Desafio da Carta

Canafístula em flor

(Carta do Desafio dos Escritores)

Por: Raimunda Leonila

A casa de adobe ladeada por alpendres, em sua frente, uma frondosa canafístula em flor abrigava besouros, lagartas, borboletas e beija-flores. Embaixo da árvore, o chão era revestido por um tapete de pétalas amarelas. Na lateral da casa, o mugir do gado e o berro dos cabritos prenunciavam a chegada da noite, a qual seria a mais longa nos 18 anos de vida de João Pedro. É que no dia seguinte, ele partiria para Brasília em busca de melhores condições de vida.

   Desde a morte do pai de João Pedro, a vida dele e a de sua mãe, Laura, não fora fácil: a estiagem e a falta de assistência dos órgãos governamentais dizimaram parte do rebanho e parte de suas lavouras. Assim, o jovem rapaz não via outra alternativa senão aventurar-se por outras terras. Para diminuir o trabalho de sua mãe, bem como para custear as despesas até que se estabilizasse, decidira vender algumas” cabeças de gado” antes que a fome, ocasionada pela terrível seca, as matasse.

   O jovem João Pedro, desde a mais tenra idade, nutria um profundo sentimento por Luísa e esta, também, correspondia em igual proporção. Era um misto de amizade, de paixão e de amor, esse benquerer cantado pelos poetas, celebrado e irradiado pela nostálgica luz da lua.

À época, João Pedro tinha 18 anos: era alto, franzino, olhos azuis, branco que nem parecia morar e trabalhar sob aquele sol tão quente e escaldante do semiárido nordestino. Por outro lado, Luísa contava com 17 anos: tinha estatura mediana, era esbelta, corpo de violão, pernas e coxas torneadas, morena cor de jambo, olhos verdes como duas esmeraldas, cabelos castanho-claros e levemente cacheados. Enfim, era a morena mais bela e mais cobiçada daquele árido sertão.

   Voltemos agora, estimado leitor, à noite que antecedera a viagem de João Pedro. As Plêiades haviam se escondido, a lua era nova, sua mãe escolhera essa fase porque, segundo os mais velhos, “era propícia para iniciar um novo projeto, um novo ciclo.” Os enamorados ficaram juntos por mais tempo do que o habitual. Então o pai de Luísa, sentindo a falta dela, ordenara que sua esposa fosse buscá-la, para que sua filha não ficasse “malfalada.”

   Desse modo, antes que a mãe da jovem chegasse à casa de João Pedro, os jovens fizeram um ritual de juras de amor:

   - Promete que não me troca por outra” sirigaita?”

   - Jamais! Você é o sol dos meus dias, amor meu.

   - Promete que volta logo para nos casar, meu amado?

   - Sim. Ficarei em Brasília só o tempo de arrumar uma condição melhor para nos casar. Pretendo ter filhos e quero que eles tenham um futuro promissor: estudem e se formem. E você promete que me espera?

   - Ora, que pergunta mais boba! É claro que espero. Você é, e será para sempre o único amor da minha vida.

- Adeus, meu amor!                                                                                                                       

   Quentes e calorosos beijos e abraços silenciaram suas vozes. Nesse momento, o vento assobiou, uma leve brisa tocou no rosto dos enamorados e, como “o rio que desce a encosta”, lágrimas rolaram sobre as suas faces. Essa noite fora a mais longa da vida do casal, nenhum dos dois conseguiu “pregar os olhos”.

    O canto da sabiá, naquela quente madrugada de outubro de 1963, não tinha o mesmo encanto, nem a mesma melodia de outrora. Uma profunda melancolia invadira a alma de João Pedro. Separar-se de sua mãe e da flor mais bela do sertão, era doloroso demais para ele.

Subitamente, João Pedro levantou-se: tirou o leite das vacas, amamentou os cabritos órfãos, tomou banho, colocou sua melhor roupa, em seguida, percorreu a parte externa e interna da casa. Contemplou a canafístula de flores amarelas, a calçada na qual se sentava com sua doce Luísa, nas noites enluaradas, a sala onde estavam um vaso com penas de pavão e um relógio com as imagens dos personagens franceses, Paulo e Virgínia. O relógio fora um presente de um parente que morava na França. Dirigiu-se ao quarto de sua mãe, cujo piso era feito com ladrilhos, em que tinha um oratório com várias imagens, entre elas: a de São Sebastião, a de São José e a de Nossa Senhora da Conceição; ajoelhou-se e rezou. Voltou pela sala e, novamente, fixou o olhar para o relógio. Eram 8 horas da manhã e os animais já estavam selados em frente à sua casa para conduzi-lo à cidade mais próxima, e de lá pegaria outras conduções até a capital do Brasil. Sua mãe aproximou-se dele aos prantos:

  - Meu filho, tenha muito cuidado! Alimente-se bem, não beba, não fuma e nem se envolva com más companhias. Outra coisa, respeite Luísa! Ela é uma bela moça, é trabalhadora e fiel a você, além do mais, é filha de vizinhos e amigos muito importantes.

   - Eu sei, mãe!  E a senhora cuide-se, também, e preste atenção em Luísa!

   - Tá bom, meu filho! Vou mandando essa carta de recomendação para seus tios, a fim de que cuidem bem de você.

   - Benção, minha mãe!

   - Deus te abençoe, meu filho!  

   Além do cavalo que ia conduzir João Pedro, havia um outro animal com uma carga de alimentos para viagem dele, bem como alguns produtos regionais para os parentes do viajante: carne de bode seca, requeijão, doce de buriti, rapadura, paçoca de carne seca, grade, pão de ló, entre outras delícias.

   O jovem rapaz montou no cavalo e sua mãe o acompanhou rezando: “Deus vos salve a hora/ que tu sais de porta afora/ Deus vos acompanhe/ e a Virgem Nossa Senhora!”

   Ao chegar em Brasília, João Pedro fora bem acolhido pelos parentes. Tudo lhe fascinara naquele lugar: desde o projeto arquitetônico da cidade, até as oportunidades que lhe foram proporcionadas por seu tio e padrinho de batismo. E como o jovem pensava grande, meteu a cara no trabalho e nos estudos. Cursou o Ensino Fundamental, o Médio e, por fim, a Faculdade de Direito. Ingressou na profissão, e foi galgando mais e mais degraus na carreira que escolheu não só por necessidade, mas, também, por vocação.

   Durante esse tempo, o moço jamais esquecera as mulheres de sua vida: sua mãe, Laura, e a doce Luísa. Contudo, “a vida tem razões que a própria razão desconhece.”

   No ano de 1993, decorridos 30 anos da jornada de João Pedro à Brasília, ele resolve retornar ao seu torrão natal. Agora, a viagem fora diferente da inicial, pelo menos do ponto de vista do conforto, haja vista o desenvolvimento do país, bem como a sua ascensão social. Do volante do carro, contemplava o verde das paisagens de algumas regiões, já que soubera que, mais uma vez, o Piauí e muitos estados do Nordeste estavam passando por uma terrível seca.

   Durante toda a viagem, um turbilhão de pensamentos e de emoções invadiram todo o seu ser. Como estaria sua mãe? E o seu torrão natal? E a bela Luísa, será que lhe perdoaria por tamanha ingratidão?

   Finalmente, João Pedro chega ao interior do Piauí e percebera que algumas coisas mudaram: rodovias asfaltadas, bem como meios de convivência do homem e da mulher do campo no semiárido, entre eles, a construção de cisternas e de açudes. Soubera também que, apesar disso, a desigualdade social no sertão nordestino ainda perdurava.

   O advogado estacionou o carro em frente à sua antiga casa, onde ficara a bela canafístula em flor com o seu tapete de flores amarelas. Oh, desolação! No lugar dela, tinha uma latada com uma cobertura rala de maracujá do mato. As flores eram lilases, mas estavam tão murchas e tão diferentes das flores que deixara! Continuou percorrendo a parte externa da casa: a calçada onde ele e Luísa trocaram beijos, abraços e mil juras de amor, encontrava-se deteriorada; os alpendres estavam um pouco gastos, porém, firmes; o curral no qual os bois mugiam e os cabritos berravam, sobretudo, os órfãos, dele restara apenas o mourão da porteira. Resolvera, então, adentrar à casa: na sala, o vaso com penas de pavão esvaiu-se; o relógio, com a imagem de Paulo e Virgínia, já não se encontrava mais. No quarto de piso ladrilhado, encontrou uma senhora de cabelos brancos deitada numa cama e, ali próximo, estava uma moça balançando-se em uma rede.

   - Mãe! A minha benção! Mãe! Mãe! Mãe!

   - Quem é?

   - Sou eu, João Pedro!

   A senhora Laura tentou levantar-se, mas não conseguiu. Começou a chorar, tremer a voz, e sussurrando falou:

   - Meu filho!

A moça prontamente pulou da rede e ajudou-lhe. A mãe de João Pedro o abraçou e, olhando para o oratório, agradeceu a Deus e a Virgem da Conceição pela graça. Antes que o advogado pusesse os olhos na moça, ela saiu para outro cômodo da casa.

   - Veja como estou, meu filho, em cima dessa cama. Só não morri ainda, porque apesar de sua ausência, você nunca deixou de mandar o dinheiro das consultas, dos remédios, dos alimentos e o da moça que cuida de mim.

   - E a senhora está tão ruim assim?

   - Olhe, meu filho, se não fossem os vizinhos, a cuidadora e os parentes, você nem teria achado sua mãe viva.

   - Perdoa-me, mãe!

   - Meu filho, coração de mãe não guarda rancor. Coração de mãe é só amor!

   - É verdade, mãe. Errei feio com a senhora.

   - Errou comigo e com outras pessoas também.

   - A senhora está falando de Luísa? Ela estava apressada demais, não quis esperar-me. Fizemos tantas promessas e juras de amor.

   - Apressada? Ela esperou 13 anos, já estava ficando velha...

   - E essa moça que estava aqui? É a que cuida da senhora?

 Dona Laura gaguejou, titubeou e finalmente soltou o verbo:

   - Ela é sua filha! Como estou doente e ela está de férias, resolveu vir dar uma força. Ela e a mãe têm muita mágoa de você.

   - Venha aqui, Raquel! Vem pedir a benção pro teu pai. Já estou velha e não quero saber de desavença na família.

   A filha veio para o quarto e deu a benção ao pai, este a abençoou e pediu-lhe perdão. Ouvira-se choros e soluços.

   - E sua mãe, como está?

   - Bem, graças a Deus!

  A filha contara ao pai todo o sofrimento que a mãe passara, durante anos. Contara, também, que ela vivia chorando pelos cantos, amargurada e, algumas vezes, cantarolava versos de Emilinha Borba, os quais descreviam a sua desilusão: “os teus olhos verdes me atraiçoaram/ na cruz suave dos teus braços/ foi que eu me perdi.”

   - Sendo assim, por que ela não me esperou?

   - É que o vovô já não estava bem de saúde e, antes de partir, queria ver a filha amparada. O senhor sabe como era a cabeça do povo daquele tempo.

  Raquel relatara que a mãe estava casada com um engenheiro pernambucano que viera, através da Queiroz Galvão, supervisionar os trabalhos de construção de estradas naquela região. Ele conhecera sua mãe, Luísa, e logo se apaixonara por ela. Contara, também que se casaram e tiveram um filho. O pai de Raquel já sabia dessa história, através de cartas que recebera de sua mãe. Porém, ouvir todos esses relatos pela boca de sua filha, foi doloroso demais.

De repente, Luísa aparece na porta do quarto de dona Laura, e hesita entre adentrar ao quarto ou sair correndo. João Pedro levanta-se e parte em direção à ex-namorada. Olharam-se intensamente e silenciosamente. Ele estava ciente de que nada, do que fosse dito, justificaria a sua ausência e a sua atitude egoísta. Por outro lado, Luísa também se sentia culpada por não ter esperado o grande amor de sua vida.

   Por alguns instantes, ficaram em estado de hipnose e olhando um para o outro, sem balbuciarem uma única palavra. Era uma explosão de sentimentos: um misto de amor, de paixão, de saudade, de ternura, de mágoa e de arrependimento.

   Apesar disso, João Pedro e Luísa compreenderam que os mágicos e aprazíveis momentos, que passaram juntos, deveriam ser eternizados em suas memórias, assim como a bela imagem da canafístula em flor.


 PREZADA CONTERRÂNEA, CORDULINA!

(Carta do Desafio dos Escritores)

Por: Dalva Cipriano 

                          Fortaleza, 15 de maio de 1915

          Prezada conterrânea, Cordulina!

          Grata pela lembrança, expresso nesta, a satisfação pelo recebimento de notícias, através de sua missiva. Aproveito o ensejo, para dizer - te   da emoção   que senti ao tomar conhecimento de suas lamentações, por conta dos sofrimentos que tens passado durante a viagem, do Quixadá à Fortaleza. Contudo, em resposta ao seu pedido de clemência, afirmo que vou analisar, com carinho, a situação e as possibilidades de ajuda.          

       Lamento muito a perda de seus filhos, cujo sofrimento e dor são irreparáveis. Portanto, envio meus sinceros sentimentos.  Recomendo que tenhas muita prudência, esperança e, junto ao seu marido Chico, possa com sabedoria, enfrentar ou mesmo evitar os perigos que ainda venham acontecer.  Como tens muita fé, apegue-se à certeza de que seu pequeno filho, Josias, esteja nos braços do Pai eterno, onde não haverá tanto sofrer. Quanto ao Pedro, alimente-se da esperança que estejais  bem, pois, conforme sua crença, tudo é  possível àquele que crê. Conforme-se com a separação do Manoel, pois terá uma vida menos sofrida, na companhia da sua comadre Conceição: arriscar-se em viagens com criança, talvez seja pior. D. Conceição é uma pessoa educada, bondosa, caridosa e poderá educar, cuidar e criar o seu filho, dando- lhe uma vida digna.

              Consciente de toda miséria que tem passado o nosso povo, em consequência da seca que assola o nordeste brasileiro, neste ano; vejo, além disso, outros problemas administrativos que afetam a sobrevivência e a dignidade das pessoas, gerando ainda mais sofrimento. Não posso garantir que a viagem de vocês seja a solução, mas se D. Conceição dispõe-se a ajudar nas despesas, com as passagens de navio para São Paulo, convém que façam a tentativa, mesmo sabendo que é um risco, pois lá, também, há grande discriminação e preconceito com o imigrante nordestino. Rogo que não seja pior, do que estar no Ceará como flagelado, no Alagadeiro, ou seja, o tão conhecido Curral do Governo (Campo de Concentração), junto a cerca de oito mil pessoas, vivendo em extrema miséria.

           No momento, só posso ajudar com esses esclarecimentos e aconselhamentos, visto que não ando bem de saúde. Sem mais, despeço me, desejando que façam uma boa viagem e voltem a me dar notícias.

                                                                                                              

  Saudações, Raquel.

 

Recife, 20 de fevereiro de 2021.  Dalva Cipriano 


SÍTIO DO PICA-PAU AMARELO

(Carta do Desafio dos Escritores)

Por: Elves França 

Sítio do Picapau Amarelo, 22 de fevereiro de 2021 


Querido papudo,

 

Aposto que está todo cheio de salamaleques agora para saber de que se trata esse meu tratamento (“de que se trata o tratamento”, hihihi!) endereçado a Vossa Digníssima Viscondíssima. Pois não revelo, só no fim. E digo mais: só no finzinho, bem finfinzinho! E nem me venha puxar pelas orelhudas como faz a Dona Benta, por ter inventado esse novo título nobli... nobiliárquico, nobili.. arcaico, enfim, de Viscondíssima. Vai me dizer o ilustríssimo que esta Marquesa de Rabicó aqui, que o senhor mandou tia Nastácia fazer de retalhos, não sabia que seu vovozinho era Visconde de Trembembé, de Tribobó... ou sei mais o quê, e que, só por esse detalhezinho pequerrucho,  Vossa Alteza resolveu batizar meu intrometido Sr. Espiga de Milho de “Visconde de Sabugosa”?  Pois, sim. Se ele já era Visconde, o pai do senhor era Viscondão e o senhor, Viscondíssimo e pronto.

Pois bem. Também tenho inteligência e se tem uma coisica de boa que o senhor fez foi me dar uma cachola pensante e muito pensante. Aliás, quem me deu essa cabecinha prendada foi tia Nastácia, que o Sr. chamou muitas vezes de simplesmente negra. Vejam só! Como se esse substatantivinho-adjetivinho dissesse tudo sobre a nossa mãezona fofucha e maravilhosa, cuidadora de nosso sítio, arrumadeira, dirigente do lar e, sobretudo, a melhor cozinheira de todo esse universo, incluído aí o Reino das Águas Claras.

Sei não, viu, Sr. Zé Bento. Sr. Zé Bentinho, para deixar tudo em limpos pratos, ou em patos lindos, em Patos de Minas. Como um homem de boa estirpe, doutor da lei, escritor, fabulista e mais um monte de coisas se esqueceu de uma coisa tão bobinha e tão importante como a passagem do tempo?! Será que o senhor perdeu a mão que escreveu nossa turma do Sítio indo à Grécia Antiga para ajudar Teseu a derrotar o Minotauro, a participar das aventuras de Robinson Crusoé com Robinson Crusoé e até a enredar todo mundo com o Peter Pan? E que foi feito da mão que escreveu a historinha da menininha negra que era maltratada pela branca malvada? Juro pela perna sumida do Saci que o senhor vai me dizer todo faceiro que lá no século XX todos pensavam assim. Pois aí mesmo é que o senhor merece um cocre por não ter percebido que, como os tempos mudam, suas escrevinhadas deveriam ser sobre coisas que nunca mudam, como o amor que Dona Benta sempre disse que deve haver entre todos. Fácil! E mais: pensa que não sei também que as pessoas deixam suas obras por terem medo de morrer para sempre. Então se é para morrer para sempre, deixe coisar boas que vivam para sempre. Como euzinha, ora! Estou viva e muito vivinha até hoje.

Sim, sim. Parece que andou desmiolando um pouquinho. Porque também escreveu coisas muito feias, como a história do presidente negro, em que o senhor fala muito, mas muito mal dessa “raça”. Ora bolotas! Como se gente fosse como a Mocha, que tem uma linhagem diferente de suas irmãs, ou como se humano fosse com os primos ricos do Burro Falante, todos Puro Sangue Inglês.

Tsc! Tsc! É nessas horas que me julgo muito feliz por ter miolo de molambos e fios de retrós por tudo quando é ladinho do meu corpo. Assim, nem preciso ficar amuada com tanta coisa sem importância que vocês bípedes racionais inventam para ganhar importância sobre os semelhantes. E ainda dizem que sou seu, seu... alter ego!! Repare!! Apesar de Marquesa, sabida e desbocadinha, nunca, nunquinha eu pensaria coisas ruins das pessoas brancas, amarelas, marrons, pretas ou cor-de-rosinha como o Rabicó. Era o que me faltava! Ouvi dizer até que o senhor era eugenista e o único Eugênio que conheço é o da mercearia do Arraial dos Tucanos. Sem falar no da lâmpada de Aladim, que eu acho que tinha o nome um pouquinho diferente.

Quer saber de uma coisa? Vou mesmo é encerrar por aqui, porque tenho muitas coisas para pensar e pensar. E sim. Esta cartinha era só para reclamar mesmo, viu? Não foi isso que o Sr. ensinou? Está bem! Vamos de saúde menos mal, o Tio Barnabé continua cuidando muito bem do Sítio e de todas as lendas que moram nele. Choveu na semana passada e blá, blá, blá. Ah! E papudo é minha forma zangada de te chamar de papai, viu, Sr. Zé Bento Eugênio Lobato? Mas vou mesmo é sumir agora. Pirlim-pim-pim!!!

 

 

Marquesa de Rabicó, Emília.


QUERIDA NOVA AMIGA 

(Carta do Desafio dos Escritores)

Por: Iara Marina de Sales Santos 

 

24 de julho de 1774  

 

Querida nova amiga.

Escrevo-te esta carta crendo ser o melhor dia para agradecer-te por notável imaginação acerca do que abarca-me nestas amarelas páginas. Ah, querida, o que é coração humano! se não uma máquina de gozos e desgostos! O que sentiu tu quando conheceu o meu? Que viu tu através de mim? Achou que foi bela escolha a casaca azul e calções amarelos que usei na primeira dança com minha amada Carlota? Viste como apego demasiado de minha parte a estas vestes? Oh, prezada Iara, coisas da juventude! Sei que entendes.

Antes de te escrever, enviei uma carta ao amigo Guilherme perguntando se era boa ideia, mas antes de receber sua resposta decidi por mim que era sim. Creio eu não necessitar de seu conselho em tais questões triviais, decerto que cometo o erro de o ignorar mesmo nas fundamentais. Enfim, deixe-me parar com as voltas e focar no objetivo desta carta de agradecimento.

Estimada amiga, quando escrevi sobre as simples e inocentes belezas da vida e dei exemplo do homem que planta o próprio repolho e feito isso consegue apreciar cada minuto de espera, cuidado e resultado de seu trabalho, agradeço o sabor que tu, Iara, deu à sopa de repolho que eu não fiz, mas tenho certeza que estava posta à mesa me esperando para o jantar. Quando reparei nos rostos daquela mãe e criança me encarando a espera de um pedação de atenção e das muitas vezes em que apreciei as flores do jardim, agradeço as cores por ti delicadamente pinceladas em cada cena; por todas as pinturas que não precisei fazer. Como me fizeste parecer bonito enquanto observava tudo junto a mim! Ou por mim. Grato sou por ter me feito mais venturoso aos seus olhos quando fui felicidade. Quando fui tristeza, agradeço as lágrimas que acrescentaste aos meus olhos quando em resposta a Guilherme (naquele dia lamentável) prometi não chorar. Obrigada por me desabafar; Por regar de sol as páginas de minha tempestade.

Ah, querida Marina, obrigada cem páginas por ter visto Carlota com esse teu jeito, creio — se é possível eu crer — que ela ficou ainda mais bonita e ainda mais amada através de tuas retinas. Agradeço ter notado a poesia em mim e cá dentro deste universo, ter podido criar a sua. Deixo, por fim, reescrito o trecho que mais causou-te emoção para que lembre onde retornar quando quiser por dentre esses verdes bosques, comigo passear:   

Mandei o meu criado ao encontro dela, só para ter junto de mim alguém que tivesse estado em sua presença. Com que impaciência o esperei, com que alegria tornei a vê-lo! Não tivesse vergonha e teria me atirado ao seu pescoço e coberto seu rosto de beijos.

Falam que a pedra de Bolonha, quando exposta ao sol, absorve os seus raios e reluz por algum tempo durante a noite. Dava-se o mesmo comigo e aquele rapaz. A lembrança de que os olhos de Carlota haviam pousado em seu rosto, em suas faces, nos botões de sua casaca e na gola de seu sobretudo, tornava-o tão querido, tão sagrado para mim! Naquele momento não daria aquele rapaz nem por mil táleres! Me sentia tão bem em sua presença...” (pg. 28)

 

Que eu te sirva de inspiração a cada novo despertar.

Aguardo resposta aos questionamentos feitos no início e o que queiras mais dizer-me.   

Seu jovem amigo,

 

Werther.        

 

 

 

Nota: Werther (Os Sofrimentos do Jovem Werther, de Goethe) logo após receber a carta em resposta, resolveu ir ao encontro de seu amigo Guilherme. Estando lá, conseguiu, nos braços da amizade, encontrar o acalento necessário para na manhã seguinte ir à procura da paz.

 

 

                                                                       

 

 

Iara Marina de Sales Santos 


PARA OLGA BENÁRIO

(Carta do Desafio dos Escritores)

Por: Nilvon Batista de Brito 

Rio de janeiro, 07 de novembro de 1940

 

Querida Olga,

Espero que ao receber esta estejas bem, dentro do possível para quem está em tua triste situação de privação de liberdade.  Quero que saibas que sentimos muito tua falta. Eu e meu marido começamos a entender o Brasil a partir de tuas conversas com o capitão. Por isso decidi escrever, embora Francisco, meu esposo, não concorde. Depois de tudo que tu e ele contribuístes para o meu crescimento intelectual, eu seria muito ingrata se não escrevesse,  dando-te notícias dos mais recentes acontecimentos daqui. Sei o quanto amas este país, apesar do pouco tempo que viveste por aqui, e o quanto amas o teu Prestes.  Espero ainda que não me julgues inoportuna, pois nem me conheces, embora eu de ti tanto saiba, inclusive mais do que imaginas. Podes estar neste momento perguntando a ti mesma como uma desconhecida sabe tanto de ti e toma teu tempo para escrevinhar estas linhas.

 Eu não poderia de forma alguma neste instante deixar de levar-te meu abraço de solidariedade. Hoje, ao sair a notícia da condenação de Prestes pela morte de Elza Fernandes, fui tomada por um sentimento de indignação na mesma intensidade que senti no dia da tua prisão e no dia de tua transferência para a Alemanha, quando Filinto Müller, aquele porco, entregou-te para a Gestapo. Não é novidade para ti que o Luís esteja preso já faz quatro anos, mas agora aqueles fascistas miseráveis imputaram-lhe falsamente um crime, só para condená-lo a trinta anos de prisão. Minha amiga, sei que és uma fortaleza e que a causa pra ti fala mais forte que qualquer situação. Sei o quanto foi dolorosa a separação de tua querida Anita, quando foi retirada à força de teus braços, mas quero que saibas que agora ela está bem e sob os prestimosos cuidados da avó paterna.

 Sou fraca, estou angustiada e não aceito esse destino. Quantas  vezes tive que me controlar para não gritar: “comadre, foge com teu Luís para o Nordeste e vai viver este amor”!  Sempre fui desestimulada a tal ação.  Eu tenho esperança de que um dia a inocência de teu Prestes  seja provada e de que todos os sonhos que testemunhei – quando atentamente ouvia  do outro lado da parede – um dia se concretizem. O capitão ainda vai derrotar o varguismo e transformar este país na nação dos trabalhadores,  onde a cidadania será plena e não uma exceção. Por sua vez, meu esposo pensa diferente, embora ache que o jogo entre Vargas e os fascistas impeça essa concretização, para ele, o   governo Vargas  irá superar essa dualidade e proporcionar um estado de bem estar social e que, se a  Intentona tivesse vencido, isto aqui nada mais seria que uma reprodução do stalinismo.  Mas não concordo com esse pensamento pequeno e covarde, pois para mim cada país tem suas peculiaridades, necessidades  e justamente por isso suas histórias se diferenciam.  

Talvez possas te indagar como esta desconhecida sabe tanto de ti. Quero dizer-te, contudo, que, antes de qualquer coisa, peço-te desculpas. Tanto pela ousadia quanto pelas mal traçadas linhas, pois não estudei muito, passo o dia fazendo trabalhos domésticos e o pouco que sei sobre política veio das notícias do rádio e das conversas que pude ouvir entre ti e teu amado. Fomos vizinhas durante todo o tempo em que estiveste morando naquele cortiço em Santa Teresa. Ouvi tuas angústias, teus relatos de como entraste naquele tribunal para resgatar o Braun, sobre os treinos rigorosos na Rússia e sobre a paixão inevitável por Prestes. Nunca falei contigo, pois meu esposo não permitia. Ele sabia quem vocês eram. Não que ele tenha alguma coisa contra o ideal de vocês, mas é que ele tem muito medo da polícia de Getúlio e dos integralistas. Estive o tempo todo em silêncio, bem próxima a ti, e em algumas ocasiões despistei os investigadores dificultando a localização do refúgio. Fui testemunha, mesmo sem querer, perdoa-me, de teus momentos de entrega ao capitão. Os gemidos e sussurros, já que apenas uma meia-parede nos separava, e,  apesar de existir  uma muralha invisível que  nos apartava fisicamente e impedia a reciprocidade de uma grande amizade, ela não nos dividia.

Comadre – chamo-te assim porque me considero a madrinha de sua filhinha –, rogo que sejas forte. Suporta esse sofrimento a ti imposto e mantém-te viva, pois muito precisamos de ti aqui para ajudar o Prestes a dar nova direção a este tumultuado país.

Um forte abraço de tua vizinha, 

                                                                                                                    

Matilde dos Santos


Nota: A carta foi interceptada pela polícia política varguista, e o casal Francisco e Matilde dos Santos foi preso e torturado até a morte                                               

DO TOLO AO MALUCO

(Carta do Desafio dos Escritores)

Por: Rômulo Rossy Leal Carvalho

São Paulo-SP, 20 de agosto de 1989

 

Caro "inimigo íntimo”,

 

         Tomei a liberdade de assim me referir a você hoje. Cá entre nós, de uma forma desenxabida porque estou exausto. Desde o dia em que o "Nova" não quis pôr aquele verso que eu inventei na canção "Século XXI", que dizia: "Se você morreu, morreu, morreu tanto, e não se enterrou em lugar algum, baby, oh, baby, bem-vindo ao século XXI". Mas reconheço a você, abertamente, hoje, que a música teria ficado ridícula, patética, como nós éramos naquela excursão à Feira de Santana. Pena que não nos foi possível ir a Paris ainda. Mas iremos - ou quem sabe nossos espíritos.

         Eu sempre fiquei sem compreender seu agnosticismo. Você é um cara despojado, que não esbanja dinheiro, que tem uma fé diferente, uma "fé ao avesso"; talento. Talvez eu, na minha caretice, é que não entenda como você professa sua fé na vida, como você tão bem cantou lá em "74". Eu nunca entendi direito o seu fim, o seu meio, o seu início, porque ora você estava numa estação ora estava noutra lendo à beça, e eu, o tolo, tentando controlar as suas esquisitices nos locais pelos quais passamos nesse país - que sofre o vitupério da insipiência todos os dias.

         Agora, quer saber, me veio o sentimento de te escrever essa missiva hoje porque algo além me impulsionou; um augúrio tétrico (não me sinto bem quando me invade esse sentimento execrando). Gostaria de vê-lo, de fumarmos um "trago", de degustar um pouco daquele uísque que você disse que guardaria para mim e que não feneceria sem me ver tomar. Talvez seja um dos impossíveis do seu destino: me convencer a ser um "maluco beleza". Sei o que você irá pensar quando ler a frase anterior: "eu não sou louco, o mundo é que não entende a minha lucidez", ou, talvez: "pare o mundo que eu quero descer".

      A voz chata do Flávio Cavalcante me fez lembrar do dia em que você compôs "Carimbador Maluco" e, depois, com o meu inglês horrível, a versão nesta língua que você fez para "Trem das Sete", que, inclusive, devo enfatizar valorizou demais o som da bateria. Meu amigo, quero muito que saiba que, embora às vezes, ou sempre, eu pareça aquele amigo insuportável, que insiste com que você zele mais pela sua vida, que sua liberdade seja um tanto mais "controlável" - se é que existe essa possibilidade e conjuntura -, eu opto pelo seu bem. Sei muito bem que posso virar cinzas amanhã, você também, a Dalva (que Deus nos livre, porque você não encontra uma empregada-amiga melhor!), dona Eugênia - por quem tenho tanto carinho -, ou até suas filhas, enfim. Somos náufragos e supérstites simultaneamente. Você reconheceu isso quando, em "79", lançou "Diamante de Mendigo". Não acredite mais em verdades ignorantes, como diz na canção, mas saiba que, quando cair, eu estenderei a mão para te ajudar, como estive no dia do seu "tropeço colossal" na saída do show em que "Aluga-se" ficou marcada pela sua performance totalmente embriagado. Creio que ali estivesse mais sóbrio que hoje.

         Há quanto tempo não nos vemos pessoalmente. Reencontrei o Caetano nesses dias, o Jerry, o próprio Coelho. Todos estavam preocupados com você depois do último show em Brasília. Mas não se preocupe. Logo, lhe farei uma visita. Há um cara novo aí no rock dizendo que "temos todo o tempo do mundo". Isso é o que ele pensa. Concordo quando ele diz que "somos tão jovens", mas digo isso porque concordei muito com você ao longo da nossa amizade, Raul Santos Seixas (Raulzito). Desde o dia que nos cruzamos em Salvador, que você se deixou tomar banho, adulto, nos braços de sua mãe, eu reconheci o Raul humano para além do maluco. Você me ensinou a ser menos estúpido, e espero muito que continue, por muito tempo, a me ensinar. E agradeço, outrossim, por me citar e minha palermice, em tudo me preocupar, numa de suas canções de "87". Por aqui, despeço-me. Tenho tanta esperança ainda, e às vezes não passo de uma dentadura postiça. Não se esqueça de me responder. Envio essa epístola diretamente ao Edifício Aliança. Ah, se o auge do seu egoísmo é querer ajudar alguém, o ápice do meu altruísmo é lhe desejar vida!

 

Com a ânsia da sua correspondência,

Seu amigo Tolo, "Zé do Carimbo do Título de Eleitor"


De AURÉLIA ( SENHORA) PARA AMÉLIA (O CRIME DO PADRE

AMARO)


(Carta do Desafio dos Escritores)

Por: Regivalda Sousa

Minha querida Amélia.

 

Recebi sua carta e te escrevo com o coração em frangalhos. Sim, em frangalhos. Nunca pensei que o padre Amaro fosse capaz de profanar uma mulher sob o manto de Maria. Não, não estou te julgando, querida amiga, e nem tirando a sacralidade do amor que me confidenciou sentir pelo padre. O amor, Amélia, é sempre sublime, mesmo quando se anuncia como algo proibido, pelo menos é o que diz meu coração.

Contudo, o que me deixou, demasiadamente, com a alma dolorida, foi perceber, por suas confidências, que Amaro não a ama. Desculpe-me, Amélia, por Deus, mas não consigo acreditar nos bons sentimentos de um homem que diz amar uma mulher , mas reduz seus sentimentos a volúpia, marca sua alma com o ferro da paixão e depois, como o mais vil de todos os seres, abandona-a, movido por suas conveniências.

É doloroso, Amélia, sentir-se desprezada pelo ser a quem o nosso espírito venera, eu sei. Sim , eu sei e disso dou testemunho porque eu também tinha um coração virgem e cheio de paixão, o entreguei para aquele a quem coloquei no mais alto dos pedestais e ele também não soube retribuir meu amor.


Tal qual fizestes com Amaro, eu fiz com Fernando quando o preferi entre todos os meus namorados e o escolhi como " o herói dos meus romances" e, como tú, também fui, pelo amor, preterida. Preteridas, Amélia, fomos nós. Eu porque o meu coração pueril e apaixonado valia menos do que o dote de Adelaide, um mesquinho dote de trinta contos! E você porque o seu ser por completo , corpo e alma, não é suficientemente sagrado perante os olhos desse padre.

Assim, permito-me te dizer tudo o que penso e sinto sobre seu romance. Por tuas palavras, Amélia, e por minha intuição, percebi claramente que Amaro a deseja com muita sofreguidão, como parece desejar santa Maria, mas que isso é tudo. Senti que ele vai ao teu encontro para se embriagar no teu corpo e saciar o seu desejo de estar com uma mulher e que deseja te ver logo separada da criança do teu ventre para que possas, novamente, ser só dele e assim saciar a sua fome de pecado.

Por tudo isso, peço que perdoe minha acidez, mas , se me desse o direito de interferir em sua historia, eu te pediria para se libertar de uma vez por todas do padre Amaro... Eu te pediria para renunciar a esse amor por sua felicidade e pela felicidade de sua criança,mesmo entendendo o quão difícil é a sua situação.

És uma moça, Amélia, uma moça solteira e gravida de um padre. Eu sei que não podes se revelar assim para a sociedade, pois haveriam de apedreja-la. Eu sei que seria vista e tratada como uma mulher profana e que seu filho, em vez de abençoar sua vida e coroar seu amor, sentenciaria-te e condenaria.

 

Eu sei que a sociedade não perdoa as mulheres, mas, mesmo assim, peço que lute, Amélia ! Peço que não deixe o seu destino nas mãos do padre Amaro. Eu confesso que não confio no amor daquele homem, ao tempo em que te aconselho a não confiar também. Eu sei que posso ser mal interpretada por você, doce Amélia, afinal podes pensar que as palavras duras que destino ao padre a quem adora, é fruto de um coração feminino ferido e envenenado... Eu sei que podes pensar que falo contra seu amor por estar em guerra contra o meu e ouso admitir que sou uma mulher ferida; que fui cativa de um amor, desprezada por ele e que me fiz dele senhora por sede de vingança! E ainda admito que não deveria te pedir para renunciar a Amaro, uma vez que não renunciei a Fernando.

Não renunciei, sim, é verdade. Fiz a ele uma proposta aviltante, com a esperança de que a recusasse, para que então eu pudesse implorar, se necessário, que aceitasse meu amor.Meus planos foram contrariados, Amélia. Fernando se vendeu para sua senhora e destruiu por completo o ídolo que construí dentro de mim e que por meu amor tentei restaurar. Sim, Fernando me destruiu e o fez de tal modo que acabou por assassinar um coração que Deus criou para amar.

Contudo, entenda... Não estou vivendo sob o julgo deste que, perante a sociedade, ouso chamar de meu marido. Vivemos como dois estranhos nesta casa e o torturo com ironias e olhares frios. Confesso, claro, que também sou torturada e que não era pra ser assim, como também confesso, Amélia, que , apesar de ferida e de tê-lo ferido, estou presa a Fernando pelo amor. Sim, eu confesso que o amo e que, as vezes, creio que vejo amor nos olhos dele também.

No entanto, entendo que talvez eu queira acreditar que há amor em Fernando, assim como você quer acreditar que há amor em Amaro . Somos mulheres, Amélia, mulheres e vítimas de dois homens mesquinhos. Meu Fernando renunciou a mim em nome da fortuna de Adelaide e o seu Amaro está te dando provas de que renuncia a você em nome da Santa madre igreja e que o faz, como Fernando, apenas por que lhe é conveniente.

A igreja, Amélia, é para Amaro o que Adelaide foi para Fernando, um confortável e cômodo espaço de poder, nada mais que isso. Amélia, se Amaro amasse a igreja, seria fiel a igreja e se contentaria em contemplar a imagem de Maria. Contudo, se ele também te amasse, seria fiel a você e não te abandonaria com um filho seu no ventre.

No entanto, ai esta você, sozinha, em casa de Dona Josefa, aguardando dar a luz do mundo a um filho cujo destino é tão incerto quanto o seu. Assim sendo, ouça o que te digo e seja forte, Amélia! Eu entendo o seu medo e a sua dor, minha menina, mas rogo-lhe que tenha coragem e que lute por seu filho! Rogo-lhe que não o entregue para o destino que Amaro está pretendendo. Eu sinto que Amaro te engana, Amélia, e assim peço que faça o que tomar como certo, mas que não volte para os braços de Amaro e nem deixe seu rebento em suas mãos.


Não se submeta às suas vontades. Ele cometeu muitos crimes contra ti


CARTA (NONATO CIPRIANO)

Os longos períodos de estiagem, no Nordeste, deixaram marcas indeléveis em boa parte daquela gente, que atravessou o grande deserto da seca; enfrentando os mais impiedosos dissabores. A vida ficou à deriva, no mar do infortúnio, da penúria e da mortificação. 

Nonato Cipriano

 

                  Fortaleza, 30 de abril de 1915.

 

       Prezada Rachel.

 

       Venho através dessa carta, contar, à Senhora, o meu sofrer e todos os aperreios que passamos, quando saímos lá das Aroeiras e viemos parar nesse mundo de meu Deus, penando, que nem condenados, com todos os rigores dessa vida cruel. E pedir à Senhora, clemência desse desatino.

       Desde que arribamos, lá das Aroeiras, por causa da tirania de Dona Maroca e pela teimosia de meu marido, Chico, minha vida tem sido uma penitência sem fim. Passei fome, frio e sede; minha cabeça só faltou rachar, naquele sol escaldante das terras do Quixadá  e ainda fui humilhada, pisinhada e escorraçada em muitos lugares por onde passei. Sem falar da penúria que me dava, de ver meus filhinhos naquela  sofreguidão, comendo fato de bode sem lavar os estrumes e bebendo aquelas águas barrentas e fedorentas, das cacimbas cheias de maribondo e bicho morto.

       Minha Senhora, já sofri muita desilusão nessa vida, mas nenhuma foi igual ao destempero de perder meus filhinhos pra boca desse mundo.  Chega me dá um frio  nas têmporas... nem gosto de me alembrar ! Oh minha Santa Luzia! Oh meu São José, valei-me!

       Primeiro, foi meu filho Josias, aquele pobre inocente que se desgarrou de nós e foi se embrenhar  naquela roça pra comer raiz de mandioca. Dona Rachel, não sei se a senhora é mãe, mas ver meu menino com a barriga estuporada daquele jeito, arquejando, nos braços de Chico e revirando os olhos, nas agonias da morte... foi um golpe medonho, que nem as dores do ventre, pra botar ele  no mundo, chegou perto. Foi um desgosto profundo, deixar meu bichinho debaixo daquele chão quente. Nem um caixão, teve direito, o pobrezinho.

       Depois sofri a desventura de ter que deixar Mocinha, por conta das abas do mundo, sem rumo e sem direção, nas mãos de gente estranha. Que fim terá tido Mocinha! E meu filhinho Pedro, o mais espertinho de todos! Que fim terá levado? Ele já tinha um jeitinho de rapaz e era quem ajudava  Chico, na lida com o gado e na roça. Oh minha Santa Luzia, velei-me, na minha agonia!

       O pior estava por vir. Para agravar minha sina, tive que entregar meu caçulinha, Duquinha, pra compadre Conceição acabar de criar. Eu sei que ele terá o melhor destino, de nós todos, mas me cortou o coração de ver aquele bichinho, sentado no chão, feito um preá, se agarrando ao pé da mesa, sem querer ninguém perto dele. Quando saí da casa de comadre Conceição, perdi os sentidos. Tentei chorar, mas meus olhos já estavam secos e arenosos, de tanto chorar e sofrer; minhas  pernas tremiam que nem vara verde e meus pés não sentiam pisar o chão. Me escorreu um suor frio, por debaixo dos  cabelos e minhas mãos ficaram  tão pálidas que pareciam flor de algodão.

       Minha Senhora, escrevi essas linhas pra mostrar um pouco da vida tirana que se alastrou sobre nós, desde quando saímos de Quixadá até chegar  nesse lugar de desabrigados, aqui em Fortaleza. E principalmente, queria lhe  pedir clemência em nosso fim. Faça chover muito nesse sertão e tire esse pensamento de girico, da cabeça de Chico, de ir pra São Paulo.  A senhora pode fazer isso, pois tem o lápis e o papel.

 

 

       Um abraço inesquecível, da sofrida e retirante.

       Cordulina.

 

 


P.s. Chico Bento manda procurar, se é melhor ir pra São Paulo ou pro Amazonas.

 

 

  

Nota do Autor: essa carta foi ditada por Cordulina, mas escrita e remetida por sua comadre, Conceição.