Desafio do Conto 

(terror ou assombração) 

Zakula

(Desafio dos Escritores)

Por: Jailson Klein

Para “The King” Stephen

 

Fazia um lindo dia de sol na manhã em que Júlia receberia o sacramento da Primeira Comunhão. A família Rosa conversava alegremente no veículo enquanto percorria os oito quilômetros que separavam a chácara da família da igreja da cidade. A estrada serpenteava pelas encostas das montanhas tão comuns ao relevo da região. A rodovia, apesar do ótimo estado de conservação, requeria uma atenção redobrado dos motoristas pela enorme quantidade de curvas que apresentava em todo o trajeto e de caminhões pesados que trafegavam naquele trecho. O doutor Ronaldo Rosa, visivelmente alegre com a iminência da cerimônia religiosa da qual a sua filha única participaria, encontrava um jeito de olhar a estrada e ainda participar da conversa com a esposa e a menina.

— Filha, pelo menos na hora da cerimônia, você terá que largar essa boneca. Não é possível que você passe o dia inteiro agarrada com ela. Você já tem 10 anos, já é bem grandinha para esse apego todo com uma boneca de pano.

— Mas, papai, você sabe que, desde que a tia Tina me deu Zakula de presente, eu nunca me separo dela — disse com um biquinho de dengo. — E isso já tem uns cinco anos.

— Deixa ela, meu amor. Qual o problema que pode haver numa criança gostar de sua boneca? Mas é verdade que parece que tem um feitiço atrativo nessa boneca, como disse a vendedora a sua irmã quando ela comprou, mas se a Júlia gosta... — disse Emília confortando o marido, pousando a mão em seu ombro.

Ronaldo já prestava atenção em outra coisa na estrada. Um caminhão velho e carregado vindo em sentido contrário, ainda longe, na curva do outro monte, passou-lhe a impressão de que ziguezagueava na pista. Estranho!

Júlia estava linda e perfeitamente arrumada aos olhos da mãe. O seu vestido branco com vários babados de renda foi presente de sua madrinha de batismo. Os cabelos foram divididos em duas tranças impecavelmente arrumadas. Uma tiara adornada com lindos enfeites dourados completava sua apresentação.

Ainda não satisfeita com os comentários do pai, Júlia falou:

— Papai, quero que prometa que fará de tudo para que eu nunca fique longe de minha Zakula.

— Tá bom, filha, mas verá que, quando for mais mocinha, você mesma deixará essa boneca de lado.

— Isso nunca acontecerá, papai. Nunca!

Emília Rosa estava preocupada com o horário da missa, e olhava as horas a cada cinco minutos.

— Amor, não dá para ir mais rápido? Estou achando que vamos nos atrasar.

— Nessas curvas não dá para correr tanto, e ainda mais com esse tráfego de caminhões.

Ronaldo cruzara com alguns caminhões até ali, mas a sua apreensão se dirigia àquele veículo que avistara antes, cujo motorista parecia dormir ao volante ou, talvez, estivesse bêbado.

Emília virou-se para trás para falar com a filha:

— Ah, filha, hoje estou me sentido particularmente feliz, mais que sempre, e é apenas a sua Primeira Eucaristia, não é um casamento! Não sei o porquê de tanta... felicidade — disse a mãe e deu uma risada um pouco desproporcional para o dito.

Ao contornar uma enorme montanha, a estrada se inclinava numa ladeira íngreme, não que fosse problema para o novo e potente veículo da família. Já bem visível e descendo em velocidade perigosa, vinha o velho caminhão avistado por Ronaldo. Por prudência, este diminuiu a velocidade, apesar dos protestos da esposa.

A duzentos metros à frente, onde havia uma curva acentuada, o velho caminhão carregado de caixas e toras de madeira descia velozmente, ora na sua faixa, ora no acostamento, ora na contramão.

 

+ + +

 

Eu me lembro perfeitamente quando tia Tina me trouxe Zakula de presente de aniversário. Ela fez uma viagem de férias ao México e, disse ela, que, numa excursão à Ilha das Bonecas, foram a uma pequena feira de artesanato local. Ela disse que, entre tantos objetos oferecidos na barraca de uma senhora, reparou logo em Zakula. Tia Tina sempre me encheu de presentes. Disse que pensou em mim de imediato. Zakula não era tão bem feita quanto as bonecas das fábricas grandes. Era de um pano grosso, parecido com estopa; os cabelos eram de barbante ou tiras de couro, nem sei direito o que era aquilo. Os olhos, a boca e o nariz eram pintados, mas acho que a artesã não era tão boa em pintura. Os olhos dela pareciam... tristes... ou sérios. Não sei. Às vezes tinha medo daquele olhar. A roupinha era do que eu mais gostava. Toda costurada, uma blusa vermelha e uma saia preta. Nos pés, também costurados, uns sapatinhos de um fino couro. Eu gostei dela desde o momento que recebi, me senti atraída.

— Olha, Juju, a tia achou a sua cara, essa boneca! A velha senhora que me vendeu disse que o nome dela é Zakula, e que ela tem o poder de criar uma ligação muito forte com a dona, pra vida toda. A mulher que me vendeu disse que é uma lenda que vinha dos tempos dos povos antigos do México.

— Ah! Que legal, tia! Eu quero muito a Zakula! Obrigado, obrigado, tia!

Meus pais sempre me deram muitos brinquedos. Bons e caros. Todos os que eu queria. Minha tia Tina e minha madrinha também, de modo que o meu quarto era cheio de tudo que era brinquedo: bonecas de todos os jeitos, pelúcias, jogos eletrônicos, jogos de tabuleiro, bonecos de personagens, fadas, princesas e muita coisa mais... Mas, depois que Zakula chegou, ela passou a ser, de longe, a minha favorita.

O que sempre achei demais em Zakula é que ela não se desgasta, não envelhece. Há cinco anos que brinco com ela, levo de um lado para o outro, deixo no chão, e, ainda assim, ela continua nova do jeito que ganhei. Nem suja ficou. Isso é, de verdade, muito estranho.

E agora... desde o acidente e que a mamãe... se foi, fiquei também sem Zakula, pela primeira vez. Papai vive chorando pelos cantos, não quer saber de nada, parece não querer mais viver. Fico triste com a mamãe, mas entendo.  Não suporto é presenciar o sofrimento do papai nesses últimos dois... ou três dias... Nem sei mais quantos dias se passaram desde o desastre. Parece que o tempo corre diferente agora. É tanta dor do papai que parece que vivemos o mesmo momento constantemente. Estou preocupada com ele. E, se isso não bastasse, ainda perdi Zakula. Não consigo ficar sem ela. Pelo menos queria a sua companhia para amenizar a minha solidão. Terei que falar com o papai para que ele tente recuperar minha boneca, mesmo sabendo do momento terrível por que ele passa.

A nossa casa estava tão vazia. Os parentes ficaram por um ou dois dias e se foram. Tia Tina quis ficar mais, mas o papai recusou. Acho que ele queria ficar sozinho para sofrer e chorar tudo o que pudesse.

Ele ficava sentado no chão do quarto dele e da mamãe, cheirando as roupas dela, caído, às vezes dormia ali mesmo. Dormia pouco. Às vezes, vinha ao meu quarto, mas não falava nada. Só chorava.

À noite, resolvi ir até o quarto deles para lhe falar. Precisava lhe pedir um favor. Precisava que ele recuperasse Zakula.

Ele estava sentado entre a cama e o criado-mudo, com um porta-retrato de nós três na mão. Quando levantou a vista, o rosto molhado de lágrimas, e me viu ali parada no centro do quarto, fez uma cara de assustado e disse:

— Júlia! Oh, minha filha...

— Papai, eu preciso lhe falar. Tenho um pedido a fazer.

— Júlia, me perdoe pelo acidente... — disse num choro misturado de gemidos e palavras.

— Papai, o senhor não deve se culpar pelo acidente. Não foi sua culpa, foi do destino.

— Aquele caminhão veio para cima da gente... — Ele voltou a chorar, sem conseguir falar. Quando se recuperou, disse: — Que bom falar com você, filha, mas ainda dói tanto essa situação... E sua mãe...

— Ela se foi, papai — interrompeu Júlia. — Ela deve estar bem no lugar que está. Papai, preciso de um favor, é muito importante para mim. Preciso que traga Zakula de volta. O senhor pode fazer isso?

— Zakula? Não sei... Será que ninguém a tirou do carro? Ela ainda estará nas ferragens do que sobrou do nosso carro?

— Acho que sim. O senhor pode pegá-la no carro?

— Oh, minha filha, você realmente tem uma ligação forte com essa boneca. — Depois, mudando de assunto, o pai comentou: — Por que ainda veste esse vestido da Primeira Comunhão? Ele só me traz lembranças dolorosas.

— Eu gosto dele. Me traz muitas recordações boas da mamãe... e daquele dia.

— Eu vou tentar, minha filha. Vou tentar recuperar sua boneca.

— Obrigado, papai. Eu te amo. O senhor precisa tentar sair desse desespero. Continuar a vida. Voltar para seus pacientes. Não pode desistir!

— Eu não consigo, Júlia. Você e sua mãe eram tudo que eu tinha, e agora...

— Chega, papai! Temos que prosseguir. Você, eu, mamãe. Todos seguiremos nossos caminhos. Mamãe fez a passagem e deve estar num lugar de luz e de paz. Eu preciso seguir o meu. O senhor seguirá o seu até chegar o dia de fazermos também essa passagem. A minha madrinha diz que é só uma viagem.

— Não sei se consigo, filha...

— Temos que conseguir.

Eu fiquei no centro do quarto. Em nenhum momento me aproximei do papai, talvez pelo estado de extrema melancolia em que ele se encontrava.

— Papai, tem mais uma coisa que queria que fizesse, depois de encontrar Zakula. Essa talvez seja um pouco mais difícil para o senhor.

 

+++

 

 

 Foi mais difícil sair daquele buraco em que me encontrava, e queria ficar, do que conseguir achar a boneca. O carro completamente retorcido foi levado para o pátio da polícia. Conseguir liberação com o delegado para verificar o carro foi fácil. Ele estava compadecido com a minha situação. Chamei um serralheiro e fomos até onde estava o veículo. Foi muito impactante olhar para aquele amontoado de ferro e plástico. Mas não havia nada em que eu não fizesse por minha filha, ainda mais nesse momento.

O serralheiro achou melhor tentar entrar pelo lado do motorista, pois estava menos danificado. Ele serrou algumas peças e pudemos vislumbrar o banco do carona. Estava dobrado e rasgado, com ferragens enfiadas no estofado e... havia muito sangue ali. Achei que vi até pedaços da roupa de Emília. Não é de se admirar que ela tenha ficado totalmente dilacerada. Quase vomitei ao pensar nisso. Senti náusea e saí um pouco para respirar. Indescritível a dor que senti ao ver o último lugar que minha esposa esteve viva aqui na terra. Depois de instantes, disse ao serralheiro que procurasse na parte de trás do veículo, onde estava minha filha no dia.

Com certo trabalho para abrir espaço por entre tanta ferragem, conseguimos chegar ao banco traseiro. Havia um pouco de sangue no estofado. Quando ele conseguiu afastar a porta, que havia se retorcido para dentro do carro, avistamos a boneca no lastro, atrás do banco de Emília. Quando o serralheiro a retirou de lá, ficamos espantados! A boneca não tinha a menor avaria. Estava novinha como sempre fora. Que bom para a Júlia! Foi um pingo de alegria no meio daquele poço de tristeza. E foi aí que pensei no próximo passo. Júlia sabia que aquilo que me pedira seria penoso para mim, mas se ela, ainda assim o fez, é porque deveria ser realmente necessário.

Como senti dó de minha pequena Júlia. Uma dor que não desejaria para o meu pior inimigo. Graças a Deus que ela, aparentemente, não está tão abalada com o acontecimento. E agora lhe darei, ao menos, essa alegria de ter sua Zakula de volta.

 

No dia seguinte, houve uma missa de sétimo dia na igreja da cidade. Durante a cerimônia, Júlia estava na primeira fileira de bancos da outra asa da igreja, próximo ao altar. Novamente com seu vestido branco da primeira comunhão. Ela não tirava mais aquele vestido. Em certo momento, lhe acenei confirmando que hoje à noite cumpriria a minha promessa. Em casa, nos últimos dias, ela apareceu mais duas vezes no meu quarto para conversar. Eu evitava de ir até o quarto dela, pois não suportava a tristeza e a solidão daquele lugar... Quando pensava que sua mãe nunca mais entraria ali para reclamar da bagunça da filha e para, sorridente, lhe desejar boa noite, com um beijo na testa... Não, não havia como suportar isso.

Já em casa naquela noite da missa, quando as horas eram avançadas, me preparei para a tarefa. Arrumei uma mochila com algumas ferramentas e outros utensílios e, com o carro de Emília, comecei a percorrer, novamente, o trajeto para a cidade. Antes de entrar no veículo, olhei para a frente de nossa casa e vi Júlia parada, a observar as minhas ações. Ela ansiava para que terminássemos com isso e pudéssemos seguir em frente. Eu não sei se consigo, filha.

Cheguei tarde à cidade, que já dormia há tempos. Pouco movimento àquela hora. Fui direto ao meu destino: Cemitério da Paz. Fiz uma tentativa pelo portão principal, mas, como previa, estava fechado. Procurei uma área mais escura e pulei o muro. Sabia muito bem onde ficava o local que buscava. Enquanto caminhava, me arrepiava com aqueles túmulos de todos os formatos e estados diferentes de conservação. Alguns muito escuros pela umidade, com as paredes um pouco destruídas, o reboco caindo. Em outros, restavam apenas a cruz sinalizando a sepultura. Retratos dos mortos na cabeceira, quebrados, encardidos ou descoloridos identificavam as arquiteturas mais imponentes. O mato crescia entre as vielas e, em certos lugares, quase encobria a sepultura. A iluminação não era das melhores na parte interna e contribuía para me ocultar. Torcia também para que não houvesse vigia noturno. Que lugar horrível para se visitar à noite. Apesar de médico, nunca lidei diretamente com a morte na minha carreira. Durante a formação, trabalhei com cadáveres, mas era diferente. Nunca tive que conviver com a morte tão próxima a mim.

Entrei na viela onde estava a sepultura. Vi, de longe, a nova e bonita construção em mármore. Quem haveria de pensar ou querer uma bela sepultura na flor da vida?

Para meu azar, ou sorte, o local estava mais escuro que outros ali de perto.

Parei em frente à grande laje que tinha largura aproximada de 2,5 metros. Mármore, azulejos e todo tipo de acabamento para tornar aceitável aquela morada da morte. Havia uma foto de Emília na parte superior. Um epitáfio, o seu nome e as datas de nascimento e morte. Na parte dos pés, ficava a gaveta, lacrada com um enorme tampo de concreto. Tudo devidamente selado. Senti um calafrio ao me lembrar que o caixão de Emília estava fechado no velório de tão destruído que ficara seu corpo com o impacto do caminhão. Definitivamente, eu não queria ter visto ela nesse estado. Também não quero ver agora.

Do lado direito, mais uma gaveta. No alto, uma foto, o epitáfio, as datas e o nome: Júlia Marques Rosa. Oh, meu amor! Como Deus permitiu que eu perdesse as duas pessoas mais amadas de uma vez? Chorei durante uns dez minutos encostado na tumba. Quando comprei as sepulturas, por precaução, já reservei para toda a nossa família. A terceira gaveta era destinada a mim e, talvez, não demorasse muito a ser ocupada.

A parte mais difícil estava por vir. Levantei-me e, sem querer, o médico dentro de mim ficou a pensar no estado do corpo de minha filha após uma semana. Na verdade, estava inseguro se suportaria tamanho horror. Não queria, mas os pensamentos vieram.

Momentos depois da morte, começa um processo chamado de autodigestão. As enzimas começam a digerir as membranas e vazam; o fígado, o baço, o cérebro e o coração começam a se liquefazerem; as bactérias existentes no intestino se espalham pelo corpo; a temperatura do corpo cai e chega o rigor mortis – a rigidez cadavérica; começa a putrefação do corpo; subprodutos gasosos são produzidos fazendo com que o corpo estufe; a pele fica esverdeada e a pressão do gás que continua a se acumular dentro do corpo faz com que bolhas apareçam por toda a superfície da pele. Os gases e os tecidos liquefeitos acabam vazando do corpo pelos orifícios; as larvas atacam e comem os tecidos; a pele gruda ao esqueleto, depois some e aí restarão, do corpo, poucas cartilagens, cabelos e ossos...[i] Meu Deus! Em que estágio vou ver o corpo da minha linda garota?

Extraindo coragem não sei de onde, abri a mochila, procurei as ferramentas e comecei o trabalho para soltar a placa de cimento que vedava a gaveta.

A pedra era pesada demais. Depois de um esforço absurdo, pousei-a no chão e comecei a puxar o caixão para fora. Quanto mais me aproximava do momento de ver o cadáver de Júlia, mais enjoos me ocorriam. Arrastei o caixão até ficar somente uma pequena parte dentro da gaveta. Soltei as quatro borboletas parafusadas que prendiam a tampa e depois comecei a soltar as presilhas. Depois disso, a tampa estaria totalmente livre. Após um certo tempo naquela sombra, passei a achar que havia boa luz no local. Um caixão bonito para uma princesa... não mais agora. Ó Senhor, dai-me forças para suportar sem desmaiar!

Soltei as duas presilhas da parte superior e, na última, esperei um momento. Olhei para o céu claro e destravei. Pegando pela lateral com as duas mãos, pus força na tampa para o lado oposto até que ela cedesse e fizesse um barulho do contato da madeira... e foi quando um facho de luz entrou no interior do caixão...

 

+++

 

... senti um facho de luz invadindo minha escuridão. Papai me trouxe Zakula!

 

+++

 

Já era madrugada quando Ronaldo chegou em casa. Estava esgotado. Foi ao banheiro e vomitou o quase nada que havia no estômago. Achava que se sentiria melhor, mais conformado quando fizesse o trabalho, mas estava enganado. Continuava tão deprimido quando antes. Talvez um pouco satisfeito por cumprir a promessa que fizera a Júlia... Mas a visão que teve no cemitério fora o maior pesadelo de sua vida.

Foi para o quarto, para o chão de todos os dias. Levantou-se e pegou uma garrafa de bebida e um copo. Sentou-se novamente e esperou.

Quando já estava meio dormente, viu um borrão no centro do quarto. Sentou-se mais ereto e arregalou os olhos para a visão que já vira antes algumas vezes. No meio da mancha amarelada, outra menor, preta, começou a se formar, e a imagem da filha tomava vulto. A primeira coisa que percebeu foi o seu vestido branco da Primeira Comunhão, como sempre ela estava vestida. Depois que os traços da imagem da filha se completaram, reparou que ela segurava algo na mão: uma boneca.

— Papai, você me trouxe Zakula de volta. Estou me sentido tão livre agora.

— Minha criança, papai te ama!

— Eu também te amo, papai. Agora posso fazer a passagem que mamãe fez.

— Não quero mais viver sem vocês. — Ronaldo chorava aos borbotões.

— Não diga isso, papai. Viva e espere chegar a sua vez. Não precisa ter pena de nós. Aqui é muito bom e, quando eu passar, será para um lugar de luz e paz.

— Eu queria vocês vivas! Aqui na terra, e não em outro mundo!

— Estamos vivas. No lugar que estamos, temos identidade. Papai, olhe para mim e me ouça: não é o fim. Não é o fim.

Ronaldo chorava descontroladamente. O espírito de Júlia continuou:

— Chegará um tempo em que nos encontraremos todos, eu, o senhor e a mamãe. Talvez de outras formas... Viva, papai! O amor que sentimos não morre com o nosso corpo.

— Não vá, filha! Fique comigo ou pelo menos venha me visitar de vez em quando!

— Eu não posso mais, papai. Tenho que passar.

A imagem de Júlia levantou a mão que segurava Zakula e disse baixinho, com aquela conhecida cara de dengo: — Até qualquer hora, papai! Mamãe está do outro lado há um tempo, e acho que ela me espera.

A mancha foi diminuindo até virar um ponto, e sumir.

Ronaldo chorou, deitou-se e arrastou-se pelo chão do quarto por horas. Levantou-se algumas vezes para servir mais bebida. Viveu um inferno naquela madrugada.

Em certo momento, foi até o seu closet, derrubou caixas e roupas pelo chão até encontrar algo que estava no fundo da prateleira mais alta e escondida.

 

Bem longe dali, próximo a um sítio, uma coruja-buraqueira tentava cochilar num aconchegante galho de árvore. A noite tranquila e clara favorecia ao merecido descanso da ave, quando, de repente, ela arregalou seus enormes olhos. Um estampido de um tiro distante dali, mas não o suficiente para a sua aguçada audição, acordou-a, e a coruja, sem mais paz, passou a vigiar a noite.



[i] Nota do autor: Algumas informações sobre a decomposição do corpo após a morte foram colhidas e transcritas de duas páginas na internet. São elas: https://gizmodo.uol.com.br/corpo-depois-morte/ e https://centraltrasladofunerario.com.br/estagios-de-decomposicao-do-corpo

 


Os Fantasmas de Zoe


(Desafio dos Escritores)

Por:  Fritz Moura

Acordava sempre no meio da noite apavorada, tremendo e suando frio, já fazia dois anos que a menina Zoe não conseguia ter uma noite de sono tranquila, sempre acordando em meio ao pânico. Toda a casa ficava em polvorosa por causa dos pesadelos. E o pior, ela dizia que era assombrada por dois fantasmas que a deixava em pânico, suando frio e se tremendo toda.

O pai de Zoe dizia que já estava passando da hora de buscar ajuda de um especialista, ela já ia fazer 15 anos, uma mocinha, não é possível que não possa dormir em paz, isto vai atrapalhar o crescimento dela. Sob o olhar de toda a família, balançando as cabeças em sinal de concordância. A mãe só chorava enquanto a avó fazia um chá para acalmar a todos.

Não é que não se tinha tentado resolver o problema nos últimos dois anos, mas todas as tentativas feitas só agravaram mais o problema. Desde a rezadeira que comadre Doquinha tinha trazido do Riachão, passando pelo o pomposo doutor de cabeça (psiquiatra) consultado lá na capital e seus remédios milagrosos que fazia a menina dormir mesmo gritando em desespero. Nada trouxe paz para Zoe. 

A mãe de Zoe parte para cima do Joaquim, o pai, em desespero dizia  - E agora a quem vamos recorrer!... Todos os dias Nena reza o terço para Nossa Senhora livrar a menina Zoe deste mau... Em meio ao burburinho dos familiares eis que surge uma voz calma como um canto de sereia. – Conheço uma terapeuta que trabalha com hipnose que talvez possa ajudar, ela não é doutora, mas tem conseguido importantes progressos com o pessoal da firma que eu trabalho...

Muito bem Terto! ... De onde tu conheces mesmo ela? E o que é esta tal de hipnose? Diga-nos Terto, tu não tens muita credibilidade na família. Tua vida é desregrada, gostas  mesmo é da farra, bebedeira e de mulher de vida fácil. Enfatizou Joaquim, que não gostava mesmo muito de Terto, aquele tio meio torto que toda família tem. Apesar de trabalhar na indústria de beneficiamento do mel da cidade, o melhor mel do país, diziam, não era lá muito responsável. 

Mas Terto não se calou e insistiu dizendo... - Vocês todos a conhecem, brincava junto com a gente quando criança. Estou falando de Marta filha de Chico Poeta, o trovador, e de sua esposa Maria de Louro. Ela estudou esta ciência da hipnose e vem tratando as pessoas com transtorno. Dizem que tem tido bons resultados. Lembram de Josefa de Santinha que todos diziam que era doidinha... bem ela a tratou e a moça pegou rumo na vida, dizem que vai casar mês que vem.

 Em meio a muito burburinho, xingamentos contra Terto que ousou comparar Zoe à doidinha da Josefa, e ainda propondo esta tal de hipnose que ninguém sabia mesmo o que era, se era um remédio, uma reza ou outra bruxaria qualquer. O fato é que a zueira foi grande e que Terto quase apanha. No final, Joaquim deu grito, daqueles para arrumar as discussões, e disse...

Calados! Muito bem, disse Joaquim, eu estou mesmo no desespero, estou aceitando qualquer coisa para ver minha filha livre desta insanidade. Terto, traga esta tal de Marta, pelo menos é de família boa e direita, conhecida de todos nós, pior do que está com certeza não vai ficar.

Terto correu até a casa de Chico Poeta e trouxe, no susto, Marta e jogou no meio daquela família em pânico. Marta, de olho arregalado sem entender nada, nem se quer conseguia entender o que estavam dizendo, pois, todo mundo falava ao mesmo tempo, então, quase surtando Marta gritou ... – Calem a boca! Saiam todos da sala, e que fique apenas o pai, a mãe e a menina que está com problemas!

E gritou com tanta autoridade que todos obedeceram, e forma saindo resmungando baixinho. Terto foi o primeiro a sumir no meio da confusão, foi logo tomar uma cerveja no bar de Pedrão, ali se ouvia todas as fofocas da cidade. Foi assuntar o que estavam dizendo de sua sobrinha Zoe.

Marta chamou o pai e a mãe no canto da sala, e falando com voz calma, tranquila disse que iria conversar em particular com a menina e que precisaria de silêncio absoluto na casa. Entrou no quarto da menina, de braços dados com ela, conversando baixinho, dizendo como iria proceder para ajudá-la. Deitou a menina na cama, sentou-se ao lado dela e disse ... – Feixe os olhos e comece a contar até 10, bem devagar, na medida que for contando você ficará com muito sono até dormir profundamente...

Quando Zoe dormiu, Marta começa a lhe fazer perguntas no sentido que ela descrevesse o que via e sentia. E Zoe começa a descrever ... 

– Vejo um espírito, uma espécie de vulto, que se aproxima de mim, me agarra e começa a me apertar até quase sufocar, fico sem ar.... 

Marta pergunta com voz tranquila e macia...

-                     Muito bem, respire fundo e me diga o que está passando em sua cabeça enquanto o espírito te aperta?

-                     Eu penso em tudo que já fiz em minha vida, os erros que cometi, os pecados, as ofensas e preocupações que fiz minha mãe e meu pai passar. Fica se repetindo em minha mente todos os erros e coisas que não saíram do jeito que eu queria em minha vida.

-                     Muito bem, agora livre-se deste fantasma, deste espírito que te oprima e siga adiante.

-                     Meu Deus! Agora vem aquele outro fantasma, um espírito que me acorrenta as mãos e os pés, grita comigo, me assusta, me apavora dizendo que não vou conseguir, que nada que eu tente vai dar certo, SOCORRO!  

-                     Acalme-se Zoe! Olha para dentro de sua mente e me diga o que passa em sua mente enquanto o fantasma lhe provoca o medo? 

-                     Penso em tudo que tenho a fazer nos próximos anos de minha vida, e nada que eu tente realizar tem êxito, e eu tento de novo e vem um novo fracasso, só fracasso seguido de mais fracasso, SOCORRO!

-                     Muito bem, agora livre-se deste fantasma, deste espírito que te provoca medo e acorde, AGORA!

Zoe acorda, apavorada, tremendo e suando frio, como sempre. Abraça Marta pedindo ajuda. Marta a tranquiliza e diz ... – Vou lhe oferecer uma saída deste seu pesadelo, agora tome um banho, como um pouco e depois conversamos.

Marta vai até os pais de Zoe para explicar o que está acontecendo com a menina. 

-                     Sua filha está sendo atormentada por dois fantasmas, vamos chamar assim, no sentido de que não existem, não são fantasmas de fato. O primeiro, que a sufoca, é o fantasma do passado, é tudo que ela acha que errou, as pessoas que magoou. São sentimentos e culpas que nunca serão resolvidas e que voltam para atormentá-la. O perigo é que este sentimento pode provocar um comportamento depressivo. O segundo, que lhe amarra, lhe prende, que lhe assusta e apavora, é o fantasma do futuro, é o medo que tem de viver, de que tudo que faça seja um desastre, é o medo do futuro que a atormenta. O perigo é que este sentimento pode provocar um comportamento carregado de ansiedade.

-                     Muito bem, agora já sabemos o que atormenta nossa filha, mas como vamos livrá-la destes “fantasmas”?

-                     Vou resolver com a hipnose. Vou sugestionar a mente de Zoe para que ela se livre dos fantasmas, e vamos ver se conseguimos tranquilizar a mente dela, e, assim, recuperar seu equilíbrio.

Marta segue novamente com Zoe para o quarto, põe na cama e a coloca para dormir, entra nos sonhos de dela e a acompanha pela sua tortura. Quando chega o primeiro fantasma Marta coloca na mão de Zoe uma caixa aberta e uma chave e diz ... – Prenda o fantasma nesta caixa e tranque ele com esta chave. Zoe cumpri a ordem, sugestão de Marta e consegue um alívio que nunca havia experimentado. 

Em seguida, vem o segundo fantasma para acorrentar Zoe, ela paralisada pelo medo, não consegue impedir. Marta sugestiona a ela que abra as correntes usando a chave que lhe deu. Zoe executa a sugestão e livra-se das correntes, mas o fantasma continua ali. Então Marta lhe dá outra caixa aberta e sugestiona que ela prenda nesta nova caixa este fantasma. Assim faz a menina, o alívio é imediato. Marta então pega as duas caixas, mostra para Zoe e as destroem, depois pega a chave mostra para a menina e diz ... – Esta chave chama-se presente, agarre ela e viva tranquila, pois ela destruiu todos os seus medos e pânicos.  

-                     ACORDE!

Nunca mais Zoe teve pesadelos em sua vida, cresceu e se tornou uma moça bemsucedida e feliz. Seus pais tornaram-se eternamente gratos a Marta, que ganhou fama em toda a região.  


Livusia

(Desafio dos Escritores)

Por: Romanilta Rocha 

    Seria a primeira vez que Selena iria visitar a terra de seu amado esposo Maurício. Não era de se  admirar, em razão disso, a dimensão da ansiedade que lhe tomava todo ser, ainda às vesperas da tão sonhada viagem. Ela,  natural de uma pequena cidade do Centro Sul piauiense. Ele, de um lugarejo do Norte do Piauí, às margens do Parnaíba, o “Velho Monge”,  como costumava se referir ao caudaloso rio assim cognominado pelo grande poeta Da Costa e Silva.

       Mal o dia clareou, ambos já estavam de pé. No quarto, Selena organizava alguns detalhes para viagem,  quando o cheiro de café que emanava da cozinha a fez esboçar um tímido sorriso e intimamente se orgulhar daquele companheiro tão especial que, mesmo na iminência de uma viagem,   não se esquivava de preparar o desjejum  para  ambos, com igual delicadeza  com que sempre realizava este ato de afeto desde o iníco da vida matrimonial.  Meia hora depois pegaram a estrada.

       Era começo de novembro , não obstante a estação da seca que,  causticando  a paisagem e deixando mirrado os parcos rebanhos das fazendolas ,  pelas quais serpenteva a estrada, vez por outra Selena apontava alguns ipês ainda tingidos de cores; e a explosão de flores ora roxas, ora amarelas ou brancas que adornava aqueles caminhos tão ermos,  era o suficiente para descortinar,  aos olhos dela,  o encantamento que o bucolismo das paisagens rurais sempre  lhe causava.

 - Meu Bem, ainda voltarei a morar no interior! - verbalizou o pensamento, do que era um dos seus sonhos mais recônditos.

Por volta do meio dia, chegaram ao pequeno e quase centenário povoado,  de nome Extrema, destino final da viagem. Era um vilarejo com poucas casas e com arquitetura singular, na qual se destacava , sobremaneira, o uso da carnaúba como a matéria-prima  que mais se sobressaía naquelas habitações. Atentando-se  ao derredor, Selena se deu conta da volumosa quantidade desta palmeira tão característica do Norte do seu estado, ao contrário da região em que nascera, na qual era escassa e rara. A paisagem,  cheia de morros e de um verde a se perder de vista , era bonita, todavia tinha um quê de sufocante , que ela não conseguia compreender.

Era véspera do dia de Finados, este ano seria particularmente mais duro para Maurício. Órfão de mãe desde criança, há alguns meses perdera o pai, abatido por uma descarga elétrica provinda de um raio. Não demorou muito para o tema “visita aos cemitérios” vir à tona quando ele e os parentes proseavam à sesta, reiterando os trajetos para essas visitas, o horário e a lotação dos carros que iriam, vez que todos os cemitérios ficavam distantes da viela. Lara , uma menina esperta e  curiosa , filha do cunhado de Selena, logo indagou:

       -Tia, a senhora vai amanhã acender as velas?

 Selena assentiu balançando positivamente a cabeça. Contudo, desconhecia  que para aquela região,  o ato de prestar homenagem aos seus entes queridos tivesse um aspecto tão singular: as visitas aos campos santos eram feitas,  por todos, entre meia noite do primeiro de novembro às primeiras horas do dia de finados , ainda quando a noite se avizinhava, contrastando com o que era costume em sua região de origem. Este acontecimento se revestia de outra singularidade: a imensa quantidade de velas que cada pessoa levava às covas, algo como dezenas de caixas de vela, além do itinerário por todos os cemitérios no entorno.

       Assim, a tarde se adiantava, se não fosse pela sensação de sufocamento trazida pela  chuva torrencial que caía , talvez  a impressão causada pela natureza ao redor fosse mais suavizada. Selena gostava do barulho das gotas de chuva, mas lá fora imperava um tempestade impertinente que fazia o farfalhar das folhas das carnaúbas causar espanto e apreensão.

       Quando a lua cheia anunciou a noite, nem mais um resquício do temporal. O reflexo do luar reverberando na mesma palmeira que amendrontara Selena à tarde, agora lhe trazia um misto de deslumbramento e beleza. Ela era extremamente apaixonada pela lua, não à toa que etimologicamente seu próprio nome guardava esse significado. Venerava  Jaci, como, talvez,  os antigos indígenas daquela região reverenciavam e denominavam a lua. Ficou acertado  que  ela e Maurício iriam sós às visitas aos finados, já que os demais tinham por pretensão roteiros distintos dos deles.

Alta madrugada e ambos já estavam despertos.  Fizeram o asseio matinal, vestiram-se  e  adentraram ao veículo. Lá fora tudo turvo. Nuvens embaçavam o resquício do brilho da lua, uma ou outra estrela teimosamente piscava no alto do céu. As carnaúbas balançavam num bailado ritmado. Selena e Maurício ganharam a estrada.

       Embora os primeiros cemitérios do entorno fossem o da Vermelha e o do São Francisco, como assim eram chamados, em razão de localizarem-se nos lugares de mesmos nomes,  resolveram que seguiriam , primeiramente,  ao Cemitério do Amucambado, onde repousavam os pais de Maurício. Retornariam, então, pelos do São Francisco e da Vermelha,  pois haviam nestes,  também, covas de parentes e de amigos do esposo de Selena.

       As casinhas da Extrema ficaram para trás. Passaram por sobre uma ponte precária de madeira em um riacho , agora quase seco, o caminho deserto, de vez em quando, era cortado por uma raposa ou um guaxinim que cruzavam de um lado para outro. De resto, tudo soturno. Mais adiante, próxima a um casebre rústico,  uma mulher acenou com a mão, pedindo carona. Maurício nem titubeou, parou a camionete e assentiu para que ela entrasse. 

       A senhora tinha feições serenas e um aroma de lavanda. Fixou os olhos em Selena por breves e furtivos instantes e falou a Maurício: 

       -Você é o caçula da Comadre Angélica e Compadre Vitório?

-  Sou sim. Faz tempo que moro na capital. A senhora como se chama? – interpelou Maurício.

-  Rita... Rita de Pedro Bandeira, da localidade Melancias.- respondeu baixando o tom de voz e sem encarar os olhos de Maurício que a olhava pelo retrovisor.

-  Ah! Não me recordo muito da senhora, mas conheço o lugar... Nós vamos para o cemitério do Amucambado primeiro, a senhora deseja ir?

-  Não! Eu preciso ir ao da Vermelha.

       Maurício parou o carro para que a muher descesse, já que o cemitério estava à frente, era em torno de quatro horas da manhã e, à distancia, via-se o fogaréu feito pela imensa quantidade de velas, havia pouca gente, pois muitos já tinham passado por lá. A senhora desceu e tudo que Selena pode observar foi que o cheiro de lavanda havia impregnado de tal forma, que mesmo com os vidros abertos , não se esvaía. Lá longe , uma coruja cantou no tronco do jacurutu. No céu, as nuvens cobriram totalmente a lua. Seguiram.

       Sobre uma colina íngreme e verdejante, estava o campo santo do Amucambado. Era um cemitério pequeno, na verdade,  poucos túmulos , alguns apenas demarcados por toscas cruzes ou inscrições já quase desvanecidas. Ao centro, um flaboyant totalmente ressequido parecia conferir à paisagem um aspecto de abandono e esquecimento. Mais uma vez, Selena observou o aglomerado de velas que cintilavam e clareavam o restinho da escuridão da madrugada. Lá dentro, poucas pessoas, todas tinham laços sanguíneos com o marido de Selena, conversavam frivolidades, como que confirmando àquela ocasião um momento ímpar de um congraçamento estranho , mas oportuno. Ao vislumbrar Maurício, Erasmo, um primo dele, se aproximou e exclamou:

-  Olha, se não é o primo, filho do tio Vitório! Há quanto tempo... Achei que não viesse...

       Maurício, como de praxe, respondeu com amabilidade: 

-  Imagina , primo Erasmo!  Demorei um pouquinho a chegar aqui  porque dei carona a uma senhora...

 Curiosa era uma palavra propícia para caracterizar boa parte do povo daquela região, por isso Erasmo indagou:

-  E a quem o primo deu carona, num lugar tão ermo como este nosso? Aqui até as almas têm medo de pedir carona.-completou num tom jocoso.

       Ao que Maurício retrucou:

-  Ah! Antes um pouquinho do Cemitério da Vermeha , dei carona para uma senhora de nome Rita... Rita de Pedro Bandeira das Melancias , como ela me falou. Não me lembrava de quem se tratava, a memória já anda a me pregar peças, e mal entrei na casa dos quarenta- completou Maurício sorrindo.

       A expressão de Erasmo, que empalideceu e tremeu as mãos,  deu a tônica do tamanho terror que o assolava. Mal conseguia balbuciar e, gaguejando expressou:

 -Ma..ma..mas , primo,  Ri... Rita de Pedro Bandeira fez a passagem já tem mais de três meses... Eu mesmo ajudei no enterro dela lá no cemitério da Vermelha. Foi cascavel. Nem deu tempo de correr para Luzilândia para o doutor...

       Maurício e Selena se entreolharam e apertaram as mãos numa total  cumplicidade. De súbito, sem muito entender Selena lembrou dos versos do Garcia Márquez, que havia lido há poucos dias e  que,  agora,  vieram aos seus pensamentos: “...E ambos permaneceram flutuando num universo vazio onde a única realidade diária  e  eterna era o amor.”  

Mais uma vez, ao longe, ressoou o canto da coruja. Um vento frio teimava em apagar as velas sobre as covas. Tudo era silêncio... 

EPISÓDIO 1  (03 DE NOVEMBRO DE 1992) 

(Desafio dos Escritores)

Por: Joaquim Neto da Silva (Kineto)

Bati pestanas, respirei areias finas e grudentas.

A salivação quase nula!

Não sabia da minha própria existência, também, quase nula.

No átimo do instante, recriou-me  análogas semelhanças das últimas lembranças vividas e sob custódia de um possível, suposto "parceiro" meu, naquele entardecer de gélidos suores e odores Etílicos, me fez entender que eu realmente estava vivo.

Comecei mentalmente a me culpar como era de praxes todas as vezes que caia novamente nas garras do álcool, mas, de fato, nem sabia quem eu era, ali, caído, parado no tempo... no chão.

Instintivamente comecei a recriar momentos e ainda que meio inerte tive uma ligeira impressão de estar num lugar da terra mesmo, e como estava deitado de frente pra o chão, pude ver paredes rente ao meu olho que estava rente ao chão, sentia também algo pesar sobre mim, não tanto, mas algo semelhante a um meio braço, senti medo, mas, eu sempre sentia medo nesses meus acordares de ressaca.

Por eu está vivo e recobrando a minha falsa lucidez, por assim dizer, tinha que me recompor e enfrentar o novo acordar, pra pelo menos eu saber onde estava dessa vez,( era de costume eu acordar em outra cidade, algumas das vezes nem sabia que cidade era) enquanto escutava gemidos fúnebres e cantos noturnos assombrados.

Minha íntima intuição  me matava ao passo que esses alaridos entravam por meus ouvidos como procissões nefastas e no compasso da  arritmias do meu coração, que por minutos chegou a se despedir de mim mesmo, o meu alcoolismo era muito elevado e de grandes compulsões.

      Num maior esforço ergui um pouco minha cabeça e pude ver uma lápide esbranquiçada com epitáfio do Major Antônio Francisco Rodrigues, nascido em 13 de julho de 1863 e casado com Maria Izabel Rodrigues Rocha em 30 de setembro de 1884 e falecido a 20 de maio de 1912.

Eu não queria acreditar naquilo, mas sobre o meu ombro estava dois  úmeros com restos de escápulas e  plexos braquiais envolto ao meu pescoço, e em cima de uma catacumba um crânio olhando bem no fundo dos meus olhos, como quem dizia:você também está morto.

Imagino que o meu instinto de sobreviver ultrapassou o meu medo, eu levantei e tomei nota visual daquele cemitério onde eu acordei, mais ou menos as quatro e trinta da manhã, tudo clareando e eu ainda meio tonto procurando uma saída.

 Achei que estava no inferno, ou que tinha voltado no tempo...

Numa rápida olhada pude ver que eram paredes baixas e tinha um outro compartimento, no qual vi um cancelão de ferro um pouco mais alto( porta) com um almento acentuado na parede interna, o que seria a porta de saída, mas, pra conseguir chegar até lá, eu tinha que atravessar algumas catacumbas em total degradação de escombros, todas abertas e misturadas  com ossos humanos e pedras soltas, e pedaços de madeiras de caixões.

 Nesse movimento entre o medo e os sons misturados a um “agorento” canto de um urutau ( mãe da lua) eu rebusquei a minha capacidade de percepção visual; vi o relevo  na parede e o “cancelão” de entrada do cemitério em que eu estava, ali eu não mais imaginei nada, sai rápido e de fora bem em frente ao portão entreaberto, não sei o que deu em mim, acho que pra me posicionar no mundo: o que eu era, onde eu estava, ou o que era aquilo...

Olhei  um pouco acima do portão e havia em alto relevo datado 1900.

Era tão estranho para mim!

Nunca tinha ido lá, não lembrava como cheguei lá e me achei louco e perdido no inferno, nesse momento comecei a apressar o passo, na medida que eu ia me distanciando, os sons iam perdendo as alturas dos decibéis, mas, o agouro da mãe da lua ainda soava alto, entretanto eu tinha que correr para  ver onde eu iria chegar.

      De repente cheguei num rio de areias brancas, cacimbas e relvas, tomei o rumo do nascente e já correndo pela claridade, pude avistar uma torre e lutei contra o esgotamento físico e mental, naquele momento pensei, se é o céu, é pra lá que eu vou,  então corri cada vez mais veloz e chegando mais perto imaginei feliz!  onde eu estava era o inferno e aquela torre é o céu...

Pude contemplar os crepúsculos roseos da aurora que se formavam no horizonte bem pra lá da Igreja com uma pequena cruz em cima da torre, cruz

Que me trazia paz...

De forma que eu fui me aproximando da cidade, percebi que eu era eu mesmo, o medo foi passando e eu pude me entender comigo; que eu tinha bebido demasiadamente, entrei e estado de apagamento e nunca tinha visitado o ' (cemitério velho) como era conhecido,  devo ter me dispersado do companheiro que foi comigo,  o povo que tinha ido visitar os mortos se me chamaram pra voltar ,não sei, só sei que esse acontecido se passou na madrugada do dia 3 de novembro de 1992.

Eu, pela primeira vez, pude sentir o desejo de parar com as bebidas, como de fato, procurei tratamento( inclusive psiquiátrico)  pois eu já acreditava ser louco, as pessoas me chamavam como louco e eu me sentia louco, porque via coisas irreais, escutava coisas irreais que me envolveram em experiências seriíssimas de dupla, tripla e inúmeras personalidades, das quais eu pude enfim, estudá-las por um olhar mais sério.

Eu vivia praticamente em guerras comigo mesmo.

 

 

JOAQUIM NETO DA SILVA (KINETO)


 "EU VEJO GENTE MORTA"

(Desafio dos Escritores)

Por: Iara Marina de Sales Santos 

"Eu vejo gente morta"

 

Quando era criança, por volta de cinco ou seis anos, tínhamos o costume – meu pai, irmã e eu – de assistirmos filmes juntos. Não lembro se naquela época já havia Classificação Indicativa dos filmes, mas se é que havia, meu pai ignorava todas, pois o gênero escolhido era sempre terror. Assisti a muito dos grandes clássicos: O Exorcista, Anaconda, Hellraiser, etc. 

Uma dessas escolhas foi O Sexto Sentido, obra que depois de adulta pude novamente assistir e apreciar a narrativa bem construída em cima do suspense de M. Night Shyamalan, mas que naquela época só serviu para amedrontar parte de minha infância.

Pois bem, na manhã seguinte pós Sexto Sentido estava eu a tomar meu banho de cuia no “xaguão” da antiga casa; na lateral da parede que dava para sala/quarto/cozinha (nossa casa era pequenina) havia uma parte de cobogós que facilitava a visão de quem quisesse ali estragar a privacidade dos outros. Estava eu de cuia em cuia quando ouvi uma respiração assustadora por entre os cobogós; pior, bem na hora que passava shampoo, nem abrir de imediato os olhos pude porque precisei logo retirar o excesso ou as lágrimas começariam logo ali. A respiração continuava cada vez ofegante e eu desesperada não acertava nem mais água na minha cabeça de tão trêmula, olhava para um lado e outro e nada via, só sentia que estava sendo observada. Não aguentei o suspense e fui verificar – como fazem os protagonistas em todo filme – de onde vinha aquela respiração dos infernos e onde se encontrava o demônio!

Abri a porta, passei pelo pequeno corredor que dava acesso à sala/quarto/cozinha e quando estava chegando por detrás dos cobodós, de repente...

— TE PEGUEI!!! 

Minha irmã gritou com seu sorriso endiabrado (próprio das irmãs mais velhas)

eu, tadinha, fiquei tão nervosa com o susto que a única coisa que consegui dizer foi:

— armaria!!!! eu pensei que era “eu vejo gente morta com que frequência”

 

Tudo junto! foi o que lembrei de dizer na hora do nervosismo e ela ao ouvir essa pérola caiu no chão de tanto rir e eu caí ao seu lado, mas de tanto chorar.

 

Interessante pensar que filmes e histórias de terror sempre podem contar com o auxílio de parentes arteiros. 

 

Quando lembramos dessa história na nossa roda de família e amigos nos divertimos muito ao contar e hoje, passado tantos anos, quando recordo de minha querida casinha, desse e de outros momentos com minha mãe, pai e irmã (especialmente com minha levada irmã) quero cair ao chão novamente

de rir e de chorar

mas de saudade

de muita, muita saudade.


 A FORTUNA DOS QUE NÃO FORAM


(Desafio dos Escritores)

Por: Rômulo Rossy Leal Carvalho

 Quando residia no Apartamento das Rosas, na Avenida Paulista, sempre que descia as escadas – por medo crônico de elevador (claustrofobia) – encontrava-me com Marta. Eu percebia que ela sempre passara uma impressão estranha, mórbida, como quem já houvera de ter vivido muitos anos, mas nunca fui de acreditar em fantasmas – mesmo aquela moça loira, de cabelos cacheados, transluzindo em sua face um semblante empalidecido e um olhar satânico. 

 Pelas manhãs, após algumas leituras dos tempos de escola, me encontrava com Danielle. Ela havia se tornado minha amiga há poucos meses e estava prestes a completar seus quinze anos. Confidenciou-me que seu sonho, para além de dançar a tradicional valsa do baile de debutante, era fazê-la com Danilo, o rapaz dos seus sonhos, dos seus contos de fada. 

 Depois, à tarde, visitava dona Nelita. Lembro-me o quão ela estava feliz pela proximidade da Primeira Comunhão de seu filho, Adolfo. Alberto, seu marido, infelizmente a tratava com imenso desprezo. O único refúgio de Nelita era sua máquina de costura, na qual passava manhã, tarde e noite costurando para tentar amenizar a dor da vida que levava. Conversei muito com ela: – Largue, Alberto, Nelita. Adolfo já não aguenta mais presenciar tantas agressões. Ele vai terminar ficando traumatizado. Ela sempre me respondia que daria “tempo ao tempo”. Não queria que o filho crescesse com pais separados. 

 Mesmo trêmulo diante do que alguns outros amigos me contavam a respeito de Marta, Danielle, Nelita e Alberto, eu nunca fui sagaz o suficiente para vê-los como pessoas ligadas a questões do além-mundo. Eram tão reais. Como também nunca tive medo dos mortos, nem dos vivos, no fim da tarde ia ao Cemitério da Saudade, numa região mais afastada do centro paulista. Lá, era difícil não encontrar seu Laudelino. Ele fôra um florista bastante conhecido na região, mas já havia se aposentado. Amava seu ofício. 

 Quando mais novo, havia feito diversos arranjos de flores, desde ramalhetes para festas como coroas para velórios. Com a idade avançada, vivia mais no cemitério arrumando jarros de defuntos do que em seu velho barraco. Como detinha uma parafernália de ferramentas, pediu a uma das viúvas que cedesse um espaço em um dos túmulos mais vastos que existia no cemitério, e foi por ela atendido. Lá, Laudelino descansava ao meio-dia, para, depois, continuar seus afazeres. 

 Eu conhecia a história desses sujeitos de perto sem desconfiar de possíveis detalhes que estivessem escamoteados. Foi quando, numa certa ocasião, presenciei Marta deixar na porta do apartamento de Rafael um anel com uma pedra frondosa e brilhante. Rafael era a grande paixão da moça, mas ela não fôra por ele correspondida, sendo preterida por Grisélia, uma moça deslumbrante. Rafael, pensando se tratar o anel de um presente surpresa da namorada, logo tratou de pôr o item no dedo. Não demorou muito para que começasse a se sentir mal. Eu, de longe, fui me aproximando, e vi quando Marta, já desesperada, entrou no apartamento de Rafael, aos prantos e vociferando: – Não era para você, Rafael, meu amor! Era para a maldita que roubou você de mim! Por favor, sobreviva! 

– Achou que poderia ser mais esperta que eu, palerma! – surpreendera Grisélia. Acontecia que Marta se tratava de uma bruxa, que, por ser ignorada por Rafael, havia feito um feitiço e lançado no anel para que Grisélia o usasse. O tiro saiu pela culatra e Rafael morreu enfeitiçado. Como se não bastasse, para a surpresa de Marta, Grisélia também era uma bruxa, de aproximadamente trezentos anos, que logo, no mesmo dia, lançou um feitiço mortal contra Marta, que caíra no chão, asfixiada. 

 Eu, pelos poderes do Altíssimo que invoquei naquele momento, fugi apressadamente da mira de Grisélia. Pensei logo em Danielle, minha amiga recente. Afinal, eu não era alvo de Grisélia. Como num passe de mágica, ao não me alcançar, ela simplesmente desapareceu. 

 Contei à Danielle da experiência sobrenatural, e ela, sem rodeios, mudou o semblante. Não compreendi naquele momento o que ela sentiu. Eu já estava trêmulo demais e, diante da reação da minha amiga, fiquei um tanto intrigado. Danielle, que amava flores e sabia que eu tinha um amigo florista, seu Laudelino, me pediu que eu buscasse um ramalhete. Não demoraria para que seu baile de debutante acontecesse. 

 Confesso que não tive coragem de voltar ao Apartamento das Rosas por cerca de um mês. A experiência que lá vivi foi aterrorizadora. Fui para casa de dona Cecília, irmã de dona Nelita. Faltavam três dias para a festa de debutante de Danielle, quando Nelita começava a costurar a roupa da Primeira Comunhão de Adolfo. Ele, sorridente, sempre que me via, me abraçava com muito carinho, e eu temia pelo futuro daquela criança, tendo em conta tudo que acontecia com seus pais. 

 Quando havia iniciado a costura, por volta das oito da noite, Nelita viu que os cachorros latiam de forma mais acentuada. Era Alberto que voltava mais bêbado do que nunca e com a roupa toda rasgada. Havia se envolvido em uma briga terrível. Naquele instante, Nelita e Adolfo tentaram, da maneira que puderam, pôr empecilhos na porta a fim de que ela não fosse invadida por Alberto, que estava insano, possesso. Não houve jeito. Ele, endemoniado, entrou, agressivo e sacou uma faca que trazia como numa bainha. Adolfo, chorando, implorava que o genitor tivesse piedade. Em vão. Por volta das oito e meia, o corpo ensanguentado de Nelita, já jazia no chão da casa. 

 Desnorteado face à cena, Alberto correu desesperado. Eu, que àquela altura da noite, estava na casa de dona Cecília fui com ela até à casa de Nelita e presenciei a cena dolorosa. O que me arrepiou naquele instante foi que a máquina de costura de Nelita continuava a se mover sozinha, num barulho de vai-e-vem. E sobre ela as primeiras costuras da roupa da Primeira Comunhão do filho, Adolfo. 

 Consolei Adolfo, o levei, junto com Cecília, para casa. Em pouco menos de uma semana, Adolfo se mostrava estranho, dizendo estar tendo sonhos constantes com a mãe, mas que não eram pesadelos. Eu, que havia vivido uma experiência sobrenatural há poucos dias no Apartamentos das Rosas, não duvidei de mais nada. Ele me disse que, na noite passada, havia sonhado com a mãe pedindo que ele fosse à casa em que ela havia sido assassinada, pois lá havia um presente para ele e um cartão. Eu tremi, mas não o impedi. 

 Por volta das oito da noite, levei, junto com Cecília, Adolfo até à sua antiga casa. Ele entrou, e imediatamente a máquina de costura começou a balançar-se sem vento nenhum. Junto dela, um embrulho preto e um cartão estavam. Ao abrir o cartão, Adolfo leu: “Eis aí, meu filho, sua roupa, como lhe prometi. Promessa é dívida. Siga os caminhos de Deus. Faça a sua Primeira Comunhão. Um beijo da sua mãe!” E, ao abrir o pacote, a camisa e a calça branca estavam perfeitamente costuradas. Nessa mesma hora, em uma viela da cidade, Alberto caminhava desconcertada e com a fixação na morte da esposa. Ele tremia como um louco, e nem deparou-se quando foi atacado com um objeto na nuca, o que resultou em seu óbito. A ferramenta: um pedaço de uma máquina de costura. 

 Assisti à Primeira Comunhão de Adolfo, emocionado, pois fui um grande amigo de Nelita. E, por outro lado, temeroso em viver mais experiências sobrenaturais. No dia seguinte, pelo menos, eu teria mais um dia feliz: o baile de debutante de Danielle, ao qual eu, congratulado, havia sido chamado. Danielle me dizia que queria as flores que Laudelino arranjava, pois eram as mais belas que conhecia. Eu estranhava, pois uma jovem como ela ir ao Cemitério da Saudade não era praxe entre garotas da sua estirpe. Ela sempre me respondia que respeitava muito os mortos e que eu deveria fazer o mesmo. E eu, em contrapartida, disse que o fazia sempre. 

 Seu Laudelino, por ser meu amigo, não hesitou em arranjar as flores naturais mais perfumadas para Danielle. Lembro-me que ela ensaiou tanto a valsa. Mas percebi nele uma estranheza quando ela se deparou com uma flor verde em meio as vermelhas: – Essa não, pelo amor de Deus! 

 Eu logo supus que se tratava de uma predileção pessoal. Chegado o dia do baile, Danielle estava linda e radiante. Danilo foi o primeiro a chegar. Tiraram várias fotos juntos e dançaram a noite inteira. Passada a meia-noite, Danilo me procurou comunicando-me que Danielle havia ido ao toalete e estava demorando muito a voltar. Telefonei, fui ao local, mas não obtive resposta. Assim, nessa incógnita, amanheceu o dia. Segui para a casa de dona Cecília. Lembrei-me que Danielle havia me fornecido o endereço de sua casa, mas que eu nunca havia tido a oportunidade de visitá-la. 

 Pensei que, para explicar a Danilo e entender o que havia acontecido na noite passada, inclusive o fato da ausência de sua mãe, eu devesse ir à residência. No bairro do endereço, Rua das Flores, toquei a campainha da residência, e uma senhora doce me atendeu. Perguntei por Danielle, e a expressão de dona Celina, a mãe, se empalideceu: – Da minha filha o que restam são lembranças. Ela faleceu justamente no dia anterior à sua festa de quinze anos, seu baile de debutante, em 04 de abril de 2009. 

 Segurei-me para não desmaiar. E mais: – Foi um terrível acidente. Danielle caminhava tranquilamente em frente ao Cemitério da Saudade quando um automóvel, em alta velocidade, de cor verde, a atingiu fatalmente. Agora, havia uma explicação para a não preferência pela cor verde no ramalhete que seu Laudelino havia feito para ela. Danilo, como eu, chocou-se com o ocorrido. Seu Laudelino, também absorto, foi conosco ao túmulo de Danielle e conferimos sua data de nascimento: 05 de abril de 1994, e de morte: 04 de abril de 2009. Danilo, logo, tratou de verificar as fotos e, para sua surpresa, em todas elas não mais aparecia a imagem de Danielle. 

 Todos aqueles acontecimentos pareciam fazer parte de um sonho/pesadelo. Somente seu Laudelino era o amigo com quem eu poderia conversar naqueles idos de 2009. Algumas crianças traquinas, que passavam o dia atrapalhando o trabalho de seu Laudelino, o deixavam irritado. Cheguei a reclamá-las várias vezes. Mas um, em especial, era diferente: Vinicius. Ele fez com que meu temor e minha incredulidade morressem de vez. Passaram-se alguns meses. Um forte temporal recaiu sobre toda a São Paulo, inclusive, sobre o Cemitério da Saudade. Desta vez, a foice fatal chegara à vida de seu Laudelino, que faleceu ali mesmo, num espaço reservado do túmulo gentilmente cedido por uma viúva. 

 No dia seguinte, os mesmos meninos, com suas traquinagens, rumaram com seus maus-feitos. Vinicius, os acompanhando, mas tentando demovê-los de tais atitudes, avistou o portão do túmulo sendo aberto por seu Laudelino. Os moleques, curiosos, foram até o velho e perguntaram: – “Ué, velho, você não tem medo dos mortos? Ao que tiveram a resposta: – “Ué, eu não tinha medo nem quando era vivo, imagina morto!” Assim, apenas Vinicius não correu assustado e me contou o destino do meu amigo, seu Laudelino. Hoje, ao passar pelo Cemitério da Saudade, acendo uma vela para ele, em seu túmulo, assim como para dona Nelita e Danielle, e rezo, incessantemente, para que não veja nunca mais situações similares às de Marta, Grisélia, Rafael e Alberto.