumbrar quão importantes  far-se-iam, posteriormente, aqueles instantes para minha formação intelectual , também, humana.

E quais foram esses referenciais? Quem ou o que ancorou minhas indagações ante à compreensão do universo ao meu redor?

Tenho como respostas a estes questionamentos tênues lembranças ou fragmentos de algumas afetivas memórias que ainda teimam em brincar nos meus pensamentos.

No entanto, queria antes registrar que,   quando passei a entender, de fato,  a minha família, percebi que já não dispunha de avós, restava-me apenas o avô paterno e as escassas lembranças do pouco tempo entre a minha chegada  e a partida dele, portanto não tive o privilégio de ir à casa dos meus avós.  Todavia, como sempre tive predileção por estar entre pessoas com maior experiência de vida, sempre que podia estava visitando os tios, tias, parentes ou mesmo pessoas com as quais tivesse afinidade, tanto na minha São Julião, quanto nas suas adjacências.

Desta forma, a  primeira destas memórias me ocorre  na revisitação a humildes e diversas casas encravadas num destes lugarejos quaisquer da minha terra natal.  Por ocasião de uma farinhada ou “de um dia de ano”, mesmo “de um fim de semana num interior’.

 Embora nestas casas não se dispusessem de preciosos livros, dispunham , ao meu prisma, da sapiência materializada nas pessoas que nelas habitavam,  que numa rica tradição oral contavam e recontavam “causos”, “estórias de trancoso”, numa linguagem quase mágica, para mim, uma vez que se traduzia num falar fácil, cadente e gostoso de se apreciar, capaz de, ainda hoje, ecoar no íntimo do meu ser , trazendo à tona as gratificantes sensações da meninice. E vale dizer que as estórias de “Mouras Tortas, “Caiporas” ou de “Casas mal-assombradas” não estavam contidas em belas coleções  de “Era uma vez”, elas nasciam ou eram extraídas das memórias daqueles entes tão caros, por isso se faziam revestidas de tanto significado e encantamento.

Estas narrativass tinham, para mim, um valor ímpar: acalmavam os meus temores diante da miopia que tomava os meus olhos em relação ao mundo que me cercava, pois  brotavam da vontade daquelas pessoas de apaziguarem os próprios temores  ou das suas tentativas de  compreenderem o mundo também. Com estas histórias, eu aprendia que mesmo sem a mágica da palavra escrita, a gente assimila e repassa conhecimento, por gerações e gerações.

Um segundo momento que sedimentou minha história de leitura foi quando lá pela 4ª série do Fundamental tive a dádiva de ter como Mestra uma senhora de nome pomposo, D. Francisca Isaura, mas que todos conhecíamos como “D. Pilaia”. 

E que sorte  tê-la como professora!  Ainda que à primeira vista  ela parecesse encarnar o estereótipo de professora tradicional, não era o que ocorria,  longe disto, dentro de todas as limitações, às vezes quase intransponíveis, a querida D.Pilaia, que ainda hoje me enche de alegria e de júbilo sempre que a encontro,  disseminou em mim o gosto pela leitura.  As pecinhas teatrais ( ainda tenho amigos que me chamam de Angélica, uma personagem da Lygia Bojunga que corajosamente representei à época) os jograis, as poesias do Vinicius, da Cecilia (a inesquecível Canção da tarde no campo)  ou do Bandeira (...”café com pão, café com pão, café com pão, Virge Maria que foi isto maquinista?”) ou ainda o respeito para conosco, seus alunos, são fatores que até hoje consigo rememorar.

O terceiro instante que muito contribuiu para dar forma à concepção de leitura que disponho, deu-se a partir de duas figuras masculinas relevantes para minha vida: o meu amado pai, João Aderson,  de quem  ganhei um tesouro em forma de livro,  uma singela edição bíblica, que a despeito de qualquer fé  professada , sempre foi  e continua sendo capaz de me direcionar ao Criador, em todas as circunstâncias.  A  outra pessoa,  Edilson Rocha, um  primo querido, (que me chamava e ainda me chama de “Miram”),   um dos seres de alma mais nobre que conheço, foi dele que,  no início da adolescência,  ganhei um exemplar do clássico “Pequeno Príncipe, de Exupéry, cuja significação contribuiu para o meu ingresso no fantástico mundo das palavras. Também , por intermédio deste primo querido, ainda na adolescência sorvia com sofreguidão clássicos e mais clássicos da literatura nacional e internacional: Jorge Amado, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Gabriel Garcia Marquez, Pablo Neruda dentre outros  muitos grandes escritores chegaram até mim pelas mãos deste estimado primo. Outras leituras provenientes desta mesma fonte, (a biblioteca do Edilson) , mas em tempos diferentes: Os Irmãos Karazamov, Dom Quixote, As brumas de Avalon,  A insustentável leveza do ser, O perfume, Olga, Brasil Nunca Mais, A Ilha, O diário de Anne Frank, só para citar apenas alguns, foram outros tesouros literários que muito contribuíram para minha formação, em todos os aspectos.

Logo, a afinidade pela leitura fez nascer em mim a paixão pelo escrever,  acho que, talvez  pela inabilidade em demonstrar o que sentia através da fala , acreditei, assim, que podia  tecer mediante o meu pobre dicionário as minhas impressões sobre o mundo que me cerca, ainda que de maneira modesta.