Desafio: Artistas no Riachão

Fugere Urben


Regivalda Sousa

Era manhã de sábado. O Inverno se apresentava como nunca visto antes. Tinha chovido no sertão durante toda a noite anterior e eu ainda estava envolvida pelo som melódico da chuva.  Como é bonito o tilintar das gotas sobre o telhado. É lindo! Som mais bonito não há, pelo menos não para os meus ouvidos. Alagoinha parecia mais bonita e eu parecia mais viva, apesar de todas as dores. Sei lá... chuva faz nascer flores de esperança até nos mandacarus.  

Sempre que chove, aliás , o Rio Marçal transborda e a cidade toda se aglomera em suas margens para ver a manifestação da natureza, a fúria das águas. Eu não costumava ir, mas naquele sábado fui. Fugere urben, talvez! Precisava fugir um pouquinho da cidade ou um pouquinho de mim ... caminhar sem rumo, percorrendo as estradas do meu próprio ser e entender um pouquinho o lugar onde estava, afim de perceber onde tudo se perdeu.

 Quando cheguei no Rio, me deparei com uma multidão de gente... todos admirados diante do espetáculo das águas cristalinas do velho Riachão e entre todos muitos rostos conhecidos... Reginaldo, Roberto, Rafael, D. Fidelia está na companhia de Luiza e Adélia Luizia, suas netas. Observei a multidão mais um pouquinho e fiquei surpresa ao me deparar com Nilvon Batista,  Márcia Camilo e Geovane Leal.  "O que esse povo está fazendo aqui? ", indaguei internamente sem entender as razões pelas quais uma galera "de fora" estaria nas margens de um Rio  numa manhã de sábado como aquela.

 Estava curiosa Por saber,  mas não me aproximei. Não estava ali para socializar e sim para espairecer e, como se eu fosse o flaneur de Walter Benjamin, Só me infiltrei na multidão para consegui a ilusão de um anonimato e degustar a paisagem sertaneja como se fosse a primeira e última vez. 

O cheiro de terra molhada e a dança furiosa da correnteza me fazia retornar para um lugar de minha infância , onde eu mergulhava naquelas águas e era resgatada lá do fundo pelo cachorrinho da família, meu amado Brutos. Senti um aperto no peito, no resgate das memórias, e me distanciei da multidão. Sentei-me sobre uma pedra e me permiti voar para onde a saudade me levasse. Revivi os banhos com as primas, a pescaria de piabas, as lavagens de roupas com as tias e me dei conta de que, como as águas, a vida passa... escorrega por entre os nossos dedos. As horas foram passando e a multidão foi se dispersando. 

Quando voltei do meu transe estava sozinha. Movida pelo impulso, ou atraída pela água ( dizem que ela chama aqueles que não sabem  nadar), aproximei-me do Rio e mergulhei o pé em seu dorso .  Não contente, mergulhei o outro e quando dei por mim já estava no meio do leito do Rio. Sim, há uma passagem molhada sobre o Rio Marçal e eu pisava sobre ela, afim de desbravar as águas e não arriscar a vida. 

Caminhar sobre as águas me trouxe uma sensação de paz e de profunda conexão com meu eu. No entanto, por descuido ou tentação, caminhei até a borda da passagem molhada e não consegui perceber que estava na borda. A água me engolia até a altura dos joelhos e num movimento brusco escorreguei e fui completamente tragada pelo Riachão. Desesperador! Tentar brigar com as águas, é entrar num combate desleal. Quanto mais eu me debatia, mas a correnteza me arrastava. Eu submergia e me percebia cada vez mais perto do fim, em lugares cada vez mais profundos.  Impulsionava o corpo, na tentativa de alcançar a superfície e ela estava cada vez mais longe. Buscava o ar, mas só engolia água. O Rio me invadia ora pela boca, ora pelo nariz. Eu estava me afogando . Não sabia nadar, já estava quase sem forças e Brutos não estava ali para me resgatar. Entreguei-me a Deus e mergulhei no mais profundo silêncio.         

"Para pensar se esse é o teu lugar

Aquele bom em que deveria estar

Presta atenção só no som do mar

Que te conecta com Jah Jah

 

Para pra pensar se esse é o teu lugar

Aquele bom em que deveria estar

Presta atenção só no som do mar

Que te conecta com Jah Jah

 

Olho vagarosa ao redor

Que raro, brecha pra enxergar

Mesmo sem conseguir brecar

O que não se vê ainda está lá

 

Fardo pesado de carregar

Essa coisa do aparentar

Nesse corre-corre, nem dá tempo de olhar

Mas a vida interna abre pra outro lugar

 

Puxa o ar do fundo, longo, profundo

Solta com barulho, joga fora pro mundo

Silêncio, silêncio, eu quero escutar

O tudo e o nada interno que há

 

Para pra pensar se esse é o teu lugar

Aquele bom em que deveria estar

Presta atenção só no som do mar

Que te conecta com Jah Jah "

       Era como se eu estivesse no fundo de um poço ou presa dentro de um sono profundo e confuso. Eu ouvia um som, parecia musica, mas esta, num primeiro momento, pareciam estar há milhas e milhas de mim. A voz melódica  parecia um sussurro. Conforme eu ia emergindo desse poço, ou dispersando do sono, não Sei, a voz ia se tornando cada vez mais clara e mais próxima... ia fazendo sentido para mim e se tornando familiar. 

De repente, foi como se eu, finalmente, alcançasse a superfície e o ar chegasse em meus pulmões. Respirei fundo e despertei. Senti-me perdida diante da imensidão de um céu azul, mais tão azul que parecia um oceano pousado sobre mim. Pousei as mãos sobre os olhos e ao não encontrar os óculos fui me dando conta do ocorrido. Estava molhada e coberta de areia, na margem do Rio. Olhei ao meu redor e tudo era areia e sol... de gente, só havia a melodia que eu ouvia com mais nitidez agora. Ergui-me e olhei em todas as direções em busca da voz que entoava a canção e qual não foi minha surpresa, quando distingui, sentada na pedra onde estive a pouco, com um violão na mão, a silhueta feminina, dona de uma voz inconfundível, de : " PITTY "! Sim, eu estava diante de Pitty e mal podia caber em mim e nem explicar o turbilhão de sensações que me invadia. 

 Esfregava  os punhos nos olhos, na tentativa de clarear a visão ou desfazer a ilusão de ótica, afinal, só podia ser ilusão de ótica, não havia a possibilidade de Pitty estar as Margens do Riachão... No entanto, era real. Não era miragem, era real. Ela estava na pedra e cantava como uma sereia do Rock . 

Aproximei-me, lentamente... Como se temesse que ela se desintegrasse, caso executasse algum movimento brusco. Eu estava trêmula e enquanto me aproximava ensaiava as palavras que deveria usar para me dirigir a ela, embora mal conseguisse raciocinar. Quando cheguei diante de Pitty, então, meu mundo parou e minha voz sumiu.

 Ao notar minha presença , ela interrompeu o canto e quebrou o silêncio : opa, tudo bem? Nada respondi. Eu não sabia se estava tudo bem. Sentia-me como se fosse uma pequena menina, perto de uma mulher tão gigante... tão cheia de vigor e de tanta força. Ela, percebendo meu embaraço, pegou o violão, começou a dedilhar algumas notas e a cantar, suavemente: "só nos últimos 5 meses eu já morri umas quatro vezes... ainda me restam 3 vidas pra gastar" Aproximei-me e Sentei-Me próxima a ela, num banco de areia E, por impulso , declarei: - essa música me diz muito.--serio ? Muito bom saber disso.

Quando eu compus essa música eu tentei captar a alma da coletividade -- disse ela.

–                    sim . Entendo... O refrão é muito forte e muita gente acaba por se identificar. Eu, por exemplo, Creio que tenho passado por essa experiência de quase morte toda semana. Sei lá ... Não tenho conseguido me encaixar dentro das caixinhas do mundo e isso me consome. Aliás, como você consegue?

–                    como consigo o quê, exatamente? -- indagou Ela, enquanto afinava o violão. 

–                    ser  quem você é... Sabe? Você aparenta ser uma mulher livre de tudo e de todos... uma mulher forte!  Poderosa mesmo  ... 

–                    cara, eu sempre fui assim e acredito que todos devem ser livres. Todas as mulheres , principalmente, devem buscar ser e viver segundo suas próprias convicções, independentemente do que vão dizer ou pensar. A sociedade vai sempre querer colocar a gente numa caixinha, mas cabe a gente decidir se vai mutilar a alma pra entrar ou se vai segurar a onda e buscar o que nos faz bem. Entendeu? Eu só segurei minha onda e fui seguindo , perseguindo tudo o que eu desejava e, no final das contas deu certo. Pelo menos eu acho que deu. – concluiu  , desenhando um leve sorriso sobre a face.                  

–                    Deu  sim... Deu muito certo. Aliás,  não é um julgamento,  mas já ouvi muito sobre você e, ao que parece,  tinhas tudo pra dá errado no Rock, na vida...

–                    Sim é verdade. __ disse ela, pousando o violão na areia __ acho inclusive que quase enlouqueci minha mãe ( risos). Ela queria que eu fizesse faculdade, tivesse um emprego... tudo bonitinho e eu segui pela contramão. Um dia eu cheguei em casa cheia de tatuagem e ela pirou ( risos) ela pensou que eu estaria perdida. Não conseguiria emprego e tal. Eu era meio camicase.  Mas a vida é isso... a gente tem que escolher um caminho, apostar todas as fichas e bancar tudo até o fim.

–                    Eu entendo e tenho tentado. Seguir pela contramão, mesmo sem sair da linha, é sempre difícil e eu nunca sai da linha, mas sempre estou na contramão...                

–                    Continue! Continue! – interveio ela – hoje, pode até parecer que está caminhando para a guilhotina, mas dará certo e no final das contas um dia alguém ouvirá um texto seu, poetisa, e se encontrará nele e em ti, assim como se encontraste em minha música e em mim.             

–                    Ut opias as , Dona... Utopias. Eu não tenho o seu poder, sabe? Sou uma poetisa feita à base de Coca-Cola, entende? não me fiz à base de chá e nem de gim... – retruquei e tudo se apagou.   – Givalda, acorda, pelo amor de Deus!  Era minha irmã... ela gritava e me sacudia, enquanto uma porção de pessoas me olhava. Rostos conhecidos, aliás. No ar, pairava som melódico de fragmentos de um  canção de Pitty...   " como um mar vermelho ", " pupila dilatada", " É besta assim esse quase morrer", " e agora que eu voltei, quero ver me aguentar".


Encontros Marcantes


Eva Graça Brito

Acredito que a admiração é um sentimento muito nobre. No meu íntimo, admiro inúmeras pessoas e sinto-me feliz por conseguir cultivar esse sentimento.

A maioria dessas pessoas são do meu círculo familiar, literário, do trabalho, dentre outros. Muitas vivem razoavelmente perto de mim, assim, no dia a dia ou frequentemente, ainda que no atual contexto seja de modo virtual, felizmente tenho usufruído de suas companhias, alegrias e das boas energias que emanam.

Existem muitas outras pessoas que admiro. Alguns são artistas nacionais, que fisicamente  vivem  distantes  e nem sequer sabem que existo. Porém, de alguma forma, ainda que unilateralmente, tornam-se muito próximas de mim, pois  por meio  de  seus múltiplos talentos e de seus dons artísticos que me encantam, consigo uma conexão imaginária tão intensa, que por vezes creio na possibilidade de encontrá-las pessoalmente  e poder lhes dizer o quanto as admiro.

Tais encontros reais têm sido muito raros, mas já aconteceram. Rememoro aqui, especialmente dois deles, que tive com incríveis artistas brasileiros.

Ambos aconteceram em 2019, durante um dos maiores eventos  de cunho cultural e religioso, que acontece anualmente  no  Centro Cultural Vale do Riachão.

Lembro-me com muito carinho de tudo, até mesmo dos arranjos feitos nos dias que antecederam esses encontros marcantes.

Logo na primeira semana do mês de abril, já estava tentando organizar-me junto à escola que trabalho para  antecipar uns três dias das férias, que só teria direito em julho.

         A ebulição toda para fazer tais arranjos, era porque  no início da segunda quinzena do referido mês, aconteceria no Centro Cultural Vale do Riachão (localizado na querida cidade de Alagoinha do Piauí), um  evento de grande magnitude. Não queria perdê-lo por nada, uma vez que considero-me amante do  universo maravilhoso da arte e da cultura.

 Hehehe! Num perdi mesmo.

Na época, eu trabalhava com a queridíssima Renata Sonali, minha ex-diretora, uma nordestina (paraibana)  arretada, pessoa  de grande sensibilidade  para com os anseios de seus semelhantes e que sempre está disposta a colaborar  com todos.

Quando ela me ouviu falar com tanta empolgação sobre esse evento cultural, foi logo me dizendo:

- Evinha, minha flor, deixe de “arrudei”. Preciso entender isso direitinho.

- Certo, minha querida, vou te explicar. Não pense que é gazear! Irei é para ter a oportunidade de prestigiar, valorizar  e absorver a essência do belo. Como você  sabe, eu valorizo muito os livros, a arte...

- Sim, sei disso. Tenho os livros que você participa e também vejo sua peleja diária  aqui com os discentes, tentando motivá-los para que frequentem mais a nossa biblioteca. Além disso, acompanho  seus projetos e ações em prol da leitura e da cultura, por isso preciso apenas que me fale que dia vai e que dia volta, para eu poder me organizar aqui, pois você fará falta no apoio pedagógico, porém, tu sabes que no que depender de mim estarei sempre te apoiando.

- Sei disso! Obrigada, minha querida! Olha, a partir de quarta-feira, dia 17 de abril,  preciso ir para Alagoinha do Piauí, minha querida terra natal, localizada  no Vale do Riachão, pois...

- Tudo bem! Você pode  ir. Deixe comigo. Por aqui resolverei qualquer embaraço!

- Agora, continue, flor! Estou vendo você muito desejosa de ir para esse evento. Aí tem coisa, né não?

- Renata, mulher, eu não vou mentir.

- É que por  lá encontrarei artistas muitos especiais, que admiro há décadas!

- Hum! É mesmo? Quem são? Você vai vê-los de perto? Conte-me essa história direito.

         - Na quarta-feira à noite, após o show do teu conterrâneo, o artista maravilhoso que compôs a trilha sonora da minha vida, irei encontrá-lo no camarim e, na sexta-feira,  meu encontro será com um renomado ator, que por meio de seus incríveis personagens  na TV e no cinema vem me proporcionando  muita emoção e algum aprendizado.

- Que conterrâneo meu? Qual é o renomado ator? Afinal, você marcou com quem?

- “Eu marquei logo foi com os dois”, rsrs.

-  Eita! Sério? Isso vai bom, hein! Espero que até o fim de nossa  conversa eu descubra quem são esses artistas, rsrs.

-  É sério. Bom demais! Irei te falar  agora mesmo.

- Na quarta-feira, assistirei ao show do Chico César, bem de pertinho. Ficarei na área vip, a mais próxima do palco, assim o aplaudirei fortemente quando cantar todas, especialmente no momento da   minha música dileta, que é  Estado de Poesia. Depois irei ao camarim dar-lhe um grande abraço, presenteá-lo com um livro  e tirar uma foto, claro.

- Uau! Renomado artista mesmo! Direto de Catolé do Rocha na Paraíba  para todo o  Brasil e o mundo!

- Verdade. Que mente brilhante!, Além de suas letras serem  muito inteligentes, ele é um  respeitável melodista.

- Certamente irei amar encontrá-lo!

- Continuando... Na sexta- feira meu encontro será com o maravilhoso ator Paulo Betti. Ele despertou  grande admiração em mim desde o período da minha adolescência, quando  comecei a assistir suas incríveis interpretações na pele de alguns  personagens em  novelas e principalmente  no cinema. Dentro outros filmes, considero que   fez papéis  marcantes demais em  Guerras de Canudos, Lamarca Mauá: o imperador e o rei, sendo que nesse último, além de emocionar-me bastante com sua magistral interpretação durante todo o longa, contribuiu para que eu pudesse conhecer um pouquinho da trajetória do Visconde de Mauá; história importante que sinceramente  desconhecia antes de assistir ao filme. 

- E o melhor de tudo é que recentemente descobri  uma novidade.  Soube que  ele e sua atual mulher, a humorista Dadá Coelho, que inclusive é  piauiense,  possuem uma biblioteca e fazem  doações de  livros. Por isso, outro dia ousei entrar em contato com eles. A Dadá Coelho, gentilmente atendeu-me. Falei para ela sobre a admiração que sinto pelo trabalho dele. Disse-lhe também, que já  estava sabendo que ele participaria do do  espetáculo “Paixão de Cristo”,  interpretando o governador romano, Pôncio Pilatos, assim, gostaria muito de ter a oportunidade de encontrá-lo pessoalmente para presenteá-lo com  um livro de  literatura piauiense e registrar o momento.

- Ela agradeceu, garantiu-me que eu teria a oportunidade encontrá-lo e até brincou:

-  Dona Eva, você irá vê-lo, mas “aquieta teu facho”, que eu vi primeiro! – Riu.

Marminino! Respondi-lhe no mesmo tom:

- Mulher, num te preocupes não! "Eu tô na flor da idade e aqui tem muito homem bonito na cidade", rsrs.

Abraços e tchau, querida Dadá!

Após ouvir atentamente o que contei, Renata disse:

- Hum! Agora sim, entendi essa tua animação. Muito bem! Vá com Deus, aproveite  bastante. E advertiu:

- Tome tento com a Dadá, viu, rsrs!

 ...

 Fui!

         Aliás, fomos! Rose, Daniel, (colegas picoenses) e eu. Saímos de Picos-PI às 15:00h. Chegamos lá maromene  às 16:30h. O Daniel ia ficar hospedado na casa de meu querido amigo Janiqueles.  Fomos direto à casa do anfritião. Chegando lá, foi só alegria, e de brinde ele nos informou que o Paulo Betti já estava na cidade e hospedado num hotel, razoavelmente perto da sua casa.

- Que informação do meu agrado, amigo!

Depois de um saboroso lanche oferecido pelo amigo Janiqueles, confabulei para que ele e os demais  me acompanhassem até o hotel, para tentarmos falar com o Paulo e eu poder entregar a coletânea Piauí em Letras.

Eles toparam!

Quando chegamos ao hotel, falei com o recepcionista que havia combinado e queria falar com  um ator renomado que estava hospedado lá.

         Ele me perguntou?

- É o Sérgio Maroni?

- Nan! Eu sei que ele também está aqui, mas  eu quero é o Paulo Betti, rsrs!

- Vixe! Acho que a senhora não combinou o horário, né? Pois ele não está no momento. Foi participar do  primeiro ensaio do espetáculo.

- Sem problemas! Esperaremos!

- Fiquem à vontade!

Daniel, logo começou uma sessão de fotos  em alguns  espaços do hotel, cada passo era um flash, rsrs. Janiqueles  também fez algumas fotos com o amigo.

Eu fiquei ali na recepção, bem atenta.

Às 18:00h, repentinamente a Dadá entra feito um relâmpago. Estava  sozinha, parecia meio cansada ou estressada, talvez.

Eu a interpelei!

- Dadá, Dadá!

Oxente, mermã, que desarvoro é esse? Quem é você?

- Eu sou Eva Graça Brito, admiradora do teu amado. Lembra-se que conversamos pelo Insta?

- Ah! Sim! Disso eu estou lembrada. Mas num prometi que você falaria com ele hoje, visse!?

Resolvi ignorar essa última parte da resposta, que ela estava passando na minha cara.

E perguntei-lhe:

- Cadê o Paulo? Cadê o Paulo?

- Tá vindo aí! Ela apontou para a entrada principal do hotel e ficou me olhando de relance.

Corri. Por um triz não embarrei com sofreguidão no meu “amadinho”.

Antes que ele  adentrasse o hotel, falei:

- Olá, Zé Lucena, Lamarca, Irineu, Timóteo D’Alamberti, Vanderley, Ypiranga Pitiguary, Miguel, rsrs.

Ele ficou maravilhado, acho.

- Obrigado! Eva, você é uma graça! Acho muito importante essa manifestação de carinho para com o artista. Bom saber que esses personagens foram marcantes para você! Atualmente além, da novela Órfãos da Terra, estou com o longa “A Fera na Selva”. Assista! Você irá gostar! Em breve, farei o  lançamento dele também aqui no Piauí e gostaria muito de reencontrá-la, querida fã.

- Oba! Assistirei! Será sempre um prazer prestigiá-lo! Desejo-lhe êxito sempre!

- Agora, gostaria de te entregar este livro para você. Espero que goste.

- Amo livros e será um prazer conhecer esta obra literária. Obrigado!

- Paulo, meus amigos eu  queremos  tirar  fotos contigo. Pode ser?

- Sim. Quantas quiserem!

Tiramos algumas fotos. Ele sempre alegre  e com o livro na mão.

                

 

Depois daquele frenesi com o Paulo, lembrei-me do alerta da minha querida amiga, Renata Sonali, sobre "tomar tento" com a Dadá, rsrs. Rapidamente olhei para ela. Estava quieta, absorta em seus pensamentos;  possivelmente pensando que depois do evento, iria para Floriano-PI, reencontrar sua querida família que vive lá. Interrompi seus pensamentos e a convidei para  tirarmos uma foto, afinal, no contexto geral, até certo ponto, ela  contribuiu significativamente para que aquele encontro fosse possível.

Eles  despediram-se  de mim e dos demais e foram para o quarto.

Rose  e eu,  fomos para a casa da minha mãe.

Após o jantar, iríamos prestigiar o Chico César, que com grande  maestria faria a abertura do evento cultural.

Chegamos cedo.  Por lá tudo estava lindo e  acolhedor.

O  Centro Cultural  Vale do Riachão estava majestoso! Naquela ocasião, cada um de seus espaços havia sido decorado de modo impecável, o  conjunto da obra  o tornava muito  belo e harmônico.

Em destaque, logo avistei um  cenário religioso, ornado por  elementos que  a natureza generosamente brindou a nossa terra e,  pelas pinceladas de um grande e  inspirado artista, numa tela gigante, estava  lá o nosso lindo e importante rio Marçal.

Fiquei pensando, pensando...Que bom vê-lo, contemplá-lo de novo, meu querido rio!

         Ah! Incontáveis vezes o abracei na minha infância, quando  nos dias quentes, lavava roupas e  tomava banho entre a passagem de Chico Galdino e a do Poço da Pedra, embaixo dos pés de saboneteiras, que estavam sempre nos acolhendo com suas sombras,  naquele oásis. Minha mãe, minhas irmãs, algumas amigas e eu tínhamos o maior prazer de nos refrescarmos nas suas  águas rasas e límpidas  nos dias de intenso calor.

Após esse momento de flashback e êxtase que por um instante rememorei, seguimos para arena do show!

Encontramos o empresário do Chico César, ele trajava uma veste estilosa, principalmente a camisa, era  “massa demais”. Que homem gentil e simpático. Rose disse que achou lindo .Acho que ficou apaixonada, rsrs.

Ele cumpriu o que havia me  prometido. Facilitou nosso acesso, realmente nos colocou na área vip. Melhor  do que aquilo, só se fosse lá em cima do palco, fazendo dueto com o Chico. Mas, isso é uma façanha para a arretada Juliette, não para mim.

Salvo engano, antes da abertura, o empresário cochichou algo para o Chico.

O show começou. Tudo lindo, lindo! Ficamos ali curtindo cada música e  aplaudindo bem de pertinho o grande artista.

Pouco antes do encerramento, ele cantou “Estado de Poesia”, a trilha sonora da minha vida e, de leve, deu uma piscadinha para mim. Rapidamente, devolvi o agrado, fiz o gesto de um coração com as mãos. Ele riu e prosseguiu contagiando com sua voz e melodia, a mais linda poesia. Todos os aplausos! Amei amei!

Quando terminou o show, vi que saiu apressadamente do palco e foi para o camarim. Estava acompanhado de seu empresário e de outros. Fui atrás deles e chegando lá constatei que já tinha uma enorme fila. Confesso que estava muito cansada, toda desajeitada, cabelo todo esquisito, etc.

O  empresário dele veio  falar conosco e disse que ele  teria o prazer de receber  todos. Aproximou-se de mim e pediu-me que o acompanhasse. Por um instante pensei, que  maravilha! Porém logo hesitei. Agradeci e  disse-lhe  que esperaria a minha vez na fila.

-  Você decide. Eu só quero ajudá-la!

Respondi-lhe:

- Não acho certo furar a fila! Outra coisa, já fizeste muito por mim hoje. Muito obrigada mesmo!

Quando chegou a minha vez, o Chico   me abraçou fortemente  e disse:

- Senti que você gostou da música que cantei para você, vistosa!

- Eu a-mei!  Você é o máximo! Muito obrigada, querido artista!

E acrescentei:

- Para você que tanto admiro,  meus aplausos, meu abraço e este livro.

- Que bom! Obrigado pelo carinho.

- Chico, hoje  adquiri teu livro intitulado, Versos Pornográficos. Quero o autógrafo.

- “Num se avexe não”,  “vou dar o grau”!

Depois de tirarmos o retrato, Chico fez uma capela para mim com estes versos:

Eva “tem hora que ri de dentro pra fora

Não fica nem vai embora

É o estado de poesia.”        

 

        

Somente depois que recebi de suas mãos o livro  autografado, saí e a fila andou.

Acerca desses  encontros maravilhosos, quando me perguntam como consegui que acontecessem de forma tão amistosa e marcante, às vezes recorro a esse  bordão do hilário Chicó, que diz: “Não sei, só sei que foi assim!” Rsrs.


Sarau Frustrado

Deolinda Marques

Era 25 de julho de 2021. Estava na Casa da Barra para o nosso Encontro dos Rios. Depois de muito esperar, já um pouco frustrada, não aparecia ninguém. Pensava comigo: Não sei por que Nilvon marcou essa data? Véspera da Festa de Senhora Santana! Pelo menos Santinha, ele sabia que não viria. Está numa missão muito mais importante do que a de Quita.

De repente, chega uma espécie de emissário e fala que a reunião não seria mais ali. Entrega-me um bastão com cerca de meio metro e ordena-me: Segure firme com as duas mãos para você fazer seu percurso por todo o leito do Riachão.

Tentei saber por que o encontro fora cancelado e argumentar que não teria condição física de fazer tão longo caminho, mas a menina que entregara o bastão sai voando com seus lindos cachos esvoaçantes. Pensei: Meu Deus, aquela é Iara Marina! Depois desse reconhecimento, animei-me para cumprir a ordem que me fora imposta. Mas como, se meu joelho emperrado já me deu a certeza de que nem mesmo no Morro Grande não subirei mais? Veja bem percorrer todo o curso do Riachão! Mas não custa nada tentar!

Segurei bem firme aquele pedaço de madeira e, de repente, comecei a flutuar e pude dar um pequeno voo em frente à casa; me desequilibrei e caí. Merda! Segurei novamente com mais firmeza e, dessa vez, saí voando, como numa “Virtual Reality”. Lembrei-me do voo panorâmico que se faz, no Museu da Natureza, por todo o Parque Nacional da Serra da Capivara. Mas senti que não usava nenhuma espécie de óculos em 3D! Achei estranho!

Mas, como estava gostando tanto daquela aventura, nem quis mais saber como tudo estava acontecendo. Deliciava-me com aquela paisagem. Sobrevoei a embocadura dos rios e, numa velocidade mediana, continuei seguindo o Riachão na direção contrária das águas e podia observar suas ribanceiras de areias brancas, contornadas pelo verde de algumas árvores que ainda restam, e até mesmo lugares um pouco mais distantes. Passei pelo Balseiro – vendo os canteiros de alho e de cebola, os leirões de batata, que ainda são plantados... avistei a capela do Coração de Jesus; logo em seguida, Lagoa do Canto (ou é Cangalhas?), depois lugares nunca vistos antes. Em pouco tempo avistei a querida SAL, a Ponte Molhada, a Olaria de Telhas, a Oiticica das Almas ... Tentei me afastar um pouco do leito, pois queria ver mais de perto a Ladeira da Andorinha. Mas o percurso parecia traçado. Era o leito do Riachão. Seguindo em frente, tive dificuldade. Curva acentuada. Avistei o Lisboa Hotel, lembrei-me da picanha com baião-de-dois do amigo Tubão... assustei-me e dei um enorme grito, quando passei por baixo da Ponte do Acampamento. Pensava: Meu Deus, que passeio maravilhoso essa turma me proporcionou! Isso só pode ter sido ideia de Rômulo Rossy!

Seguia me deliciando com aquela paisagem tão linda e tão desconhecida, quando, de repente, avistei uma enorme pedra e comecei a sentir medo de bater nela, pois voava cada vez mais baixo. Jesus! Isso só pode ser a Pedra do Diogo! Sem conseguir controlar a minha direção, fiquei dando voltas ao redor e pude perceber a existência e uma enorme caverna. Se fosse Jailson Klein, já ia dizer que é a pedra de Sísufo. – Ri sozinha.  Fui baixando, baixando... me desequilibrei um pouco, mas consegui aterrissar sem tombar no chão.

Como ouvia sons, falas e nunca tive medo de almas do outro mundo, resolvi entrar na caverna, apesar da escuridão. Andei pouco e lentamente, pois as pernas ainda estavam trôpegas, e senti um facho de luz (como o de um refletor) que entrava por uma fenda e iluminava todo o espaço. Imediatamente fui saudada pelo poeta Geovane:

  – Seja bem-vinda, grande Deó! Você não é minha prima, mas é como se fosse!

Já sei! Mudaram a reunião para cá. Ia me certificar com meu querido Geó, se ali era a Pedra do Diogo, quando avistei aquela figura de cabelos brancos em desalinho, trajando (como sempre) roupa toda branca (calça, camisa, sapatos). Não me contive e gritei:

– MEU DEUS! EU NÃO ACREDITO! O POETA DE BARREIRINHA!?!?

Uma jovem que se ocupava em fazer selfs e parecia não ter muita intimidade com a literatura, logo reclamou:

– Oh! E já incluíram outra cidade na ALVAR?

Fui tentar explicar que Barreirinha (sem “s”) não era município do vale do Riachão, mas uma cidadezinha do Amazonas... Antes mesmo de concluir aquela informação, alguém falou:

– Aquele ali não é poeta. Acho que é médico. Tem alguém doente? É COVID?

Naquele momento, me dei conta de que poderia mesmo estar sonhando. Como poderia o meu querido poeta está naquele lugar? Como se adivinhasse meus pensamentos, Geó afirmou categoricamente:

– Tá sonhando, não, Deó! A ideia de transferir o Sarau pra cá foi minha. A casa, ou melhor, a caverna é sua! Aqui é minha terra e de muitos Mouras alvarinos. Dalva sabe a história de todos os troncos velhos daqui.

Havia muita gente. Tentei identificá-las, mas é difícil reconhecer as pessoas usando máscaras. Não me convenci. Não vejo Jailson, muito menos Elves! Jailson nunca faltou a uma reunião da ALVAR! Faltar logo hoje! Também, uma data dessa! – pensei.  Se é Sarau, por que não convidaram Ozildo, Vila, Nonato Fontes (excelente declamador)? Será que estamos na gravação de um “Longa”? Olhei, olhei... não vi Sávio Barão, nem Flávio Guedes... mas me alegrei ao avistar o querido Nonatinho com seu violão, dedilhando A Casa do Sol Nascente.  A senhora desconhecida insistia em perguntar:

– Não sei o que esse médico está fazendo aqui? Acho que já me consultei com ele.

Antes mesmo que eu conseguisse explicar que ele não era médico, o grande poeta levantou-se e, com voz firme, fala bem alto os lindos versos que ecoam por toda a caverna:

Fica decretado que agora vale a verdade.

que agora vale a vida,

e que de mãos dadas,

trabalharemos todos pela vida verdadeira.

Os alvarianos entram em enxurrada e, no final, todos aplaudem bravamente.

👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏

Olho e vejo numa das paredes de pedra da caverna, como os Mandamentos no paredão do celeiro da Granja dos Bichos, todo o poema escrito em letras cursivas, bem desenhadas, que lembrava a escrita de Mundica Fontes. Pensava que só tinha inscrições rupestres no Rancho Neneia!

Jailson se aproxima e, com voz de locutor da Rádio Difusora, declama solenemente:

Fica decretado que todos os dias da semana,

inclusive as terças-feiras mais cinzentas,

têm direito a converter-se em manhãs de domingo.

Acho que ele queria dizer “noites de sextas-feiras”. A gentil Romanilta atravessa em meio aos presentes, conduzindo um enorme buquê de flores, entrega carinhosamente ao poeta e declama com sua voz segura:

Fica decretado que, a partir deste instante,

haverá girassóis em todas as janelas,

que os girassóis terão direito

a abrir-se dentro da sombra;

Raimundinha, no alto da sua elegância e ternura, completa:

e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,

abertas para o verde onde cresce a esperança.

O poeta Geovane, embora preferindo a poesia rimada, declama o artigo completo:

Fica decretado que o homem

não precisará nunca mais

duvidar do homem.

Que o homem confiará no homem

como a palmeira confia no vento,

como o vento confia no ar,

como o ar confia no campo azul do céu.

Honorato intervém:

O homem confiará no homem

como um menino confia em outro menino.

Com voz tranquila, serena, mas com enorme sentimento de indignação, o advogado Elves França declara todo o Artigo V:

Fica decretado que os homens

estão livres do jugo da mentira.

Nunca mais será preciso usar

a couraça do silêncio

nem a armadura de palavras.

O homem se sentará à mesa

com seu olhar limpo

porque a verdade passará a ser servida

antes da sobremesa.

O poeta gatinho dá continuidade com declamação belíssima e filmando para postar no seu “Insta”:

Fica estabelecida, durante dez séculos,

a prática sonhada pelo profeta Isaías,

e o lobo e o cordeiro pastarão juntos

e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.

O historiador Nilvon Batista, encarnando Ferreira Gullar, sentencia:

Por decreto irrevogável fica estabelecido

o reinado permanente da justiça e da claridade,

e a alegria será uma bandeira generosa

para sempre desfraldada na alma do povo.

         Meu Deus, como Nilvon gosta de história de “povo”! – pensei. Mesmo sem saber declamar, não me contive. Deixei o acanhamento de lado e dei continuidade:

Fica decretado que a maior dor

sempre foi e será sempre

não poder dar-se amor a quem se ama (...)

Não conclui o artigo (estrofe), pois o choro já me embargava a voz. Lembrei-me do meu avô que sempre gritava comigo, quando me via chorando:

– Olho de buraco d’água!

Mas Jailson gentilmente completa:

e saber que é a água

que dá à planta o milagre da flor.

Fiquei tão feliz quando vi Dona Fidélia, num pedestal de sapiência e cercada de crianças, proclamar:

Fica permitido que o pão de cada dia

tenha no homem o sinal de seu suor.

Mas que sobretudo tenha sempre

o quente sabor da ternura.

Nonato se aproxima, dedilhando seu violão, e dá continuidade:

Fica permitido a qualquer pessoa,

a qualquer hora da vida,

o uso do traje branco.

         Surge, de repente, Marli Veloso num rio de meiguice e, depois de discorrer brilhantemente sobre a estada do poeta no exílio e sobre a sua amizade com Neruda, declama suavemente:

Fica decretado, por definição,

que o homem é um animal que ama

e que por isso é belo.

muito mais belo que a estrela da manhã.

O professor Fritz, quase interrompendo a fala de Marli, afirma com convicção:

Decreta-se que nada será obrigado nem proibido.

tudo será permitido,

inclusive brincar com os rinocerontes

e caminhar pelas tardes

com uma imensa begônia na lapela.

Iara Marina, toda serelepe com seus lindos cachos, bate na mesa e ordena:

Só uma coisa fica proibida:

amar sem amor.

Samuel Nascimento começa falando da importância de preservarmos aquelas inscrições, depois declama, com gestos performáticos:

Fica decretado que o dinheiro

não poderá nunca mais comprar

o sol das manhãs vindouras.

Expulso do grande baú do medo,

o dinheiro se transformará em uma espada fraternal

para defender o direito de cantar

e a festa do dia que chegou.

           Pensei: Oh! Meu Deus! Tanta gente querendo declamar! Eu ainda queria ouvir a voz do meu querido poeta.

A poetisa Regivalda se aproxima e, depois de reivindicar mais tempo de fala para as mulheres, convida a elegante Eva Graça para juntas declamarem o Artigo Final:

Fica proibido o uso da palavra liberdade.

a qual será suprimida dos dicionários

e do pântano enganoso das bocas.

A partir deste instante

a liberdade será algo vivo e transparente

como um fogo ou um rio,

e a sua morada será sempre

o coração do homem.

Comecei sentir forte dor no pescoço. Me retorci e, no melhor momento (o da grande foto com todos), me assustei e ouvi o baque. O pescoço doendo daquela posição ruim no sofá, celular espatifado no chão... Merda! Só podia ser sonho, mesmo! Um encontro com Thiago de Melo na Pedra do Diogo! E ainda quebrei meu celular!

 

Bocaina-PI, 13 de maio de 2021.


Encontro dos Sonhos!

Jailson Klein 

Do alpendre da casa, vejo, à frente, o Rio Riachão passando e escorrendo até se juntar ao Rio Guaribas, uns 200 metros abaixo, onde minhas vistas alcançam com facilidade. O leito é fundo e há altas ribanceiras, tanto no Riachão quanto no Guaribas. Parece com a foz do Rio Iguaçu, desaguando no Paraná. Parece muito. A Tríplice Fronteira. Olho para baixo e reparo que a queda da ribanceira está logo ali, perto dos meus pés. De repente, me dá um medo enorme de cair no rio. Tem muita água lá embaixo e a correnteza é forte. Deve ser o período de chuvas. Então esse é o famoso encontro dos rios?! Volto para a casa e, num portal de madeira, uma tabuleta balança pendurada. Nela, consta a inscrição “Casa da Barra”. Uma casa bem bonita, pequena, mas com alpendre dos lados e na frente. Acho que dá para todos ficarem bem acomodados. O meu carro está estacionado no terreiro, à sombra de uma enorme figueira. Do outro lado, vejo uma sepultura com flores viçosas e bonitas. O falecido avô. Uma galinha bica farelos pelo chão e uma enferma cachorra dormita. Mais adiante, um jardim e uma senhora de lisos e negros cabelos. Quem será essa mulher? Ela está de costas e não consigo ver seu rosto. Nossa! Isso está me lembrando uma história... Sim! Juliete esperando a volta de Pierre. Ela se vira e reconheço que é Juliette do Big Brother.

— Eu sou da Paraíba. Nordestina cabra da peste! Sabe disso, não é? Conheci a dona desta casa em Campina Grande, há muito tempo. Quero agradecer a ela por ter me convidado para o encontro — ela fala com um forte sotaque de sua terra.

Entro na casa e acendo um cigarro. Fumando?! Mas eu não posso fumar, já parei há quase 30 anos. Será só desta vez, depois eu paro de novo. É fácil. Em um dos lados da sala, há uma estante, várias estantes com livros. Meus livros. Essa casa é minha. Cadê Alessandra e os meninos? Acho que ficaram em São Paulo. Há um quadro na parede com um poema sobreposto a uma flor em marca d’água. Aproximo-me e a flor agora está bordada. Conheço bem isso. A antiga dona deve ter esquecido aqui. Ela deixou outras coisas também. Vejo um velho baú debaixo da mesa. Será que a sepultura debaixo da árvore é do avô da dona desta casa? O baú agora me parece enorme e pesado. Algumas folhas e folhetos escapam pela tampa. Está tão cheio que não cabe mais nada.  Pego alguns papéis para ver. São orações e cânticos da igreja, e também folhas soltas com poemas de um livro publicado há muito tempo. Meu Deus, por que não reeditam esse livro? Abro a geladeira e está repleta de bebidas. Cervejas, refrigerantes, cajuínas. Quando os amigos chegarem... Hoje? Amanhã? Não me lembro quando será o encontro. Estou preparado. Seis galinhas para o jaburu (fico confuso, pois achei que havia prometido cinco), um leitão para os torresminhos. E algum dos convidados trará a cachaça. Ouço vozes da cozinha, mas não vejo as pessoas que falam. A festa vai ser grande.

Estou na varanda e há uma fila de mesas de bar, ligadas umas nas outras, formando um mesão comprido que toma quase todo o salão. Muitas pessoas sentadas, outras de pé, conversando e bebendo alegremente. Tento reconhecer alguém, mas são todos estranhos.

— Ei, Jailson, fiz uma música para aquele poema do Habeas-Porcos. Venha cá, vamos cantar! — disse um homem com um violão e chapéu, com a intimidade de um amigo, mas não lembrava de tê-lo encontrado antes. Havia muitos em volta dele, cantando e se divertindo.

— Temos que tomar cuidado com o delegado — respondi e já sabia do que falávamos. 

Toco no meu rosto e estou sem máscara. Como fui esquecer?! E essa aglomeração toda! Ainda não fui vacinado. Ou fui? Melhor procurar alguma máscara na casa. A casa agora era a da serra do meu amigo Dandim, chamada de Chácara Caboré. A mesa de concreto, a pequena cozinha, as luzes de Santo Antônio no horizonte... Já é noite? Aí o meu amigo me diz:

— Já falei para você que a gente tem que cumprir as duas primeiras regras do Jaburu:

nada de mulheres e, no máximo, seis participantes. Encontro de famílias e com uma turma grande a gente faz de dia, num local com piscina, como a chácara de seu sogro, por exemplo.

Olho em volta e vejo mais dois amigos e um desconhecido, que conversam e bebem descontraidamente. De que mulheres ele está falando? E só vejo cinco pessoas aqui.

— Quem é aquele cara estranho que não conheço?

— Chegou há pouco na cidade. Veio de Palmeira dos Índios. Seu nome é João Valério.

O nome é familiar, pensei. Do outro lado do rio, vejo algumas carnaúbas. Seis, para ser exato, e me lembro da ALVAR. Podia tirar uma foto delas para colocar na capa do nosso livro. Conhecia aquela paisagem das carnaúbas à margem do Rio Riachão, era a Passagem dos Patos. A olaria de Lino Juriti estava do outro lado. Seguindo essa estrada por 13 quilômetros, chegava-se à Bocaina. Tive um amigo na Bocaina, na adolescência, que nunca mais encontrei: Edim.

— Jailson Klein!

A voz vinha da direção do meu amigo, mas, quando olho, é o presidente da nossa Academia que falava. E ele prossegue:

— Você não vai ao encontro na Casa da Barra? É para começar às 19 horas. Vamos transmitir pelo YouTube. Eu estou indo.

Viro para Dandim, ele ainda estava ali, e pergunto como chegar à Barra, no encontro dos rios.

— Siga por essa estrada de terra que vai abeirando o rio até sair na estrada da Bocaina.

Depois, cruze e pegue a outra, para o Balseiro.

Vou para o meu carro — estranho que agora era um Corsa Preto — e saio em disparada. A estrada até que não é ruim; é uma rodovia. Uma placa à beira da estrada informava que era a BR-116. Depois passo por um posto de combustível com o nome de “Alvorada”. Lá no fundo, uma lanchonete. Conhecia o lugar. Já parei aqui uma vez. Lembro que tinha um homem estranho no balcão. Depois começam a aparecer umas casinhas simples, como numa periferia. Aqui já é Santo Antônio. As casas ficam mais simples, viram casebres. Um monte deles. Ruas estreitas para passar. Uma favela! Estou ferrado se esse carro der um problema aqui. Os bandidos vão me pegar. Aí me aparece um palhaço cabeçudo na janela. Pennywise! Ele arreganha sua boca enorme e tem várias fileiras de presas. Viro para o banco traseiro e vejo que meu filho Miguel está em sua cadeira. Ele ainda é um bebê. Tento acelerar para ir embora, mas não alcanço o pedal do acelerador. Me estico todo, mas não consigo mover as pernas. Tento... tento... e...

...sinto um chute na perna... abro os olhos e estou no escuro... deitado. Uma voz bem distante me diz para eu acordar. Tento abrir os olhos novamente e vejo as portas de um guardaroupa. Viro para o outro lado e...

... desta vez consigo acelerar o carro. Um carro vermelho, antigo, daqueles bem largos, quadrados e baixos. Um Plymouth Fury. Nossa! Esse é Christine. Largo o volante e ele se dirige sozinho pela estrada de terra vermelha.

Paro em frente à entrada da Casa da Barra. Está mudada. Há uma enorme cancela. Chega um homem para atender, de chapéu e chicote na mão. Conheço esse ator. Como é o nome dele? Ah, Othon Bastos. Mas não pode ser que...

— Quem vem lá nessa agonia? — gritou ele.

— Estou chegando para o encontro.

— Não sei como é que fui permitir essas besteiras de gente desocupado aqui na minha fazenda!

— Aqui não é a Casa da Barra?

— Esta fazenda é de minha propriedade e se chama São Bernardo.

Que loucura é essa, meu Deus?!, pensei.

— Tem dois senhores esperando por vosmecê aí. É de se esperar que esse bate-papo acabe logo, porque tenho mais o que fazer! — esbravejou ele.

Eu tinha que perguntar, nem que ele não me deixasse entrar depois.

— A sua esposa se chama Madalena?

— Sim, senhor! E o que o senhor tem de arrumação com a minha senhora?  Que conversa sem jeito é essa? — Ele estava ficando raivoso a olhos vistos. Continuou: — Falei para o compadre Luís da Silva: mulher não vai com carrapato porque não sabe qual é o macho. A gente tem que trazer na rédea curta, ainda mais quando são metidas com as leituras, com essas ideias de vagabundos comunistas, que nem a minha. Depois, os semocupação saem por aí nas repartições discursando em desfazimento de nós, os homens de bem. E aí, a gente é que pega a fama de ruim e de ciumento. Isso vai mal!

Chego à casa do coronel. A varanda ficava de fronte para o último trecho do Riachão, antes de desembocar no Guaribas. A casa ficava em local elevado, e a vista era bonita. A construção agora era mais antiga, com peitoris e pilastras sem reboco em alguns pontos. A junção dos rios ficava logo à frente. Othon Bastos – ou Paulo Honório – sumiu. Uma mangueira frondosa tomava parte do terreiro do casarão. Entro para encontrar os outros confrades e confreiras e dou de cara com dois homens sentados em cadeira de macarrão, calados e fumando. O mais velho era um senhor magro, com calças sociais, camisa de botão e, acho, duas canetas no bolso. O cabelo, bem penteado para trás a troco de gel (brilhantina?), mostrava consideráveis entradas de calvície, comuns à sua idade. Ele estava com as pernas cruzadas. Usava óculos de armação escura e grossa, que voltara à moda recentemente. Reconheci de imediato: Graciliano Ramos. Mas ele já morreu faz mais de 50 anos! Acontece que estou vendo-o vivinho aqui. Preciso de um livro dele de imediato para que autografe. Não posso perder a oportunidade.

O outro homem era mais novo, uns 50 anos... minha idade. Não pode ser, era para ser mais velho. E eu tenho 51.  Ele tem o cabelo liso, longo e cheio, que caía nos olhos. Usa uns óculos de lentes fundo-de-garrafa. Um dos escritores que mais li na minha vida adolescente — e adulta: Stephen King. No Brasil?! Aqui na Barra?

Puxo uma cadeira, sento-me próximo aos dois, e falo com emoção:

— Que prazer encontrar dois dos escritores que mais admiro neste mundo!

— Vi que se inspirou no meu livro “Cemitério” para escrever uma cena de um conto — falou King em português. Até falar português ele sabe!

— É verdade. Esse é um dos seus livros mais aterrorizantes que li.

Chegam duas meninas ruivas gêmeas, com vestidos azuis idênticos e o mesmo penteado, e perguntam ao americano se ele quer uma cerveja.

— Não, fui viciado por muitos anos em álcool e cocaína. Consegui parar há algum tempo, finalmente. Tem cajuína?

— Sim, papai – responderam juntas.

— Ei, mestre King, essas não são as gêmeas de “O Iluminado”? — perguntei.

— São. Elas viajam comigo para divulgar o livro.

Graciliano ouvia e não falava nada. Só fumava.

— Senhor Stephen King, o que é preciso fazer para ser um grande escritor? — perguntei.

— Se você quer ser escritor, existem duas coisas a fazer, acima de todas as outras: ler muito e escrever muito. Que eu saiba, não há como fugir dessas duas coisas, não há atalho. Escrever tem muito de dom, mas tem muito mais de disciplina e trabalho. Se você ler muito, você aprimora. Se você escreve com frequência, você adquire técnica. 

— Qual é a parte primordial, na sua opinião, em um livro de qualidade? A linguagem, o discurso, o enredo, a construção dos personagens, a mensagem, o tema, enfim, qual o elemento principal de um bom livro?

— Eu acho que é uma história bem contada. Acredito que seja isso que o leitor espera ao pegar um livro para ler. Emoção. Ele quer sentir raiva, amor; quer rir, quer sentir prazer com o texto.

A cadela que dormia sob a mangueira chega mancando, com uma aparência doentia, e se deita aos pés de Graciliano.

— Vai pra lá, Baleia. —  Ele a tange com o pé, com cuidado.

E aí o Velho Graça faz uma coisa rara: fala. O assunto é o fazer literário.

— Na escrita, coloca-se o que é essencial. O resto é lixo. A palavra não foi feita para enfeitar; a palavra foi feita para dizer.

— É impressionante sua capacidade de concisão, grande mestre. Seu estilo é enxuto, como se o texto tivesse sido batido e torcido muitas vezes. Mas, ainda assim, conseguimos absorvê-lo em sua completude. A linguagem precisa, um falar regional conduzido por alguém que tem total domínio sobre ele, sem cair na imitação grotesca da pronúncia sertaneja. Regionalismo no vocabulário, mas com competência de um mestre da norma culta — manifestei, sem muita objetividade, a minha admiração por aquele grandioso escritor.

— Se eu buscasse a palavra bonita, adornada, brilhante como ouro falso, teria me dedicado à poesia, e não à prosa — arrematou Graciliano.

— Cortemos os advérbios — brincou King.

— Cortemos os adjetivos e todas as palavras inúteis— complementou o autor de “Vidas Secas”.

Chega uma moça pequena, de feições delicadas, cabelos na altura dos ombros e presilhas nas laterais, vestido bege com rendas nas extremidades.

— Recebi esta carta de Capitu hoje. Ela passa por uma provação tão grande, só não maior que a minha. Acho que perdi as forças para lutar – disse ela, com a carta na mão e os braços caídos.

E aí chega Othon Bastos num rompante.

— Meia-volta, Madalena! Temos negócio.

Ela volta a entrar na casa com ares desiludidos. Falo para Graciliano:

— O senhor não pode salvá-la?

— Não, meu amigo. Madalena está perdida para a felicidade. Ela já nasceu morta, assim como essa cadela, como Julião Tavares e como tantos outros. Não há o que se fazer.

— São momentos penosos para o escritor — interveio Stephen King. — Nunca desejei o mal a Carrie White, a Johnny Smith, a John Coffey, a Georgie Denbrough, mas é ditadura do enredo. Como disse o senhor Graciliano, eles já nasceram mortos.

Quando olho na direção contrária, dou de cara com Carrie, a estranha, em seu vestido de baile, coberta de sangue de cima a baixo. Os cabelos empapados, o rosto tingido de um vermelho que adquirira um tom escuro à luz da lua. 

Eu estava agora fora da casa, numa roça de plantação de feijão. A noite estava de uma claridade azulada. Um dos confrades da ALVAR, que não reconheço, me diz:

— Muito bem, Jailson. O desafio desta vez é ir até o cemitério que existe a um quilômetro daqui, na beira do rio, encontrar a boneca Zakula e trazê-la para nós. Todos já cumpriram o desafio, só falta você.

Cemitério a essa hora? Deus me ajude! Mas se os outros foram, eu não posso deixar de realizar o desafio. Estou andando na areia branca do Rio Riachão, brinquei muito aqui quando era criança. Vejo as paredes encardidas e mofadas, já enegrecidas pela umidade, do cemitério e sinto um calafrio percorrer o corpo. Na entrada, vejo uma cruz acima da porta com um dos braços quebrados. A porta foi arrancada ou caiu e agora protege a entrada recostada ao batente superior pelo lado de dentro. Acima do vão de entrada há uma inscrição de cimento em alto relevo: 1900. Antiga esta construção. Pelo espaço que há entre a porta e a parede, entro. Os túmulos estão velhos e destruídos. Garranchos e mato cobrem todo o terreno. No primeiro túmulo, o nome que está na lápide é Juvêncio. Nossa, do Juvêncio! Próximo túmulo: Agnelo Dias de Sousa. Conheço o nome, mas não lembro de onde. Depois, num mais bonito e cuidado, há uma foto e um nome: Emília Marques Rosa. Uma coruja pia em algum lugar por ali. Nesse último túmulo, mais novo e bonito, havia outras gavetas. Levanto-me e, quando me viro para olhar o nome no túmulo ao lado... Uma menina de vestido branco rendado e de tranças, que nem as gêmeas ruivas, está em pé me encarando. Tomo um grande susto.

— Você é... Júlia Rosa? — gaguejo aterrorizado.

— Sim. O que o senhor procura no túmulo da minha mãe?

Na mão, segurando por um pé, ela tem uma boneca. A boneca que vim buscar. Zakula.

— Eu vim... é... pegar essa boneca, mas pensei que ela estivesse escondida. É só uma brincadeira.

— Eu não quero morrer! — gritou ela.

— Como assim? Você não vai morrer — disse para tranquilizá-la.

— Você não pode me matar. Eu não quero ficar aqui com os mortos. Eu quero voltar para o meu lugar.

— Ninguém vai prendê-la aqui. Também não vou levar sua boneca...

Mas enquanto eu falava, ela se aproxima e para à minha frente. Vejo seu semblante infantil, bochechudo. Acho que é noite de lua cheia, porque está claro. De repente, seu rosto começa a se enrugar e murchar. Em instantes, só havia pele sobre a face. Ela abre a boca para gritar e aquilo se transforma numa caverna escura. Então ela pula sobre mim para me abocanhar. Ainda, por segundos, vejo a escuridão do interior de um fantasma. Um pavor me atinge e grito:

— Nããããooooooo... Não! Anhhhhh... — Ouço um som de campainha em algum lugar...

— Triiiiiiimmmmmm...

 

∞ ∞ ∞

 

— ... Triiiiimmmmmmmmm.

— ...annnhhhhhhh!! Não, não!

— Acorda, Bento! Você teve um pesadelo. Acorda, homem! — gritou minha esposa, ao tempo que me sacudia.

— Nossa mãe! Que pesadelo! Estava num cemitério. Com uma menina que, depois, virava um fantasma... E ela abria uma boca enorme para me engolir...

— Foi só um sonho ruim.

Olho para o lado, o quarto à meia luz, e vejo uma mulher que não é a minha. Mas eu sei quem é ela. É Janete. Que diabos é isso, eu sou o Bento. Não, não!

— Que dia é hoje, mulher?

— Hoje é sábado, e não vá pensando que, porque vai receber o salário da semana, pode ficar gastando nos bares com os seus amigos. Hoje é o aniversário de Julinho, não é?

— Não, não pode ser. Eu não quero morrer. Não quero morrer, Janete. Hoje é o dia da minha morte. Eu não quero morrer... — Começo a gritar, desesperado. — Não quero morrer, Alessandra! Não! Não! — E tudo vai girando e se afunilando. As coisas do quarto, tudo que eu vejo vai ficando distante. Fico vendo tudo rodando num redemoinho; um vórtice que engole as imagens do quarto, enquanto vejo tudo do alto, e subindo...

— Não! Não! Annnhhhhh... Ehnnnnn... Nãããã...Uhhhhh...

Sinto um cutucão nas costelas. Abro os olhos e vejo um quarto, meu quarto. 

— Acorde! Acorde! Você está gemendo e gritando como se tivesse apavorado. Que pesadelo foi esse? — pergunta Alessandra, minha esposa.

— Um sonho longo. Era para ser só um encontro com o pessoal da ALVAR, mas depois mudou e apareceram uns escritores importantes e seus personagens. Alguns personagens criados por mim também participaram. Aí acordei em outro sonho, e neste eu era uma personagem, que ia morrer naquele dia. Graças a Deus foi só um sonho... ou dois. Acho que a matéria de que esses sonhos são feitos são as memórias, desejos e medos que carregamos no subconsciente. Misture tudo e você tem a narrativa de um sonho.

— Ok. Então, levante-se que é preciso ir comprar pão e leite — ordenou ela. Vamos lá, ao encontro da realidade.

 

 

 

 

 

i Algumas das falas do personagem Paulo Honório, do romance São Bernardo, e do próprio Graciliano Ramos, assim como de Stephen King, foram transcritas parcial ou integralmente de trabalhos publicados destes ou sobre os citados autores.  


HABEAS PORCUS INTERROMPIDO

Nonato Cipriano  

              Antes mesmo que a curva de incidência dos casos de COVID chegasse ao ápice, fui tomado de surpresa por sintomas e sinais que me levariam ao hospital. Tudo era desconhecido, tudo era apavorante, tudo era melindroso. O diagnóstico de COVID era quase uma sentença de morte. Então dirige-me até o hospital que eu trabalhava, para uma consulta no setor da emergência que fora isolado para esse tipo de atendimento e fui recebido por um amigo médico que me tratou amistosamente. Foi uma conversa tensa, carregada de dúvidas, incertezas...mas que, ao final da consulta, senti-me aliviado. O médico recomendou que me administrassem  uma hidratação venosa e depois estaria liberado para concluir o tratamento em casa. Entreguei a prescrição à Técnica de Enfermagem e esta pediu-me que a aguardasse numa poltrona, disse ela, apontando para um estofado de couro macio que se localizava numa área um pouco mais reservada. Ali costurei, descosturei e remoí meus pensamentos, enquanto a moça preparava minha medicação. Minhas mãos percorriam, em vão, os pequenos sulcos que serpenteavam a superfície do móvel, num vai e vem aleatório e sem  a cura dos meus sentidos. Vejam. Eu era um profissional da área de saúde, mas o desconhecimento daquela situação nova, enervada de medos e obscuridades, eram suficientes pra me sentir, na linha que se separava os vivos da morte.

           Envolto nesse nevoeiro, avistei a figura embaçada de Francisca, a técnica de enfermagem, que se tornava mais nítida, à medida que de mim se aproximava. Nas mãos, uma cuba de inox e dentro dela um frasco de soro, um jelco n° 20( dispositivo que se usa para puncionar uma veia) e algumas bolas de algodão embebidas em álcool à 70%. Ela pôs a cuba sobre uma mesinha auxiliar e fez um gesto pra que eu pusesse o meu braço direito sobre a braçadeira.

-   A senhora não acha melhor olhar as veias do braço esquerdo? Perguntei, com  voz submissa.

-   O senhor está com medo de levar uma injeção no braço! Disse-me, Francisca, uma senhora morena, de meia idade, quartos volumosos, panturrilha grossa e um olhar estranho, sobre a armação dos óculos que se escorregava até a ponta do nariz.

-   Não! Não! Não!... Foi só uma sugestão! Respondi rapidamente, tentando disfarçar o medo.

-   Então fique quieto, senão terei que furar seu braço mais de uma vez.

Aquelas palavras foram tranquilizadoras. Entreguei meu braço àquela senhora rechonchuda, enquanto meu corpo saia em busca de coragem. Ela garroteou meu braço ( com uma força de estivador ), esfregou as bolas de algodão em meu antebraço, desenhando um formato de disco e quando foi introduzindo o jelco na veia...

-   A senhora não pode enxugar esse álcool? Me falaram que dói menos!

-   É o que rapaz? Disse Francisca, introduzindo o dispositivo na minha veia, com dor e sem piedade.

-   Arre Égua! Respondi.

          Francisca conectou o equipo do soro ao jelco, levou a mão direita até o regulador de fluxo ( tipo pinça rolete) ajustando o gotejamento. 

          À medida que as gotas foram descendo, comecei a sentir um leve frio nas pontas dos dedos dos pés e das mãos. Aos poucos, o frio foi ascendendo em direção ao centro do meu corpo, de tal maneira, que parecia uma onda bem pequena que avançava sobre um manto de areia. Uma sensação irresistível de sono foi tomando conta de minha cabeça, ao passo que o frio se deslocava sobre meu peito. Quando a onda de frio que declinava da cabeça encontrou-se com a onda que vinha das penas e braços, bem no centro do tórax, tive a sensação de imergir num lago silencioso, com uma lâmina d'água lisa e profundo. Ouvi alguns zunidos e borbulhas que viajavam na contra mão do meu mergulho e à medida que eu descia em direção ao fundo do lago os sons foram desaparecendo e um silêncio sepulcral tomou conta daquelas profundezas. De repente, comecei enxergar uma pequena luz difusa que vinha em minha direção e tornando-se cada vez mais translúcida e agigantando-se, como se fosse um túnel em que chegara ao fim. Senti uma brisa mansa percorrer minhas têmporas e de segundo a segundo tornava-se mais intensa. O tempo foi ficando mais claro e mais visível... e senti um romper, como um grande estrondo. Então me dei conta de estar sentado sobre um banco de couro, com as mãos ao volante e que dirigia o carro dos meus sonhos juvenis: um Maverick-GT 3.0, motor V8, aspirado, de 318cv, de cor azul del rey, perolizado. Agora, parecia que estava no meu mundo real. Tão real que o sol ardente do mês de julho incomodava minhas retinas e me fez colocar meus óculos Ray Ban Aviator.

          Naquele instante, sentir a força do possante 1976. Depois que passei da cidade de Picos-PI, sentei o pé no acelerador e o carro respondeu, como um búfalo africano, rangendo os pneus sobre o manto negro da BR-230. Chamei pelo motor até ativar o segundo carburador e tive a melhor sensação de minha vida: o ponteiro do velocímetro encostou no pino limitador de velocidade. Eu estava a 160 km/h. A vegetação passava por mim como um relâmpago, as listras brancas da estrada pareciam uma única listra, contínua. Tinha a sensação de estar voando já que meu corpo e o carro era um só bloco. De repente,  avistei uma grande coluna de poeira que se levantava no acostamento, do lado direito da estrada, distante de mim meio quilômetro. Aliviei  pé e continuei atento, pra entender o que estava acontecendo. Pra minha surpresa, testemunhei um capotamento duplo, no carro que seguia à minha frente. Estacionei o Maverick bem próximo, saltei e fui correndo pra tentar salvar o possível sobrevivente daquele veículo. Ali, o condutor do veículo, que estava com as quatro rodas pro ar, desferia pontapés sobre a porta do carro, na tentativa de sair das ferragens. E antes que eu me agachasse para vê-lo, saiu rastejando pela abertura que fizera no vidro, do Opala de cor verde musgo. Pasmem. Era Raulzito. 

-   Onde eu estou brother? Perguntou Raulzito, ainda atordoado e dando socos na roupa pra retirar a poeira incrustada. 

-   Você está no Piauí, bicho!. Aqui é a BR-230 e estamos perto da cidade de Picos – respondi.

-   Pelas barbas do profeta...Disse Raul Seixas, passando os dedos entre os fios de sua longa e densa,  barba. 

-   Eu acho que estou sonhando! Você Aqui! Na minha frente!

-   E você, o que faz na vida?

-   Eu sou enfermeiro e estou indo para um encontro na minha segunda terra natal, Santo Antônio de Lisboa. Fica aqui próximo, menos de trinta quilômetros.

-   Enfermeiro? Nesse carrão porreta que eu nunca pude ter! Disse Raulzito, com uma risadinha maliciosa.  

-   Isso mesmo. E você o que faz nessas terras, tá perdido?

-   Cara, eu tava indo me encontrar com Belchior, em Sobral. Tô vindo de Petrolina e me disseram que pela  BR-020 eu  chegava mais rápido. Então um bode atravessou a estrada, eu joguei o carro para o acostamento e terminei perdendo o controle. Não deu outra: capotei.

-   Mas Belchior já morreu!

-   Oxente maínha! Será que essa pancada na cabeça me deixou maluco?

-   Raulzito, na minha época de faculdade eu era cover seu. E por incrível que pareça, também de  Belchior. As mulheres deliravam quando eu cantava Maluco Beleza.

-   Rapaz eu gostei de você! Você é um cabra porreta, arretado... até parece que é baiano! Mas o que eu queria agora, mesmo, era tumar uma cachaça daquelas de budega. Nessa cidade que você falou, Picos, tem budega? Se tiver rumbora tumar umas cachaças e comer uma buchada de bode. Faz tempo que eu num como.

-   Venha cá! Disse à Raulzito, acenando para o Maverick.

          Abri o porta malas do carro e mostrei, ao Raul Seixas, as quarenta garrafas de cachaça que estava levando para Santo Antônio de Lisboa. Ele deixou cair o queixo de tanto contentamento. Seus olhos cresceram, as pupilas dilataram e uma salivação constante escorreu-lhe pelos cantos da boca. 

-   Que coisa maluca! Pra onde você está levando isso, bicho? Perguntou Raul.

-   Eu estou indo para um encontro da ALVAR, uma academia de letras da qual faço parte. 

-   Rapaz isso é arretado demais! Eu posso te acompanhar nessa reunião?

-   Será um imenso prazer. Todos ficarão surpresos com sua chegada. Mas... E sua viagem pra Sobral? 

-   Minha viagem está no porta malas desse teu carro, brother. Vamos abrir logo uma, por favor. Eu sei que vai desinteirar, mas ninguém vai saber.

          Depois de recolher seus pertences no Opala, Raulzito caminhou em direção ao meu carro e seguimos para Santo Antônio de Lisboa.

          Quando chegamos na praça  do Mercado, Nilvon e Jailson me aguardavam. Fiz sinal com a seta e encostei. Nilvon olhou para o banco do carona e, descrente, disse:

-   Não!  Não pode ser! Ra...Raul?

-   Eu não tenho dúvidas, Nilvon. É Raul Seixas, em carne e osso. Agora, não me pergunte como Nonato trouxe ele aqui. 

          Eu desci do carro, abracei Nilvon e depois Jailson...

-   Rapaz a gente tava preocupado que você não chegava – disse Nilvon.

-   Isso mesmo, Nonato. Não sei se você está sabendo, hoje vamos pra São Julião. Vai ter uma pequena mudança na programação. Vamos fazer uma festa, na praça, até  o dia amanhecer. Geovane disse que o nome da festa vai ser Habeas Porcus. Não me pergunte o motivo – disse Jailson.

-   Pois rumbora, Brothers! Gritou Raulzito, no interior do  carro. 

          Entramos, todos, no carro, seguimos pela BR, no sentido de São Julião e não demorou muito, já estávamos na praça  da Matriz. Logo que descemos do carro dei um afetuoso abraço em Deolinda, depois Marli, Iara...E todos ficaram maravilhados e incrédulos com  presença viva de Raul Seixas. 

-   Eu tô gostando desse ribuliço! Se tivesse uma  banda pra me acompanhar eu ia virar essa cidade de cabeça pra baixo! Bradou Raulzito.

-   Pois se o problema for esse eu trago já uma pra cá. Eu quero é cegar se em meia hora eu não estou com uma banda montada e afinada, bem no miolo dessa praça! Disse Geovane, ajustando o chapéu de lampião, na cabeça.

-   Vá com calma Geovane, precisamos saber se o Padre nos permite ficar aqui. Nesses momentos é sempre bom lembrar aquela frase do nosso querido Cacio Leite: “É preciso manter a calma, mesmo que a situação seja crítica...” Ponderou, Marli.

-   Mas não vamos fazer nada de mais! Só vamos beber e dançar – interferiu Iara, enquanto pedia um autógrafo ao Raulzito.

-   Eu concordo com Iara. O que você  acha, Jailson? Perguntou Deolinda. 

-   Bom. O padre deixando ou não, vamos beber nossa cerveja. Outra coisa, não vamos deixar Nonato voltar com essa cachaça pra São Luís! Respondeu, Jailson.

-   Agora eu senti firmeza – completou, Rogério, gravando um vídeo para seu Instagram.  

-   Gente, eu queria que vocês entendesse que eu faço parte dessa paróquia e sou muito engajado na igreja. Não vai ser bom pra mim, que fico aqui. Pra quem vai embora, é muito fácil. Eu vou ficar numa situação constrangedora, com essa festa bem na porta da igreja, ainda mais com bebida alcoólica, banda e tudo mais. Todo meu respeito ao Raul Seixas, de quem sou muito fã, mas essa balbúrdia vai incomodar todo mundo. Nonato,  não me leve a mal, mas não precisava essa cachaça toda - disse Rômulo.

-   Rômulo, não se preocupe com a  cachaça, tenho certeza que Nonato, Iara e Raulzito, bebem ela antes do dia clarear – Disse Elvis, sorrindo .

          O clima ficou um pouco tenso e enquanto tentávamos chegar num consenso, ninguém se deu conta que a banda estava quase montada: tinha um baterista, um contrabaixista e um tocador de órgão. Raul pegou o microfone e antes que decidíssemos se iria ter festa ou não, soltou a voz roqueira, cantando Al Capone . 

-   Eu quero ver Nonato cantando no palco junto com Raul Seixas – Disse Deolinda, conversando com Marli.

-   Faz tempo que não o vejo! Respondeu Marli.

-   Olha ele ali, no banco da praça! E parece que está dormindo – apontou Jailson.

-   Coitado deve tá muito cansado da viagem. Vamos lá chamá-lo! – disse Deolinda.

-   Nonato! Nonato! Nonato... 

          Abri os olhos, ainda nevoados e aos poucos fui divagando a imagem daquela senhora forte,  panturrilhas grossas... era Francisca, a técnica de enfermagem, ao lado do médico, tentando me explicar que havia sido administrado uma solução de soro com Ketamina, por engano, em mim e que esta fora preparada para outro paciente. Despertei, depois segui o cami ho de casa, com a mente confusa. A impressão que eu tinha era de ter estado em alguma cidade do Piauí e com várias pessoas...festas...

          Melhor lembrar depois. Eu quero é  chegar em casa e dormir novamente. 


Baião no Riachão

Rômulo Rossy 

Idos de 2009. Meu sagrado café forte, sem açúcar, já estava sendo coado por minha avó, Edileusa, que, depois da benção, me interpelava:

-  Meu filho, já rezou hoje?

No que eu retrucava: 

-  Sim, vovó, os três Pai-nossos e as três Ave-Marias que a senhora sempre recomenda.

-  Hum, esquecido do jeito que é, tenho que ficar te lembrando. Quem não reza, o diabo atenta ainda mais. E não esqueça o sinal da cruz! 

-  Por falar em cruz, onde está a medalha do meu bisavô, que ele deixou como parte da herança a vovô que sempre fica na estante, e que, se não me engano, tem a inscrição em latim: "Iesus autem Dominus (Jesus é o Senhor)? 

-  Ah, vá saber de seu avô, acho que ele tirou pra limpar. 

Martinho Antônio Leal era meu bisavô. Nasceu na região de Belém do Piauí, em 1922, mas se encantou por Onezina Maria Bezerra, nascida em 1921, minha bisavó, e viera de lá para morar nos arrebaldes do Rio Riachão, da parte do meu avô materno, Davi Leal Bezerra. Este último, levantara-se para tomar o café, dissera que a medalha havja sido armazenada em outro lugar. Apesar do apreço que tinha pelo objeto, ele o fazia recordar de um episódio que, ao mesmo tempo que o trazia alegria o mergulhava, literalmente, numa melancolia mórbida. 

-  Vovô, o senhor poderia me explicar melhor a história dessa medalha, quem a trouxe, como ela parou em suas mãos? 

-  Ih, meu neto. É uma história tão longa, que você vai se cansar. Vá brincar, vá! 

-  Não, vovô, eu quero saber. Tenho todo tempo do mundo. 

-  Menino, te aquieta! 

-  Vô, a gente só se aquieta quando morre. Conte logo! - insisti até persuadi-lo a me contar. 

-  Pelos idos de 1980, já não me recordo a data, alguém muito especial para minha família, para seu bisavô, sua bisavó e seus tio-avós esteve na casa antiga da família. Ele tinha feito essa visita antes. Andou duas vezes aqui. A primeira, divagando mesmo; a segunda, porque disse que não morreria sem voltar ao Piauí. 

 

 

Me veio vários nomes à mente. Pensei que poderia ser um escritor, um político, mas, como minha família é muito ligada à música, logo fui tratando de entender que se tratava de um músico. 

-  Um músico, não, Rômulo. Um rei. O rei do baião esteve na casa velha (como se referia à residência dos genitores). Luiz Gonzaga do Nascimento, com sua voz forte, sua roupa colorida e seu chapéu de couro e gibão. 

-  Luiz Gonzaga aqui? 

-  Sim, o que é que tem? Ele nasceu bem aí no Exu, dizia que uma banda dele era do Pernambuco e a outra era do Ceará, e ainda que tinha uma prima no Piauí, por que ele não poderia ter se achegado aqui? Veio, e a cavalo. Era o mais fácil nessa época. Isso foi na década de 1960, ano que a "cheia" do Rio Grande (como se refere ao Riachão) estava alta.

-  Conte-me mais! 

Minha avó, do outro lado da mesa, murmurava: 

-  Só quem não tem o que fazer. 06h da manhã com leite pra tirar, planta pra aguar, e vocês conversando besteira do passado. Vão trabalhar! 

-  Espera, vovó. Eu quero saber da história agora. 

Meu avô, embora estivesse com pressa, foi transigente a minha quase súplica pela continuação do enredo. 

-  Nesse dia, em março de 1960, foi um susto. Pai estava botando o gado no curral quando avistou um cavalo diferente descendo a ladeira perto de casa. Pensou até que fosse um cangaceiro. Sorriu, mas foi se aproximando. O visitante tratava-se de Luiz Gonzaga do Nascimento que, sem timidez, foi logo bradando: 

-  Ô de casa?! Ou melhor: Louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo! 

Meu bisavô, que conhecia a história da música "Respeita Januário", replicara-lhe: 

-  Para sempre seja louvado! 

-  Adeus, meu senhor. Podia me arrumar um copinho d'água, daqueles tirado do fundo do pote, que chega faz "tibungo". Talvez num me conheça, mas sou Luiz, nome que minha mãe Sant'Anna me deu em homenagem à Santa Luzia; Gonzaga, o nome do padre que me batizou, e Nascimento, porque nasci no mês de Cristo - explicara com um sorriso largo. 

Meu bisavô sentiu as pernas tremer e o coração palpitar incontrolavelmente. Naquela região, era o maior fã de Luiz Gonzaga, e o acompanhava pelo rádio, religiosamente.  

-  Lhe conheço demais. Quer dizer, pelo rádio, Luiz. Como é que pode você me aparecer aqui, na minha casa? 

-  Ora, sou do sertão. Uma hora ou outra eu ia achar mais um lugar pra arranchar por uma noite. Aqui não tem rio perto? Me desculpe, sei que o amigo pode me receber bem e tudo, mas gosto muito de tomar banho de rio. 

-  Sim, Luiz. Se seguirmos aqui direto, nessa mesma estrada, chegamos ao Rio Grande.

O inverno esse ano foi bom. Tá cheio. 

Benza a Deus. Eita que esse nordeste me orgulha. E jumento, que é nosso irmão, tem muito por aqui? O jumento é bom, Martinho. O homem é mau. Helena não gosta muito que eu ande perguntando essas coisas, mas eu pergunto, a boca é minha. 

-  Tem demais, Luiz. Eu tenho dois. 

-  Faça assim: eu vou num, você vai noutro. Depois, eu entro em sua casa e conheço sua família. Tem esposa, filhos? 

-  Sim, esposa e sete filhos. 

Luiz Gonzaga se entristeceu por um momento. Devia ter se lembrado, por um momento, do filho Luiz Gonzaga do Nascimento Júnior, com quem tivera muitas tribulações, e de Odaleia dos Santos, com quem viveu um amor fervoroso. Mas, logo, como todo "cabra da peste", voltou a sorrir: 

-  Vumbora, Martinho, que já já anoitece. 

Os dois seguiram. Chegaram à margem do Rio Grande, e meu bisavô, mais temeroso, e que atravessava o rio a nado, perguntou a Luiz se ele não tinha comido nada que fizesse mal. 

-  Faz nada, meu velho. Um pedacinho de melancia só, numa casa antes da sua (a de Zefa, uma vizinha). 

-  Pois num aconselho você entrar agora. A água já tá fria. Não é bom misturar comida com banho. 

-  Quer saber, quando eu entrar, você entra. Cria coragem, homem! Eu tenho sangue de cangaceiro, passei nove anos no Exercício em Fortaleza, e apanhei de lavar com água sal de mainha, não vai ser agora que vou sofrer nada. 

-  Mas é complicado, enfim. 

Luiz, porfioso, se desafiou. Entrou no Rio, foi seguindo devagar. Queria atravessar até o outro lado, que já pertence a Pio IX. O meio do Rio é justamente a limítrofe. Gonzaga mergulhou, sentiu as águas do Riachão banharem não só seu corpo, mas seu talento inenarrável. À medida que nadava, gritava, de longe: 

-  Martinho, ainda vou escrever uma música pra esse rio. Se Zé Dantas ou Humberto Teixeira me ajudarem - riu descontroladamente. 

Àquela altura, meu bisavô já ia percebendo que Gonzaga estava mudando o semblante. Seus olhos, por um momento, reviraram. 

-  Luiz, Luiz, Luiz! - esbravejou meu bisavô, já desesperado. 

O Rei do Baião estava se afogando, e a possível causa era uma congestão. Só podia ser depois da melancia ingerida e o banho na sequência. Meu bisavô pensou nisso porque uma parente dele já havia morrido assim. 

-  Estou indo, Luiz! Espera! Respira! Se segura em algo! - recomendava, sem expectativa, meu bisavô. 

Nadando apressadamente, meu bisavô, desesperado, vira que Luiz, com o peso que tinha, iria dar-lhe um afã enorme até trazê-lo para o cais. Gonzaga não perdera a consciência, mas dizia estar sem força alguma. Estava conseguindo falar. 

Calma, Luiz, é possível que não tenha sido uma congestão, mas um mal-estar mesmo. Você tem problema de pressão? 

Com a voz embargada, Luiz "sirria" do ocorrido, e numa virada do rosto: 

-  Cumpade, problema eu sempre tive. Hoje o que eu tenho é sucesso (rindo). Mas num sou soberbo, Martinho. Obrigado por me salvar! Eu ainda volto aqui no Rio Grande, mas pra cantar. 

-  Você consegue levar o jumento? Seu cavalo tá esperando lá em casa. 

-  Deixa só eu respirar um pouco. Engoli um pouco d'água. Acho que fez foi bem. Eita que é abundança de água! Você sabe, amigo, que eu canto as aves, o sertão, os padres, os cangaceiros, a seca, o amor. Mas eu sei, no fundo, que o nordeste é muito mais que isso! O nordeste é a região de maior cultura deste país. Onde você encontra um Patativa do Assaré, um Ariano Suassuna, e eu? 

Meu bisavô sorriu, porque Gonzaga tinha acabado de dizer que não se assoberbava. 

-  Vumbora, Martinho, quero jantar. Sua mulher já deve ter feito uma comida das boas que só esse torrão tem.

Minha bisavó, naquela noite, tinha preparado, justamente, e coincidentemente, baião de dois, e um doce de leite “liso” para a sobremesa. Luiz Gonzaga quando entrou assustou, no bom sentido, a todos. Minha bisavó não acreditou. Quase desmaiara. 

-  Luiz Gonzaga em minha casa? Valei-me, minha Nossa Senhora! 

-  Mãe de todos nós, dona Onezina. Conversei com seu marido durante o caminho do Rio Grande pra cá: soube seu nome e dos filhos: Davi, Carmelita, Francisca (a menina que apanhou de um camaleão), Heriberto, Ranulfo, Elisabete e Vitalino Neto. 

-  Sim, estes mesmo, e nessa ordem. Meu Deus! Não tô acreditando nisso. 

Luiz virou o rosto, olhou para as crianças em fileira e sorriu. Depois de degustar da comida farta, tendo comido cinco pedaços de galinha (minha bisavó nunca foi de economizar em dar de comer), dormiu numa rede especial. Uma "rede real". Antes das 05h do outro dia, Gonzaga se levantou. 

-  Já é hora de ir, família. Como eu mesmo digo: "Saudade, o meu remédio é cantar" (rindo). Eu ainda volto a essas terras. Vou cantar nas margens do Rio Grande, vou trazer minha sanfona branca e cantar pra esses meninos quando já estiverem grandes. Eu tenho muitos compromissos, uns eu não quero cumprir, mas sabe como é essa agenda de artista. Mas eu sou Luiz, Luiz de Januário, como era chamado aos oito anos, e pra sempre serei Luiz! 

Com essas palavras e promessas, Gonzaga, já Rei do Baião, despediu-se da casa velha. Meus bisavós não acreditaram, em nenhum momento, que aquele ocorrido pudesse se repetir. 

-  Imagina, isso foi uma coisa do acaso. Nunca que Luiz Gonzaga volta a essas terras, quanto mais a um rio onde quase perdeu a vida - completou meu bisavô. 

-  E então, vovô, o que aconteceu depois? - perguntara eu, curioso com o desenvolvimento da história. 

A promessa foi cumprida. Curiosamente, em março de 1980, quando Luiz já pensava em se aposentar, ele veio à casa velha. Desta vez, não a cavalo, mas de carro. Ele e um motorista, que atendia pelo nome de Antônio, que cuidava de seus pertences em Exu. 

-  E como foi esse reencontro? 

-  Luiz trouxe a sanfona como prometeu. Eu, como você sabe, tinha me casado há oito anos. Sua mãe, inclusive, já era nascida. Carmelita, não; Francisca tinha casado; Heriberto, Ranulfo e Elisabete continuavam "coroas velhos", como diz o povo, e como estão até hoje, e Neto (Vitalino) só se casou em 1992. Foi um dia mágico na sala da casa. Ele começou com "Asa Branca"; depois cantou "Que nem jiló"; "Xote das Meninas", mas a minha preferida, e que até pedi que ele repetisse foi "Assum Preto".

 

Tudo em vorta é só beleza

Soll de abril e a mata em frô

Mas Assum Preto, cego dos óio

Num vendo a luz, aí, canta de dor

 

-  Essa música dele e do Humberto Teixeira é mesmo eterna, vovô. E ABC do Sertão, ele cantou? 

-  Ah, essa foi a pedido de Carmelita. Cantou e cantou ligeiro. Eita velho pra ter voz e talento na sanfona. Nunca vi um igual. Só ele mesmo e fim. 

-  E ao Rio Grande, ele teve coragem de voltar? 

-  Não só de voltar, mas de cantar. Lá, não podia ser diferente. Cantou "Riacho do Navio": 

 

Riacho do Navio

Corre pro Pajeú

O rio Pajeú vai despejar

No São Francisco

O rio São Francisco

Vai bater no meio do mar

O rio São Francisco

Vai bater no meio do mar

Ah, se eu fosse um peixe Ao contrário do rio

Nadava contra as águas

E nesse desafio

Saía lá do mar pro

Riacho do navio

Eu ia direitinho pro

Riacho do navio

Pra ver o meu brejinho

Fazer umas caçada

Ver as pegá de boi

Andar nas vaquejada

Dormir ao som do chocalho

E acordar com a passarada

Sem rádio e sem notícia

Das terra civilizada

Sem rádio e sem notícia

Das terra civilizada

 

-  Gonzaga explicou algo que eu nunca esqueci, Rômulo: mesmo sabendo que, em março de 1960, quando esteve lá em casa pela primeira vez, corria risco por conta de uma possível congestão, ele viu no Rio Grande o Riacho do Navio, e logo pensou na distância que queria, pelo menos por um momento, das "terra civilizada". Eu chorei de emoção quando ouvi isso dele. À beira do Riachão, o Rei do Baião chorou como um menino, dizendo: "Eu podia ter sido engolido por essas águas, mas não fui. Deus me deu outra chance. E eu, Martinho, lhe trouxe essa medalha: Iesus autem Dominus (Jesus é o Senhor). E repito: Louvado seja o nosso Senhor Jesus Cristo! No que foi respondido, em alta voz, por mim e os outros: "para sempre seja louvado". 

Luiz Gonzaga ainda voltou à velha casa e comentou sua aposentadoria: 

-  Não vai demorar muito. Eu quero voltar ao meu Exu, a minha terra, minha vida. Seu Januário e dona Sant'Anna, me esperam por lá, de outra forma, é claro. Mas estão no meu peito. Helena me espera muito. Gonzaguinha, graças a Deus, está me perdoando, e eu o perdoando também. Ele brincou de ser comunista, é diferente demais de mim, mas se teve uma coisa que temos em comum é o talento pra música. Daqui a alguns anos, talvez eu faça um show de encerramento na Rede Globo. 

Parecia que Gonzaga estava prevendo isso. O artista que se lançou definitivamente como o Rei do Baião no Brasil, despedira-se do público, oficialmente, em 1984.

Como a música estava em seu sangue, e o pendor na sanfona em seu coração, ainda teve a benção de xingar Elba Ramalho, apreciar o vestido de lindas bordas de Guadalupe, cantar com seu discípulo e sucessor Dominguinhos; admirar Sivuca, cantar com Gonzaguinha, Fagner; elogiar o "choro" brilhante da sanfona nas mãos de Oswaldinho e abrilhantar um palco com o essencial: sua luz inofuscável. 

Em junho de 1989, Luiz Gonzaga do Nascimento, o moço do cavalo, da medalha em latim, do diminuto afogamento no Rio Grande, fez sua passagem, num hospital do grande e excelso Recife. Por ironia do destino, Gonzaguinha e Helena partiram respectivamente, em 1991 e 1994. 

Meu bisavô ficou muito triste quando soube do passamento de Gonzaga e de membros da família. Todos os dias, tendo memorizado com afinco e amor, as visitas de Gonzaga ao seu lar, olhava para a medalha, se benzia e recordava o Rei do Baião. 

Quisera o tempo que meu bisavô fizesse a passagem. Chegado o dia do seu desencarne, em 05 de julho de 1999, por complicações do diabetes, eu já estava nessa dimensão.

Como um espírito, eu acompanhei todos esses acontecimentos e somente confirmei com meu avô aquilo que eu já soubera, por permissão do Alto. Meu nascimento seria no mês de Cristo, mas soube, ainda no Plano em que estava, que só me encarnaria em 18 de janeiro de 1999, depois de mais de quarenta semanas de gestação da minha mãe. 

Hoje, ao recordar essa história, penso no velho Gonzaga, quando, nos fins de tarde, em sua casa no Exu, avistando a Asa Branca a qual superestimava, e eu, em espírito, o via balbuciar sem a sanfona, a letra de "Terra, vida e esperança", escrita por Jurandy da Feira: 

Estou no cansaço da vida

Estou no descanso da fé

Estou em guerra com a fome

Na mesa, fio e mulher

Ser sertanejo, senhor

É fazer do fraco forte

Carregar azar ou sorte

Comparar vida com morte É nascer nesse sertão

A batalha está acabando Já vejo relampear

Abro o curral da miséria

E deixo a fome passar

O que eu sinto, meu senhor

Não me queixo de ninguém

O que falta aqui é chuva

Mas eu sei que um dia vem

Vai ter tudo de fartura

Prá quem teve, hoje que não tem

 

Euclides da Cunha, feliz em seu comentário de que, "o sertanejo é, antes de tudo, um forte", foi complementado por Luiz que queria ver aberto o curral da miséria para que fome passasse, e que, de Deus, viesse chuva e esperança - o que os nordestinos nunca perdem. 

Meu avô trouxe, num ímpeto, a medalha que se cristalizou em sua estante. Hoje, quando a vejo, penso em Deus e no velho "Lua" dizendo que "vai ter tudo de fartura, pra quem teve e hoje não tem". Eu revejo. Certamente, Luiz sabe disso. Eu estava lá. Eu estive lá. Eu estou lá. E o riacho segue seu curso, como a minha vida neste plano até meu desencarne. 


Oba!

Iara Marina 

Ahh os anos 80.... Em todo o mundo, quantas histórias carregam esses anos. Vou contar uma delas – se é que me posso colocar nesse lugar de narradora  ̶ , nada importante para os livros, nada importante para o futuro, mas para mim tão importante quanto qualquer outra, pois se a tudo observo, tudo me é precioso. A história se passa no ano de 1984, verão de Setembro, precisamente dia 14. Interior do Piauí. Aqui nesse cantinho do mundo eu faço  ̶   e hoje mais pois estou Cheia  ̶  presença melhor do que nas grandes cidades que pouco me carecem, pois gozam de certos avanços tecnológicos. Neste "quase um traço no mapa do Brasil"¹, ainda fica comigo o papel de guiar os jovens por entre as ruas escuras quando saem das festas. Sim, festa. É sobre uma festa que quero contar. Deixe-me recuperar o foco e me perdoe logo de agora por não ser uma boa contadora de histórias.   

 

É noite de sexta feira. O bar/clube pequeno que carrega o título dessa obra está cheio como de costume. As paredes abafadas e a luz baixa dão a festa um ar de intimidade. Os jovens gostam, pois se sentem em casa  ̶  no pequeno til do ABC todo mundo possui essa caraterística de ser meio ou íntimo até de mais  ̶  e brindam, dançam, embriagam-se. Ela também faz tudo isso, especialmente dançar. Ouço vozes em todas as esquinas por onde lanço meu olhar prateado de que ela é uma das moças que melhor dançam por aqui. Os rapazes eufóricos se revezam por sua mão. Ela é simpática e dança com todos, até com os desengonçados que pisam nos seus pés. Todos aguardam ansiosamente que toque o grande sucesso da década para saber com quem ela irá dançar. Começa Menina Veneno e ela, enquanto aprecia sua cuba libre, mira para o seu melhor amigo que entende que “essa música é nossa”. Dançam e ele lhe fala de uma prima distante que chegará na cidade na manhã seguinte e que gostaria de apresentá-la. Ela gosta da ideia e sugere que, após a música, eles convidem a turma de amigos e façam um piquenique na beira do Rio durante a tarde. Todos se alegram com a nova farra marcada e combinam o que cada qual irá levar para comer e, principalmente, beber.

 

Fim de festa no Oba. Seu amigo a deixa em casa e no Silêncio do Seu Quarto, a jovem de cabelos encaracolados dorme ansiosa para a nova amizade que a espera na areia branca do Riachão.

Fiquei sabendo por meio do colega  ̶  que marca presença também por essas bandas; humanos dizem que “até de mais” – que a tarde daqueles jovens fora divertidíssima. Sentados sob um pé de Jenipapeiro, estenderam suas toalhas e puseram os comes e bebes em cima. A menina-moça encaracolada foi apresentada a outra jovem de cabelos lisos e curtos que estava de passagem. Se gostaram de cara. A segunda portava um violão e logo que começou a dedilhar, os jovens pegaram seus copos e prepararam seus pedidos musicais. Antes de atendê-los, ela perguntou se poderia começar com uma música que acabara de compor. Todos aceitaram e puseram suas doses.

 

Só vou te contar um segredo

Não nada

Nada de mal nos alcança

Pois tendo você meu brinquedo

Nada machuca, nem cansa

Os jovens ficaram encantados com a canção até então desconhecida e extasiados com aquele timbre doce, sereno ao mesmo tempo que potente. Sua presença preenchia o ambiente. Todos a aplaudiram. O rio descia manso para apreciar as vozes alegres que aprendiam rápido a canção e repetiam o refrão “É lá, que eu vou estar/Amor esperto/Tão bom te amar”. A primeira cachaça durou exatos 58 minutos. Bom que haviam quatro outras aguardando.

O que que há com nós

O que que há com nós dois, amor?

Me responda depois

Me diz por onde você me prende

Por onde foge

E o que pretende de mim 

“Que gata!” Pensavam os rapazes sobre a moça que cantava e encantava. “Que talento!” Pensava sua nova amiga. O sol acabou por me confessar que antes de se despedir no horizonte avistou toalhas bagunçadas, garrafas vazias e sete corpos seminus e nada sóbrios correndo em direção ao rio.

Acho que poderia encerrar por aqui a história.

Não, não, melhor fazer um acréscimo.

16 de junho de 1994, passeio Crescente por entre os becos e telhados e ouço alguns sussurros nas calçadas sobre o nome da criança que daqui a pouco nascerá no pequeno torrão. Qual será ele? Fazem apostas. Todos querem saber como se chamará o caçula ou a caçula da mamãe de cabelos encaracolados.

Entro pela brecha de seu quarto e a pego se admirando no espelho. Também quero saber. Me recordo ainda daquela noite em que a peguei dançando com todos os rapazes da festa, como estava bonita vestindo sua saia de bolinhas e blusa cor de carmim. A garota de antes que agora já mulher e mãe se dirige a janela e olha para mim, noto no seu rosto a pura lembrança daquela sexta de 84 e da tarde de sábado junto a seus amigos na beira do rio. 

Sim, ela escolheu!

Se for menino será Ícaro Mateus, mas se for menina, em seu pensamento:

"Vai se chamar Iara Marina. Iara, pois é a beleza das águas do nosso rio e Marina, pois tal como aquela cantora, esta também será minha nova e amada amiga".

Cinco dias depois e... Oba! Oba! É uma menina!

E assim me despeço. Até a próxima, humanos!   


DEVANEIO

Romanilta Rocha

​Chico Miguel voltava ao torrão natal, a sua eterna Jenipapeiro, lugar amado e tão intimamente conhecido, pois as mais tenras memórias da sua meninice ainda teimavam em brincar sob suas retinas, mas, olhando a paisagem vazia, uma angústia o sufocava por lhe preencher a alma de tantas dúvidas: “Por que tudo estava tão ermo?”  “ Onde estavam seus confrades da ALVAR àquele momento?”

​Era 16 de junho de 2021, conforme o que propusera a sua família,  não sem muita insistência, concordara em receber os amigos da ALVAR para celebrar os seus 88 anos, na “Serra dos Mouras”, um bucólico paraíso fincado nas proximidades da sede da sua  amada Francisco Santos .

Não que lhe fosse um fardo receber tão caros amigos, entretanto o jeito retraído e de poucas conversas sempre o acompanhou. Chico Miguel tinha predileção mesmo era para “coloquiar” com as letras; seus poemas e romances ecoavam com eloquência o que por muitas vezes as palavras emudeciam. No entanto, Dona Mécia Moura, sua companheira da vida toda, tanto admoestou com firmeza e brandura seu amado, que fê-lo aceitar que completar aquela idade é uma dádiva a ser compartilhada com os que realmente lhes são caros: a família e os amigos. Desta feita, lá estava o grande escritor francisco-santense, com a ansiedade tão característica aos bons anfitriões.

Por um lapso de tempo, Chico fitou o olhar no pequeno orvalho que ainda gotejava a folha virgem, no verdejante capim solto à brisa e nas águas apressadas do Riachão, que descia o monte, porém até onde a vista alcançava nem um resquício dos convidados e isto mais contribuía para aguçar as suas interrogações: “O que fora feito das pessoas convidadas?” “Por que nem o poeta Rogério Santos, Iara Marina,  Joaquim Neto e Geovane Leal, que praticamente moravam colados à Serra dos Mouras, não davam o ar da graça?

     De súbito, o poeta se detém com mais acuidade ao seu entorno e percebe pelo silêncio ensurdecedor que algo ao derredor se fazia diferente e fica a se questionar: “O que fora feito dos viventes dali?” “Por que nem um cordeiro pastava naquele imensurável campo?” “Por que nem um eco das canções juvenis ecoava junto às águas do Riachão, que agora seus olhos contemplavam?”

  A imaginação do aniversariante vagueia e rememora que já fazia um tempo incontável, quando uma seca tenebrosa, daquelas que expõem ao pânico mesmo o que está mais recôndito em nossas almas, o extraíra dali, fazendo-o ver que a terra estava árida e infecunda; o sol abrasador mais tardava a abraçar o poente... A agonia de mirrados e parcos rebanhos junto à força de uma gente bravia que teimava em manter-se de pé foram, também, imagens que se impregnaram nele.                    Porém, agora, quando se parecia ter soprado o hálito da vida, o bálsamo da sobrevivência em cada recanto daquele lugar, tudo se fazia tão deserto. Ele  não compreendia... Já estava quase em pane.

Eis que o burburinho que vinha da velha e conservada casa, precisamente da ampla cozinha, onde as mulheres e os homens cuidavam dos últimos detalhes do farto almoço que seria servido, começava o alertar e, num misto de um delírio real ou, quem sabe, de uma realidade onírica, subitamente um facho de luz o desperta e confortavelmente deitado numa rede daquelas que acarinham até a alma da pessoa, ele entende que apenas sonhava. E Chico Miguel vê que ao contrário do que pregava seu devaneio não foi desta vez que a cruel estiagem, que assolou e oxalá demore vir, extinguiu os bravos seres do sertão do seu querido Piauí. Ele apenas sonhava.

Lá fora, acabavam de chegar, de diversas localizações, os tão estimados e seletos amigos. Da aprazível SAL, Nilvon e sua linda Márcia foram os primeiros. De Teresina , Romanilta Júlia e Firmina  Arrais já haviam chegado. Após, chegaram Nonato e família da Atenas Brasileira. Os Klein vindos da Terra da Garoa foram os seguintes e da Cidade Maravilhosa o grande Elves França veio exclusivamente prestigiar tão grande evento. Da capital federal vieram especialmente  para a ocasião Gilson Chagas e João  Erismá. Mais tarde um pouco, advindos de Alagoinhas, D. Fidélia, Eva Graça , Regivalda,  e o poeta Samuel; Santinha chegava de sua amada Monsenhor Hipólito; Deolinda veio lá da Lagoa Grande e Raimundinha, Rômulo Rossy, junto ao escritor Francisco de Assis, rumaram da linda São Julião e compunham a primeira leva de convidados que alegrariam a tarde. Àquela altura, acomodados sob os arejados alpendres, Geovane Leal e o poeta Rogério já digladiavam com rimas e versos. Era a vez do poeta Rogério que extasiava a alma do aniversariante ao lançar:

 

Eu não digo por vaidade

Falsa modéstia ou coisa afim

Mas, sob este céu, não há para mim

Sinônimo de maior intelectualidade

​No verso, na prosa e na inventividade

​Que o excelso Chico Miguel de Moura

​Brilhante feito este sol que a terra doura

​Assim, é algo inexprimível

​Dizer o quanto é incrível

​E pródiga a sua literária lavoura.

 

​Mal o grande Chico Miguel sorvera as últimas palavras da estrofe de Rogério, eis que seu filho Fritz, em Teresina, toca-lhe suavemente o braço e diz:

   ​- Papai! Papai! Acorda! Já são 17 horas, vou levar o senhor para sua casa, pois logo mais vai começar a live do Sarau da ALVAR em homenagem à sua data natalícia.

​Despertando daquele devaneio tão nitidamente impregnado na sua memória recente, Chico Miguel sorrateiramente dispara:

   ​- Eu quero é chegar em casa e dormir novamente até a hora do Sarau. Quem sabe não tenha o capítulo seguinte da minha festa lá para as bandas da “Serra dos Mouras”?! - exclamou interrogando a Fritz que nada compreendeu.

​Enfim, o poeta estava no seu quarto. Era tardinha, antes de entrar, lá fora, de relance pôde observar os matizes de um crepúsculo que parecia a paleta de um pintor, ora melancólico com seus tons lilases, ora pleno de alegria com as cores alaranjadas a preencher cada pedacinho de céu. Mas pouco se deu conta do ocaso e resolveu cair novamente sob os domínios de Orfeu, pelo menos até a hora do sarau.

​E não é que o capítulo dois do seu sonho se descortinava! Agora ele tinha consciência, mesmo em estado de sono, que voltava ao sonho que tivera antes do despertar de Fritz. Senão como explicar a paisagem da conhecida “Serra dos Mouras'' que se configurava aos seus olhos, o jardim repleto de onze horas que era um dos tesouros de D. Mécia? Estava contemplativo no deleite deste jardim, quando mais uma vez, Fritz lhe chama:

--Desperta, papai! O sarau já começou, veja que linda homenagem os caríssimos confrades alvarianos estão prestando ao senhor!

   ​Uma voz que lhe era familiar e cujas feições também já tinha visto, uma vez que tinha se deparado com aquele timbre e com aquela imagem em outras lives da ALVAR, recitava os seguintes versos do magnânimo poeta do Jenipapeiro:

 

Quem é você?

EU?

Não me perguntem quem sou.

Fui…  Não vou descer.

Nem voltarei

a um mundo que rui

por trás de algumas fábulas,

rainhas, princesas, santos, reis

e paredes.

Acreditar me dói,

tudo está para os outros.

Sim, os que viveram

as mesmas ficções mortais,

as mesmas ilusões fatais.

Me vejo no alheio espelho,

como se contra-face:

O rótulo que calçam,

a etiqueta que vestem,

o vinho que entornam,

a cerveja que arrotam,

o mercado, a propaganda,

a arte não-barroca, oca,

os gritos da tevê

onde ninguém me vê.

Não! Nada sou para os sepulcros

negros da noite.

Só, comigo estou.

Sou luzeiro na escuridão,

ninguém me vê. Nem ouve.

 

(Francisco Miguel de Moura)

 

Era Raimunda Leonilia, uma singela admiradora do nobre Chico Miguel, que comunicava aos demais colegas da Academia que estava oficialmente aberto o Sarau em homenagem ao ilustre aniversariante, o grande mestre Francisco Miguel de Moura. E foi uma linda e emocionante noite de afetos e alegrias, ainda que virtualmente.