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O lugar da literatura e do cinema na escola

RESUMO: Este esboço tem como objetivo refletir sobre o lugar que a Literatura e o Cinema ocupam na escola. A partir da análise dos documentos oficiais que regem a educação brasileira, e, de como a escola insere essas duas linguagens na práxis pedagógica, como as concebe, como considera a relação dialética que estabelecem entre si e os pontos através dos quais essas artes dialogam, se aproximam, se afastam, se autorreferenciam, se complementam e exercem a função humanizadora. A escola deve se consolidar como instrumento de inclusão social e cultural, por ser um espaço privilegiado para o acesso à arte e para que a sua recepção e a sua dimensão social contribuam para a formação holística de estudantes.

 

Palavras-chave: Literatura. Cinema. Escola. Recepção.


ABSTRACT: This draft aims to reflect on the place that Literature and Cinema occupy at school. Based on the analysis of some official documents that manage the Brazilian education, and how the school inserts these two languages in the pedagogical praxis, how it conceives them, how it considers the dialectical relationship they establish between themselves and the points through which these arts dialogue, approach, depart, self-refer, complement, and exercise the humanizing function. The school must consider itself as an instrument of social and cultural inclusion, since it is a privileged space for the democratization of access to art and so that its reception and its social dimension contribute to the holistic formation of students.

 

Key-words: Literature. Movies. School. Reception. 

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS



Na conjuntura brasileira alguns mecanismos legais tentam garantir um lugar nas escolas brasileiras para as diversas linguagens artísticas. Dentre os quais, podemos citar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB 9394/96), os Referenciais Curriculares Nacionais, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s) e as Orientações Curriculares Nacionais (OCEM), que representam um avanço no tocante aos objetivos da educação básica, estabelecem o direito do educando ao aprimoramento como pessoa humana incluindo a formação ética, estética e a autonomia do pensamento crítico.

Todavia, no tocante à Literatura e ao Cinema, nos documentos citados, a especificidade do texto literário é subestimada e o cinema aparece como sinônimo de entretenimento, embora haja a ressalva de que ambos os discursos são essenciais à formação dos educandos e que o diálogo que estabelecem entre si é produtivo para as duas artes. 

Este cenário nos inquieta e nos impele a pensar sobre o lugar e a abordagem de obras literárias e fílmicas na escola, espaço privilegiado para o contato com a arte e que precisa se consolidar como instrumento de inclusão social e cultural, o que requer uma práxis pedagógica comprometida com o acesso à arte enquanto direito que traz em seu âmago “o que chamamos o bem e o que chamamos o mal, humaniza em sentido profundo porque faz viver.” (CANDIDO, 2004, p. 176).


2. Desenvolvimento


Basin (1991),foi um dos primeiros a defender de forma incisiva o Cinema, enquanto signo híbrido, por sua capacidade de unir literatura, música, artes plásticas, história e memória, preconizando que não havia dano ou prejuízo algum para os textos literários se transpostos para o cinema, pois a literatura suscita imagens e o receptor, no ato da leitura, dialoga incessantemente com outras áreas do conhecimento e com outras artes. Esse entrecruzamento discursivo propicia a ampliação do horizonte que instiga o trabalho com a literatura e o cinema em sala de aula. 

Quanto ao diálogo entre Literatura e Cinema o primeiro grande cineasta a expor preocupações teóricas acerca de sua arte, o russo Sergei Eisenstein, nos propõe que 


Deixemos Dickens e toda a plêiade de antepassados, que remontam inclusive aos gregos e a Shakespeare, lhes lembrarem mais uma vez que ambos, Griffith e nosso cinema, provam que nossas origens não são apenas as de Edison e seus companheiros inventores, mas se baseiam num enorme passado cultural; cada parte deste passado, em seu momento da história mundial, impulsionou a grande arte da cinematografia. Que este passado seja uma reprovação às pessoas inconscientes que trataram com arrogância a literatura, que contribuiu tanto para esta arte aparentemente sem precedentes e é, em primeiro lugar, e no mais importante: a arte de observar – não apenas ver, mas observar – com ambos os significados abarcados pelo termo. (EISENSTEIN, 2002, p. 203). 


Desde 1915, quando o cineasta estadunidense David Wark Griffith dirigiu o filme O Nascimento de uma Nação, a junção entre Literatura e Cinema começa a se consolidar com a contribuição de diversas produções, dentre elas o filme Pollyana (1919), baseado na obra homônima de Eleanor H. Porter e Nosferatu (1922), baseado no livro Drácula, de Bram Stoker.

Assis Brasil (1967), fez um dos estudos pioneiros, no Brasil, estudando àquela época Cinema e Literatura. Para ele, mesmo com linguagens distintas e conservando características próprias, o cinema é a arte que mais se aproxima da literatura.  As duas linguagens têm em comum o fato de serem essencialmente narrativas.

Movido pelo entendimento de que é preciso impulsionar a presença de arte na escola para possibilitar uma formação holística dos estudantes e propiciar que se tornem produtores e usuários de bens e serviços culturais na vida adulta, surgem medidas como a Lei 7.507/10 que torna obrigatória a exibição de filmes e audiovisuais de produção nacional nas escolas da educação básica por, no mínimo, duas horas mensais como componente curricular complementar integrado ao Projeto Político Pedagógico da Escola (PPPE). 

No entanto, passados dez anos da promulgação da lei, é possível constatar que a mudança do cenário educacional nas questões concernentes à Literatura e ao Cinema também não ocorreu/ ocorrerá por decreto, pois, nenhuma política de formação de leitores e de plateia logrará êxito sem formação docente adequada e sem a presença das obras no cotidiano escolar. 

Candido (2004) pontua que nas sociedades desiguais a falta de democratização do acesso à cultura estabelece abismos entre os níveis culturais e postula que “[...] a fruição da arte e da literatura em todas as modalidades e em todos os níveis é um direito inalienável.” (CANDIDO, 2004, p. 191).

Compreendemos que, enquanto direito, o acesso ao objeto estético é essencial devido seu caráter libertador e dialógico, capaz de expandir as experiências e desconstruir estigmas, como ratifica Compagnon (2003, p. 37) ao referir-se à literatura: “A literatura confirma o consenso, mas produz também a dissensão, o novo, a ruptura.”   O autor enfatiza, porém, que a literatura não é o único meio de representar a experiência humana, visto que o cinema e outras mídias também são capazes de redimensionar a experiência humana e pondera que as narrações, sejam romanescas ou fílmicas, trazem em seu bojo a dimensão humana. 

À luz do que nos ensina Candido (1995), entendemos humanização como


[...] o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. (CANDIDO, 1995, p. 249)


Literatura e Cinema estabelecem um diálogo humanizador com o receptor (leitor/espectador) por meio de narrativas, o que nos remete ao mito de Sherazade (exemplo no qual a narrativa, a narradora e a recepção estão interligadas). 

  Quanto à complexidade de conceituação ante a essência da Literatura e do Cinema, há um ponto de interseção aos mais diversos posicionamentos: a possibilidade de identificação do texto com o leitor/espectador e, para este, a ampliação de seus horizontes de expectativas, através do processo de análise crítica fundamentada em sua experiência de vida.  

 Stam (2000) assevera que é possível estabelecer um paralelo entre o leitor e o espectador, pois a ambos cabe preencher, numa perspectiva dialógica, as lacunas do texto literário/fílmico sempre permeado de historicidade. Nesse ponto, encontramos um equívoco recorrente nas escolas nas quais estão presentes obras literárias e fílmicas: propõe-se aos alunos que encontrem os significados ao invés da proposição para que protagonizem a construção destes.

Para que a escola e o professor consigam desenvolver interesses de leitura que perdurem durante a vida inteira faz-se necessário que, no mínimo, se apropriem dos acervos disponíveis nas escolas, como: os livros que compõem o Programa Nacional da Biblioteca Escolar (PNBE) e os filmes da TV Escola e da Programadora Brasil e, que sejam leitores/espectadores capazes de discutir as conexões e estreitar as relações entre literatura, cinema e escola, repensar as concepções norteadoras da prática pedagógica e reavaliar a própria noção de Literatura e Cinema apresentada às crianças e aos adolescentes a partir das atividades desenvolvidas em sala de aula. 

A escola deve conceber a Literatura e o Cinema pelo viés histórico, cultural e social que reflete os valores cultivados em cada momento histórico, que por sua vez interferem na leitura e balizam a atribuição de significados. Segundo Magnani (1989, p. 29) “é preciso repensar a dicotomia entre prazer e saber, além de pensar essas relações do ponto de vista de seu funcionamento sócio-histórico.

Nessa perspectiva o diálogo entre Literatura e Cinema se configura como uma necessidade cultural, consoante Hutcheon,


As histórias são, de fato, recontadas de diferentes maneiras, através de novos materiais e em diversos espaços culturais; assim como os genes, elas se adaptam aos novos meios em virtude da mutação – por meio de suas “crias” ou adaptações. E as mais aptas fazem mais do que sobreviver; elas florescem. (HUTCHEON, 2013, p. 59)


Necessidade cultural que, quando satisfeita, gera uma relação dialógica através da qual florescem as adaptações (para além da questão da fidelidade) e que oportunizam que Cinema e Literatura compartilhem a mesma função: transmitir imagens através de palavras, naturalmente com linguagens peculiares. 

Ao se tratar da linguagem do Cinema, Martin (2013) esclarece que: 


[...] o que distingue o cinema de todos os outros meios de expressão culturais é o poder excepcional que lhe advém do fato de a sua linguagem funcionar a partir da reprodução fotográfica da realidade. Com efeito, com ele, são os próprios seres e as próprias coisas que aparecem, dirigem-se aos sentidos e falam a imaginação: a uma primeira abordagem parece que qualquer representação (o significante) coincide de forma exata e unívoca com a informação conceptual que veicula (O significado). (MARTIN, 2013. p. 24) 


Concernente à linguagem da Literatura compreendemos que o conceito de literatura é fruto de um processo social e histórico e a leitura deve ser concebida como ação dinâmica, criativa, significativa e como processo de construção de sentidos e interação entre autor e leitor mediados pelo texto. Nesse viés, Lima contribui quando afirma que: “Como a palavra, como uma frase, como uma carta, assim também a obra literária não é escrita no vazio, nem dirigida à posteridade; é escrita sim para um destinatário concreto.” (LIMA, 1979, p. 37)

Partindo deste pressuposto encontramos uma mudança de foco nos estudos literários e fílmicos com a contribuição da Estética da Recepção a partir da década de 60 do século XX.  Considerando o contexto no qual foram lançados os questionamentos que se configurariam como o manifesto da Estética da Recepção, na Europa os ventos sopravam em direção a uma mudança de paradigmas nos aspectos políticos, culturais e educacionais. 

No tocante ao ensino da história da literatura a contestação se fundamenta no fato de que o mesmo estava reduzido às perspectivas das teorias marxista (que a partir de uma visão sociológica salientava a relação entre literatura e realidade social) e formalista (que reduzia o estudo do texto às estratégias verbais consideradas responsáveis pela literariedade) que relegavam o leitor a segundo plano e subestimavam sua bagagem cultural e simbólica que são de suma importância para a recepção. 

Embora contestasse essas vertentes teóricas Jauss (1994) se apropriou das contribuições de ambas as teorias para estabelecer uma diretriz para o estudo da obra de arte com ênfase na relação entre o leitor/espectador e a obra, numa perspectiva dialógica essencial para que a experiência estética seja prazerosa e proporcione conhecimento e ampliação dos horizontes de leituras. 

No campo da cinematografia, sob influência das teorias literárias, as amarras estruturalistas também começam a ser quebradas e o deslocamento do foco do texto para o receptor ganha força a partir da década de 70, quando o espectador deixa de ser visto apenas como um receptor passivo e um mero dado estatístico, momento no qual os estudos da sétima arte configuram-se como Teoria Fílmica a partir de pesquisas com abordagens distintas, sobre as quais Stam (2013) faz alusão ao ratificar que [...] muitos dos “momentos” teóricos – feminismo, psicanálise, pós-estruturalismo, teoria pós-colonial – são exasperadamente entrelaçados e convergentes; ordená-los de uma forma linear implica uma sucessão temporal que não existe. (STAM, 2013, p. 17). 

Nascimento (2008) enfoca que a Literatura e o Cinema oferecem a oportunidade de construir um espaço de liberdade e de transformação, numa abordagem que concebe as duas artes como de suma importância, sem a necessidade de hierarquizá-las e destaca que,


El cine, al crear nuevos linguajes, al ofrecernos una forma diferente de contar las coersas, como expresión artística está, así como el texto literário, entre los bienes esenciales de la vida[...] (NASCIMENTO, 2008, p. 137)


Assertiva que nos remete ao conceito de bem incompressível apresentado por Cândido (2004), baseado nas proposições do filósofo francês Louis-Joseph Lebret, sobre dois tipos de bens: bem compressível e bem incompressível, estes dizem respeito aos bens que não podem ser negados a ninguém, e aqueles concernentes aos bens que podem ser dispensados. O crítico considera que são bens incompressíveis “[...] não apenas aqueles que asseguram a sobrevivência física em níveis decentes, mas os que garantem a integridade espiritual.” (CANDIDO, 2004, p. 174). 

Dentre esses bens Candido (2004) cita a alimentação, a moradia, o vestuário, a instrução, a saúde, a liberdade individual, o amparo da justiça pública, a resistência à opressão e também o direito à crença, à opinião, ao lazer, à arte e à literatura.

O nosso acreditar na importância da relação dialética a ser estabelecida entre autor/diretor, texto e leitor – mediada pela leitura e os seus desdobramentos – parte do pressuposto defendido por Silva (2005), segundo o qual a educação brasileira precisa de uma injeção de filosofia e de política para rompermos com a alienação, com a passividade e com a massificação a partir da ampliação dos horizontes de expectativas garantindo que cada criança e cada jovem possa desenvolver-se de forma holística com “criatividade, consciência da linguagem e consciência crítica” (COELHO, 2000, p. 130).

No tocante à função social da arte, compreendemos que o conhecimento de mundo é de suma importância para que a escola fomente ações que proporcionem a experiência estética e conduzam à formação para  exercício da cidadania, pois no contexto no qual estamos inseridos muitos obstáculos permeiam o caminho, como os citados por  Azevedo (2003):


Há problemas conjunturais tais como a existência de numerosos pais analfabetos ou semi-analfabetos, famílias dependendo do trabalho infantil para poder sobreviver, pessoas morando em casas, por vezes de um só cômodo, sem iluminação adequada para leitura. Há o preço do livro, alto para os padrões nacionais de renda, e a quase inexistência fora dos grandes centros, de livrarias e bibliotecas. Há o contato de crianças com adultos: pais e professores que apesar de alfabetizados não são leitores. (AZEVEDO, 2003, p. 01)



Há que se considerar que no contexto brasileiro a ausência/escassez de equipamentos de cultura desafia a escola a se tornar um espaço de cultura e assegurar que a Literatura e o Cinema cumpram papel fundamental na transformação da sociedade, uma vez que, permitem ao ser humano compreender a si mesmo e relacionar-se melhor na realidade na qual está inserido. 

De acordo com Aguiar (1998, p. 29), nessa relação o leitor/ espectador deve perceber que "seu horizonte individual, moldado à luz da sociedade de seu tempo, mede-se com o horizonte da obra e que, desse encontro, lhe advém maior conhecimento do mundo e de si próprio.”


3. CONSIDERAÇÕES FINAIS


Neste esboço apresentamos algumas reflexões sobre a presença da Literatura e do Cinema no espaço escolar, considerando alguns estudos teóricos e a nossa vivência docente nas escolas que nos consente reiterar: a Literatura ocupa um espaço secundário na escola e, via de regra, os textos literários são utilizados como pretexto para atividades gramaticais. Quanto ao Cinema, a situação é ainda mais aviltante por, nas raras aparições na escola, ser utilizado para ocupar aulas vagas ou servir de mero enfeite, ou entretenimento, durante algum evento. 

Cabe à escola, assumir uma postura dialética, compreender as nuances das diversas culturas que a compõe e instigar os alunos a assumir o protagonismo num processo de abertura de novos espaços através da viagem pela imaginação, de construção da independência intelectual, de formação de autonomia e, sobretudo, de educação libertária que a garantia do direito ao acesso à literatura e ao cinema proporcionará se ambos forem inseridos de direito e de fato nos currículos escolares com o devido cuidado para o uso pedagógico não conspurcar o valor estético.

Nosso intuito, ante a abrangência do tema, é refletir sobre questões concernentes à Literatura e ao Cinema para que ocupem, de fato e de direito, seu lugar na escola, e que outras e melhores considerações sobre a questão sejam suscitadas.


REFERÊNCIAS


AGUIAR, Vera Teixeira de; BORDINI, Maria da Glória. Literatura: a formação do leitor: alternativas metodológicas. 2. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1998.

BRASIL, Assis. Cinema e Literatura. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967. 

CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira: Momentos Decisivos. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 1995.

CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: Vários escritos. 4. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2004. p. 174.

COELHO, Nelly Novaes. Literatura Infantil: Teoria, Análise, Didática. São Paulo: Moderna, 2000.

EISENSTEIN, Sergei. A forma do filme. 2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. 

HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptação. Florianópolis: Editora da UFSC, 2013.

JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994.

LIMA, Luiz Costa (coord). A literatura e o leitor: textos da estética da recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

MAGNANI, M. Leitura, literatura e escola: sobre a formação do gosto. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. São Paulo: Brasiliense, 2013.

SILVA, Ezequiel Theodoro da. Leitura na escola e na biblioteca. 10ª.ed. São Paulo: Papirus, 2005.

STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema.  São Paulo: Papirus, 2003.



Como renascem os poetas

Tentei me policiar quanto ao arrefecimento que a idade me trouxe. Sempre pensei que o otimismo venceria, culminaria em um infrene refrigério, amalgamado a um bálsamo que o tempo me presentearia. A vida seria muito mais bela se a realidade não fosse uma imane contradição. Na verdade, somos chamados a ser agentes sociais, a designar importância a valores coadunados ao humanismo esparso no altruísmo, na longanimidade, na ética e na dignidade.

A minha religiosidade me educou de forma profusa e sólida. A graduação em História, porém, me desfraldou os olhos a percepções meticulosas, minuciosas, perante realidades que insistiam em me importunar à busca de uma ação, de uma reação, melhor dizendo. Amofinou-me à beça. Percebi que as palavras, jogadas ao vento, mudavam o curso da natureza coletiva, que ora me arremedava ora, por mim, era arremedada. Um arrimo na fé me exortou a prosseguir mesmo diante de enésimos dissabores. Deixei para trás a autoajuda e fui a minha própria. 

Em duas doses de lágrimas, ressurgi dos vocábulos vazios, desenxabidos, completamente grotescos. Abandonei uma visão reducionista, vexatória, que nunca me ajudou em nada, a não ser a majorar minha própria frivolidade. Ressuscitei sem ter fenecido. Restaurei ideias, compilei sonhos, esbocei textos, desenhei estórias e histórias. A poesia não era maior que eu. Nunca fui. Nem eu, na minha incipiência, pude ser maior que ela. Cada vivência acumulada me mostrou que nos construímos a cada manhã, nos reconstruímos à tarde e galgamos mais um passo à noite. No dia seguinte, tudo recomeça, mas com as lembranças da chacina leviana ou da benfeitoria imaculada do dia anterior. 

Talvez, o meu texto, o que mais me descreva, seja Como morrem os poetas, um ensaio sobre um escritor falido que recebe a tarefa de assinar uma última produção antes de assinar sua sentença de morte. Nunca pensei a morte natural como uma incorrupta irrupção de um fim, nem como absoluta decadência. Escrevi uma monografia sobre as amplas dimensões com que a tratamos, e me senti vivo para tecer reflexões sobre a última viagem. Muitos autores me ajudaram, mas sei que eu, modéstia à parte, pude contribuir à minha maneira.

Hoje, revisito reflexões rutilantes de Ariano Suassuna, que também considerava o otimismo irracional uma estultícia. Porém, não me alinho, bruscamente, a Augusto Anjos, por exemplo – o que seria um descompasso pelos regalos que me circundam. Em um saldo positivo, me compraz a postura otimista das pessoas verdadeiras, autênticas no que acreditam; nas irreais que posso criar, por meio da arte, e trabalhar seus modos, crenças e apanágios, mergulhando no universo paralelo em que me descubro autor, produtor, diretor, mas, sobretudo, um ser humano. Os poetas e eu estamos vivos, não exânimes. Estaremos, mais ainda, se tivermos coragem de plasmar mais rabiscos, laconizando a vida por ingerência das letras. 


Rômulo Rossy Leal Carvalho é formando em Licenciatura Plena em História (UFPI/CSHNB), Auxiliar Administrativo pelo Instituto Padre Reus (Santa Cruz do Sul-RS) e escritor. Autor dos livros Além do Mais! (2015) e Sinais de Vida: reflexões de um leigo (2019). Integrou a coletânea nacional Poesia Agora – antologia poética (2018) e coorganizou o livro História em Crônicas (2019).



O rio Riachão está agonizando: como salvá-lo?

Desde as duas últimas décadas, numa observação apenas superficial, tenho constatado durante os meus passeios ao nosso querido Piauí, que o outrora tão belo e generoso rio Riachão agora permanece na UTI, com os seus dias contados.

Um dos principais afluentes do rio Guaribas, pela sua margem esquerda, vem aquele se juntar a este, na localidade de Barras, já próximo à cidade de Bocaina, sede da maior barragem da região, abrangendo em seu percurso dezoito municípios piauienses.  

Quando criança, nas décadas de 1950/1960 fui testemunha da sua utilidade quer no abastecimento de água para o consumo humano ou para os animais, ou na produção de alimentos, tais como cebola, alho, batata doce, abóbora e melancia e os cheirosos melões, além de outras frutas e hortigranjeiros como o tomate, o coentro, o pimentão, a alface, a cebolinha, o cheiro verde, etc. Estes produtos eram plantados em extensas e verdes vazantes, sem contar da abundância de peixes, especialmente as espécies de traíra, mandi, curimatã, tilápia e os populares corrós.

Durante o inverno, a partir do mês de dezembro, até maio, às vezes junho, o rio permanecia caudaloso, levando a alegria e o entretenimento para a população local. Nas chuvas iniciais o pessoal se animava e corria para ver a “chegada das primeiras enchentes”. Era um espetáculo impressionante e ao mesmo tempo assustador. As águas barrentas denunciavam a origem das suas cabeceiras, normalmente os afluentes principais estavam no município de Pio IX e São Julião, onde se localiza uma barragem que nos deixava atônitos com medo de uma catástrofe, caso ela se arrebentasse.

Nós crianças corríamos para ver a chegada das primeiras águas. Com elas vinham algumas esperanças e desilusões. Meu pai, por exemplo, foi embora com outros conterrâneos para Brasília, em conseqüência da histórica enchente do início de 1960 que deixou muitos desabrigados e com prejuízos.         

Muitas vezes a violência e o volume das águas eram tão grandes e inesperadas que cercas inteiras, plantações e animais se perdiam junto com as “grandes cheias”. Animais mortos, árvores, remansos e redemoinhos se locomoviam num espetáculo indescritível. Navegavam lentamente frente aos nossos olhos. Os adultos não deixavam as crianças se aproximarem do rio. E assim, se passava alguns dias até que pudéssemos nadar às suas margens ou pequenos poços. Os profissionais de natação atravessavam seu leito, num vai-e-vem de acrobacias e coragem. O povo ficava admirando os audaciosos nadadores. Alguns até ganhavam dinheiro atravessando pessoas.

No decorrer do período de verão as águas baixavam e apareciam os ”bancos de areia” e poços, onde a população ribeirinha plantava e, meses depois, colhia a produção agrícola de subsistência. Em ocasiões até comercializava a safra excedente de alho e cebola. A plantação se realizava em canteiros previamente preparados nas vazantes existentes na bacia do rio. Ali próximo vários produtores construíam as suas “latadas”, residências rústicas e provisórias onde se acampavam durante o período de plantação.  

Na minha infância participei da formação destas vazantes no rio Riachão. Tenho como lembrança a raspagem (colheita) e o transporte de folhas secas (paul), colhidas debaixo das árvores, hábitat de cobras, lagartos, aranhas e escorpiões. O trabalho era penoso e de alto risco. Às vezes estes animais, alguns peçonhentos, saiam correndo nos canteiros, em busca de abrigo. Esta espécie de adubo orgânico, juntamente com outros fertilizantes naturais, servia para o preparo dos canteiros onde se iniciava a plantação da lavoura aquática, distribuída em divisões simétricas em forma de quadriláteros. Entre um espaço e outro dos canteiros, corria, numa espécie de canal, um pouco de água que seria utilizada duas vezes por dia nas plantações. E aí, se realizava mais um lindo espetáculo. Com as cuias as lavradoras (profissionais do ramo) aguavam os canteiros, num movimento contínuo para cima e para baixo, com uma técnica apurada, jogando-lhes água que, em contraste com os raios solares, ofereciam um show muito bonito.     

  Este cenário de extrema beleza, nostalgia e lirismo praticamente já não existe. O rio Riachão deixou de ser útil nas plantações de veraneios e suas águas sujas e poluídas, agora correntes só por poucos meses, não são tão utilizadas. Também já não existem os famosos poços que forneciam peixe para alimentar o caiçara. Quanto ao lazer que usufruíamos nos banhando e nadando nas suas águas, já nem se fala mais. As belas noites de luar às suas margens, nas areias finas e brancas, onde se deleitavam os amantes, ora namorando, ora fazendo serenatas, contando histórias ou pescando ficaram no esquecimento. Restam-nos as lembranças de um passado que se foi num período tão feliz e acolhedor vivenciado pela população ribeirinha.

Em pesquisa realizada pelo autor deste artigo, nada foi encontrado sobre o rio Riachão. Parece mesmo que ele foi ignorado e esquecido por boa parte do nosso povo. 

A título de curiosidade, encontrei dois trabalhos acadêmicos, intitulados: “Indicadores de bem-estar social nos municípios da bacia hidrográfica do rio Guaribas – Piauí”, de autoria de João Soares da Silva Filho e Jaíra Maria Alcobaça Gomes e “Usos múltiplos da água na bacia hidrográfica do rio Guaribas (Estado do Piauí)”, de Marcos Airton de Sousa Freitas que em momento algum cita o seu afluente rio Riachão. Sendo assim, nenhuma solução prática é ali apresentada em benefício do nosso rio.

Embora leigo no assunto, posso constatar uma série de providências malignas praticadas pelo homem que contribuíram bastante para o triste estado de agonia em que se encontra o rio Riachão. Percebe-se que já não existem matas acompanhando o seu leito e suas ribanceiras; os mananciais ou nascentes desapareceram; extraíram, desordenadamente, areias e barros do seu interior, utilizados em construção de residências; construíram-se barragens e açudes próximos ao seu curso, dando fim à sua antiga perenidade; constata-se uma grande ocupação de animais e lixos de toda espécie no seu leito; é visível a existência de métodos ultrapassados na exploração da terra, como por exemplo, queimadas e desertificação das áreas antes cultiváveis; observa-se a utilização de processo erosivo, dentre outros. Todas essas atividades tão devastadoras ao meio ambiente estão contribuindo para o desaparecimento do rio Riachão.   

Conclamo a população dos municípios de Monsenhor Hipólito, Francisco Santos e Santo Antônio de Lisboa para, numa só corrente, formada pela comunidade e seus mandatários, iniciar um movimento para salvar o que resta do rio Riachão. O primeiro passo a ser dado é a conscientização de todos da gravidade do problema, exigindo do Poder Público medidas saneadoras, tomadas através de políticas governamentais para que nosso rio não seja lembrado apenas pelos mais velhos ou em antigas fotografias já descoloridas pelo tempo. Cada cidadão deverá fiscalizar a prática degradante de atividades nocivas do homem, em busca do lucro fácil, quando retiram do seu solo substâncias nutrientes e desmata suas margens; coibir o assoreamento indiscriminado do seu leito; criar mecanismos jurídicos proibindo e punindo os infratores que continuarem a jogar lixos e poluir seu curso e suas margens; estruturar e determinar à Secretaria do Meio Ambiente para desenvolver ações em prol desta campanha. Mesmo de longe estou disposto a lutar por esta causa justa e necessária. Quem sabe amanhã já não seja tarde?   

 

*João Erismá de Moura é advogado, pedagogo, escritor e servidor público aposentado do Tribunal de Contas da União, pertencente às Academias de Letras da Região de Picos-PI e Açailândia-MA. Reside em Brasília desde 13.07.1962.

Publicado no blog inteligweb (Rodeador News) do dia 13.03.2006

João Erismá de Moura



O Mal do Séculos

Sempre que procuramos nas lembranças do passado justificativas e parâmetros para entender o presente e prever o futuro, recorremos aos grandes eventos, obras ou personalidades que marcaram a história, os marcos da sua evolução. No entanto, os fatos, as pessoas, as obras que marcam são as representantes dos extremos da humanidade, extremos de bem, ou bom, e extremos de mau, ou mal. Todos elegem fatos e personalidades em cada área da vida, destacando o marco da política, das artes, da economia, etc. Porém, podemos levantar os destaques para o mau ou mal, e com eles aprender o caminho que não devemos seguir, por exemplo: na política temos Hitler e Stalin, na saúde temos a “AIDS”, Câncer e as Pandemias. 

O objetivo disto não é valorizar os aspectos negativos da evolução humana, mas identificar o mau (mal) de todos os séculos, aquilo que realmente impediu que nos aproximássemos da perfeição. Apesar de tantos séculos de caminhada rumo à evolução, alguns aspectos negativos de nossa existência permanecem. Ao identificar o “Mau dos Séculos” poderemos combatê-lo e, assim, chegar a um estágio verdadeiramente superior em nossa evolução.

Podemos encontrar indícios da resposta na literatura ou no cinema. O filme “Advogado do Diabo” teoriza as nossas fraquezas, apontando a vaidade como sendo o pecado dos pecados. Porém, temos certeza de que todos os pecados da humanidade têm sua raiz no poder, inclusive a vaidade. O poder é a fonte de todos os pecados, é o freio da humanidade rumo ao progresso evolutivo. Em nome do poder se cometem as piores atrocidades, para se manter no poder o homem mente, rouba, prejudica o seu próximo, usa as pessoas, usa o sexo, usa o dinheiro, usa-se de seu prestígio, como instrumento de domínio e em seu nome vive a vaidade de ser o centro das atrações.

Segundo o pensamento socrático “as virtudes se identificam com a razão”. “O bem liberta o homem e move suas ações espirituais e completas”. Portanto, “razão e caráter são coisas inseparáveis”. “Ciência e virtude formam uma unidade indissociável”. No entanto, a nossa moral católica, nossa herança religiosa criou a figura do “livre arbítrio”, um dom divino que permite ao homem escolher entre o bom e o mau. Talvez tenha sido inventado para justificar as inúmeras vezes que traímos a nossa razão e mesmo sabendo o que é certo e bom nós escolhemos os processos e ações erradas, optamos pelo nosso lado mau. A busca pelo poder e pela satisfação dos desejos individuais, acima de tudo e de todos, pela satisfação de nossas vaidades e de sermos o centro do universo humano, com a justificativa do “livre arbítrio” e a certeza do perdão dos pecados é que constituem o grande mau, não só deste século mas de todos os séculos passados, e continuamos a combater os mesmos erros do nosso passado.

É comum ao ser humano um certo dualismo, uma eterna luta entre fazer o que é certo e fazer o que nos é conveniente, muitas vezes são coisas antagônicas. Sabemos que o homem é um ser complexo, dividido em partes: um ser social e um ser individual, possuidor de desejos e necessidades sociais e individuais. O ser humano é dependente dos outros indivíduos, da sociedade; para existir, porém toda a sua conduta visa à satisfação de desejos individuais, ambições, vaidades, sede de poder e tudo o que diz respeito ao egocentrismo do pensamento individualista. Sabemos que o egocentrismo é um estágio comum da evolução do homem vista na sua fase infantil, devendo evoluir para uma percepção mais social. Porém, ainda é comum o pensamento individualista e egocêntrico permear as ações dos adultos, refletindo-se no conjunto da sociedade, que, contraditoriamente, tende a privilegiar o individual em detrimento do social. 

O poder e seus instrumentos (sexo, dinheiro, prestígio...) são meios que o ser humano utiliza para atingir seus objetivos e prioridades, que, nos séculos passados, estavam totalmente voltados para a perspectiva individual. No entanto, o poder, como instrumento, pode ser usado para realizações de grande valor e interesse social. Através do poder podem-se modificar as relações econômicas e políticas e melhorar as relações sociais. Para tal, é importante atentar para o lado da moral e da ética, temos que ter a consciência de que não se é poderoso, apenas se está no poder. É preciso se conhecer verdadeiramente, racionalmente, o que é o correto para o bem social. O poder é o instrumento perfeito para grandes realizações, para a evolução do homem e para a melhoria do conjunto da sociedade, se bem utilizado para estes fins. 

Fritz Miguel Morais Moura