Desafio: Anônimo

ANÔNIMO

Jailson Klein

 

Capítulo 1

 

O ônibus parou em frente ao hotel que ficava a 300 metros da entrada da cidade, um dos poucos que havia por ali. Do veículo, desceu um homem de longos cabelos cacheados e barba grisalha, aparentando, na análise do motorista, ter entre 35 e 40 anos. Ele carregava uma única mala, enorme. Agradeceu ao motorista a indicação da pousada e se dirigiu à portaria, um pouco distante da pista. No térreo funcionava um restaurante; os quartos ficavam no 1º andar. Um rapaz muito gordo que atendia aos raros clientes presentes prontamente foi atendê-lo.

— Pois não, amigo! Em que posso ajudá-lo?

— Eu queria um quarto.

— Opa! Temos os melhores quartos da cidade, talvez os únicos — falou prontamente, seguido de uma gostosa risada.

O forasteiro ficou imaginando se aquele rapaz o reconheceria. Fazia tanto tempo. Impossível, além do tempo, talvez aquele moço gordinho não passasse de uma criança quando ele foi obrigado a fugir da cidade, como se fosse um bandido.

Não houve preenchimento de ficha ou pedido de documentos; ali tudo era na confiança comum em cidades pequenas. Todos se tratavam como conhecidos, mesmo os que não eram.

— Vou botar o senhor no quarto 3. TV a cabo, ar-condicionado. Uma beleza! Pretende ficar só esta noite, pernoitar? — perguntou o atendente.

— Acho que mais tempo — disse o estranho, sem muitas explicações.

Mais tarde, após um banho refrescante, o homem olhava as luzes das poucas casas do outro lado da pista e, mais distante, as do início da cidade. Pensou em todo o tempo que fazia que saíra dali. Nada era como antes. Tudo se transformara, se acabara ou se iniciara sem que ele presenciasse. Muitas das pessoas que conhecia deviam estar de cabelos brancos ou deitadas sob a terra. Na verdade, sabia exatamente há quanto tempo saíra daquela cidade: fazia 20 anos. Durante essas duas décadas, andara por quase todo o país. Visitara a Amazônia e por lá trabalhara em garimpos muitos anos; vivera no Centro-Oeste, em grandes fazendas, trabalhando na agropecuária e outros serviços menos honestos; fora às grandes metrópoles do Sudeste, onde sofrera muito e se entregara aos prazeres da vida. E em todos esses lugares acumulara muito dinheiro. Dinheiro que necessitava para concluir uma questão inacabada que ficara adormecida, mas nunca morrera. Havia arestas a serem aparadas; pontas soltas que necessitavam de amarras; pesadelos cruéis que teriam de ser expulsos de noites tenebrosas.

Olhando para as luzes e o vasto horizonte iluminado pela enorme lua, ele, da janela da pousada, recordava-se — com uma forte dor no peito que, em todos os anos em que viajou por lugares estranhos, sozinho ou acompanhado, nunca passou —, daquele querido lugarejo onde nascera, crescera e que fora obrigado pelas circunstâncias a abandonar. Onde estaria sua família, seus amigos e... Isaura, sua noiva?

Acendeu um cigarro e ficou repassando o plano que construíra ao longo dos últimos anos. Pensava em seus pais, que estariam velhos, se é que já não falecidos há muito, na sua noiva... em que situação estaria ela? Casada? Com filhos? Netos? Divorciada? E os culpados? Será que ainda viveriam naquele vilarejo para que pudesse se vingar por tudo o que perdera na vida? Porque eles pagariam por cada um dos 20 anos que passara distante de sua terra e daqueles que amava!

— Amanhã os acertos começarão... e serão muitos... e serão duros — sussurrou para a fumaça que soprava em direção à lua cheia.

 

 

Capítulo 2

 

Rômulo Rossy Leal Carvalho

 

Antes que, decúbito, pudesse viajar em mais um de seus sonhos tenebrosos e sedentos de uma explicação por tudo que vivera há vinte anos, acendia mais um cigarro, na cama. Fitando o olhar, de forma sorumbática, para a mala que trazia, sentia em seu coração uma dor infrene, de quem sofrera e não pôde se explicar.

- Eu sei que um dia irão entender o que aconteceu! Nem que eu tenha que passar o resto dos meus dias tentando explicar isso – sussurrava em seu peito.

Na mala, uma abertura, uma fotografia. Isaura, de cabelos negros, longos, com um olhar doce, sincero e sutilmente sedutor. Um descontentamento imperava em seu coração.

- Por que, Isaura? Por quê? – reclamava. — Por que você não acreditou em mim? – E ainda vislumbrando a fotografia amarelada: – Você já deve estar distante de mim, longe dos lagos aonde a gente ia, em que vivemos nossa juventude, em que fomos um do outro. Maldita a hora em que Celso entrou em nossas vidas.

Devolvera, violentamente, a foto à mala. Trêmulo, caminhava pelo corredor do 1° andar do hotel. Uma sensação estranha o envolvia. Por vinte anos, tendo vivido em vários lugares, presenciado várias cenas, em tantas metrópoles do país, na Amazônia, no Centro-Oeste, e tendo se entregado a vis propósitos, esquecera da singeleza que havia vivido.

O corredor ganhara uma nova forma diante de seus olhos. Uma dor o fez cair. Seus olhos, revirando, viam uma imagem terrível: pareciam duas chamas férvidas – e eram – vindo em sua direção.

- Não, não pode ser.

Alguém entre as chamas parecia vir em sua direção.

- É só mais um pesadelo. Eu não fiz o que me acusam. Eu explico isso há vinte anos. Eu preciso da minha de volta. Eu preciso reviver! – vociferava fortemente.

Ninguém no hotel o escutava. Parecia que ali, naquele instante, só ele e um espírito estavam no recinto.

- Quem é você? Se mostre, covarde! Imbecil! Seja homem?

Uma voz estranha sussurrava atrás dele, causando-lhe um terror incontido. Celeremente, galgou passos pelo melhor hotel da cidade e chegou à sacada.

- Você já se foi há muito tempo. Só você não percebeu. Acredite! – dizia a voz estranha e desconhecida.

- É você, Celso, não é? Você que está aqui pra me atormentar? Pra acabar com a minha vida como fez há vinte anos? Fala, desgraçado! E Isaura? O que aconteceu a ela? Me fala! Me fala! – despertava.

Havia cochilado. Respirava aliviado.

- Foi só mais um sonho.

Foi até o rapaz gordo, cujo nome nem sequer lembrara mais e nem pedira pra saber, para pedir uma xícara de chá de cidreira. Ele sabia que naquelas terras onde vivera havia abundância da erva.

- Sim, ainda temos cidreira demais, moço! Principalmente, nas plantações da família de uma senhora que trabalha conosco por aqui... Aliás, que traz as folhas pra gente. O nome dela é Isaura.

- Isaura? – mudou o semblante.

- Sim, Isaura da Silva. Parece até aquela moça da novela, que era escrava, mas era branca.

- E como ela está hoje? Casada?

- Oxe, moço, o senhor conhece Isaura? Porque pra perguntar isso... Me desculpe, mas...

- Não, me desculpe. Eu me excedi.

- Excedi? O senhor fala umas palavras difíceis.

- Diga-me só uma coisa: onde fica a casa de Isaura?

- Veja, moço, a vida de Isaura é muito complicada. Eu teria que passar o dia inteiro contando pro senhor. Depois do que aconteceu... – parava, e respirando – enfim, ela adoeceu.

- E o que aconteceu?

- Um crime.

- Como assim, crime? Que tipo de crime?

- Eu não devia comentar isso, porque foi coisa de família, sabe? Isaura era apaixonada por um rapaz, de pouca condição, sabe? Meio metido a valente. A pobrezinha gostava tanto, mas tanto dele. Mas isso quem me contou foi minha mãe, Teresa, né? Eu era bem pequeno. Se eu visse esse rapaz hoje, eu não o reconheceria.

- E o que ele fez? Quer dizer, o que a cidade diz que ele fez?

- Peraí, moço, a cidade não fala, né? São as pessoas da cidade.

- Isso eu sei, mas é um modo de falar.

A conversa parecia que iria durar a noite inteira, quando, ébrio, entrava no hotel um homem de aparentemente 45 anos, que atendia pelo nome de Edenílson.

- Edenílson? – gritava, mentalmente, o anônimo.

- De novo, Edenílson? – falava o gordinho – não é possível que você já “teja” bêbado de novo. Você não aprende, hein? Vai morrer de cirrose e é cedo!

- Vai ficar jogando praga, agora, gordo safado!

- Olha o respeito ou eu te enxoto daqui. Nós temos classe!

- Desde quando essa cidade foi lugar de classe? Lembra da injustiça que aconteceu aqui há vinte anos?

O anônimo, de espreita, observava a cena, quieto. Para provar o que havia, realmente, acontecido há vinte anos, tinha que reunir algumas provas e testemunhas também. Continuava a ouvir:

- O meu amigo, ele foi injustiçado. Isso eu posso provar. Eu vi tudo!

- Viu o que, Edenílson? Você já nasceu na cachaça? Você acha que vão duvidar do Sr. Pereira e vão acreditar num cachaceiro que nem você? Faça favor!

- Meu filho, “bebo” é abençoado! Você não conhece a história do jumento que carregou Jesus?

- Que história é essa?

- Jesus, pequeno, ia no jumentinho e o pobre animal atolou. Veio um homem e não ajudou. Vieram dois “bebos” e ajudaram. Eles abençoaram, minha Nossa Senhora, e disse que nunca ia faltar uma moedinha pro “bebo”. E olhe se isso não é verdade?

- Isso tá mais pra uma história pra boi dormir!

- Boi, vaca, jumento, num importa. Eu só sei que você já viu faltar dinheiro pra “bebo”?

Naquele instante, Edenílson, tonto, prestes a cair, e sendo reclamado pelo atendente, voltava o olhar para o anônimo e reclinara os olhos:

- Quem é esse homem?

- Eu... – titubeava na fala.

- Eu num lhe conheço, moço? Você não é estranho!

- Eu posso falar com o senhor, seu Edenílson?

- Olha, poder até que pode, mas num sei é se esse gordo chato aqui vai deixar.

- Olha o preconceito, seu Edenílson. Eu já disse que boto o senhor daqui pra fora.

- Por favor, deixe que ele converse comigo! Por favor, só um pouco!

- Tá bom, o senhor é cliente vip. Só por isso! Mas depois, Edenílson, faça o favor de sair daqui!

Numa mesa, à parte, Edenílson, praticamente se arrastando e sem conseguir erguer direito a cabeça, começara a dialogar.

- O senhor me disse que aconteceu uma injustiça há vinte anos aqui na cidade. O que foi exatamente?

- Primeiro, moço, que senhor tá no céu, viu? Eu sou só Edenílson, só.

- Me desculpe.

- Foi, eu não gosto muito de falar disso, porque não acreditam em mim. A polícia daqui nunca me ouviu. Só ouvem o Sr. Pereira, e pronto.

Àquela altura, à memória do homem de cabelos cacheados e barba grisalha veio a imagem, como um flashback, de um dia tumultuado no seu passado que mudara sua vida de forma definitiva.

- Seu moço, seu moço? Ô, seu moço? – insistia Edenílson.

Voltando do flashback, o homem da barba grisalha pedia perdão, enquanto Edenílson continuava:

- O senhor nem parecia que tava aqui.

- Me diga uma coisa antes: o Sr. Pereira ainda vive?

- Não, ainda bem que morreu. Deus me perdoe! Mas aquilo ali devia de ter o corpo fechado, coberto e protegido por São Cipriano, como ele dizia. Era um falastrão. Todo mundo aqui na cidade tinha medo dele. Dizia até que foi amigo de Virgulino. Tudo mentira.

- E Isaura? O senhor a conhece?

Uma lágrima caíra do olhar tétrico do bêbado. 

- Sim, mas não gosto de falar sobre ela. Ela foi uma das grandes prejudicadas pelo que aconteceu aqui...

- Mas o que aconteceu? O que dizem?

- Eu vou lhe contar desde o início, porque o injustiçado era muito meu amigo. Ele foi embora daqui, sabe? Há vinte anos, ele sumiu no mundo por causa daquele maldito do Sr. Pereira. Mas meu amigo não foi culpado, foi uma armação. Eu juro!

- Jura o quê? Me diga!

- Ele... – falhava a voz... – ele...

Naquele instante, Edenílson começava a infartar.

- Por favor, moço, Edenílson está passando mal. Corra aqui, rápido!

Nas suas últimas palavras, Edenílson insistia:

- Ele era inocente... O meu amigo...

- Sou eu, Edenílson. Sou eu!

- Eu não vou resistir!

E fechando os olhos para encarar a eternidade, com uma tosse fatal:

- Eu sabia que era você... – ofegando – prove que eu estou certo!

Suspirava pela última vez, enquanto o amigo, abraçando-o, em soluços, vozeava:

- Nãoooooooo!...

Ocluindo-lhe os olhos com as mãos, tinha que seguir para elucidar sua própria história.

- Vá em paz, Edenílson! Obrigado, amigo!

 


 

Capítulo 3

 

Elves França

 

“De amor e de sombra”. A memória de um de seus livros do exílio sufocou a vontade de engolir as últimas três garfadas de baião com carne seca. De resto, as duas primeiras lhe haviam descido com gosto de náusea, porque na garganta também estava a lembrança do olhar final de Edenílson. De amor e de sombra. No livro, ele tinha visto que a jovem burguesa enfrentava o desafio da relação com o rapaz sem posses. E era Isaura quem lhe vinha à mente nessas horas, a menina rica com quem não pôde completar o romance.

Tentava não fazer círculos no ar com a fumaça do cigarro, como se evitasse dar voltas no próprio destino. Vez ou outra, pequenos murros na parede indicavam uma inquietação que não se permitia mais ficar detida. Sentou-se à mesinha do quarto e começou a rabiscar. Não o que seria o roteiro de seu próprio romance, mas um quadro esquemático, com muitos nomes e setas. Celso, Pereira, Isaura conectados por traços secos que a nada levavam. Refazia tudo. O esquema não tinha coerência. Era preciso encontrar as correlações. E se fosse até a fazenda de Isaura? Chegaria em vida até lá? E se nas rugas dela houvesse a marca de uma espera de vinte anos?

Amassou em dúzias de bolas os pedaços de papel rasgados com ódio, lançando-os com força na lixeira e deliberou a si mesmo. Daria voltas de carro pelas ruas. Nem que isso lhe custasse a decepção de não reconhecer mais nada naquela cidade que ele pretendia imutável. Chamou o táxi de vidros escuros como os óculos que encobriam os olhos já umedecidos. Pediu ao chofer um destino circular.

– Apenas circule, amigo! Quando der, a gente volta.

A cidade estava de fato a mesma, afora os torrões que caíram da fachada da igreja e o calçamento da rua, agora convertido em ilhas de asfalto entre buracos lamacentos. As pessoas na calçada pareciam ainda compartilhar entre si a mediocridade do dia a dia, mas já dividiam espaço com meninos separados por telas de celular. Duas padarias, duas farmácias conferiam à cidade o luxo que ele desejara que existisse naquele vilarejo um dia.

Pediu ao motorista que subisse o outeiro onde morou na infância, mas não sentiu mais o frio que lhe atravessava a barriga quando o carro desceu rapidamente o declive antes da ladeira. Tudo parecia mais quente. Ordenou que parasse em frente à casinha humilde, em cuja calçada costumava pousar sua caixinha de engraxate, à espera de ensapatados ricos e onde também dormira muitas noites ouvindo histórias da mãe, antes de ir para rede. Percebeu que agora tinha ali uma vendinha, comandada por estranhos. Abriu a porta do veículo para se certificar de que estava mesmo ali. Planejou alguns passos em direção à velha casa, mas ouviu antes atrás de si:

– Jorge, o que faz aqui?

 

 

Capítulo 4

 

Deolinda Marques

 

Mesmo tendo ouvido claramente seu nome, movido pelo rotineiro hábito de disfarce, voltou os óculos escuros para o rosto, entrou no carro sem olhar para trás e ordenou:

–  Direto para a fazenda Maçaranduba! Sabes onde fica?

 

**************

 

Isaura era uma menina inocente tanto quanto graciosa. Vivia na fazenda colhendo frutas com a mão, tomando banho no riacho que tinha o mesmo nome da fazenda – Maçaranduba – e só vinha à cidade em dias de missa ou para a escola, conduzida sempre pelo pai (o capataz de seu Pereira) na velha caminhonete.

Filha única, era a menina dos olhos de Florêncio e Rosinha e até dos trabalhadores e agregados da fazenda. Vivia cercada de dengo, embora já não gostasse tanto daqueles paparicos todos.

Seu Pereira (na verdade, Raimundo Firmino Pereira) era o dono da Maçaranduba e de uma fortuna incalculável, adquirida de forma misteriosa. Mas não era um homem feliz. Amargava uma viuvez que lhe consumia dia após dia. A única alegria e esperança de sua existência era Raimundinho. Filho único, rapaz bom; só não gostava muito de trabalhar. Todos o consideravam o par perfeito para Isaura.

Já passando à mocinha, certo dia Isaura sai andando e chega ao laranjal onde um grupo trabalhava arduamente na colheita.

–  AI!! – foi o grito ouvido pelo trabalhador mais próximo.

Correndo para verificar o que havia acontecido, viu a gotinha de sangue que pingava do dedinho de Isaura.

– Furei meu dedo tentando pegar aquela laranja. Ela tá tão bonita! Mas não consegui!

Atordoado com aquela inesperada visão e sem saber o que fazer, ele pôs o dedinho dela na boca e chupou o sangue. Depois falou:

– Pronto! Passou!

Com um gancho, puxou o galho e tirou a laranja desejada. Ao entregar-lhe, tocou-lhe a mão sem perceber, pois só tinha olhos para aquela beleza. Ela, com um sorriso que iluminou até o sol, falou:

– Obrigada! Você é novato por aqui?

Antes mesmo que ele respondesse, ouviu o grito:

– Isaura! O que você está fazendo aqui? Pra casa, já!

– Vim só tirar essa laranja, meu pai. Estava tão bonita!

– Sem necessidade! Em casa só o que tem é laranja madura.

Jorge não soube se Isaura olhou para trás, pois sequer levantou mais a vista. Hipnotizado, voltou ao trabalho, mas aquela imagem não saiu mais do seu pensamento.

 

**************

 

Por insistência de Celso, Jorge tinha ido trabalhar na colheita da laranja. O trabalho com a graxa estava fraco. Nem compensava andar pelas ruas, a não ser no final de semana ou em dia de feira. “Esses calçados de pano acabaram mesmo com nosso ganha-pão”, pensava Jorge. Por isso resolveu tentar outra alternativa.

Na fazenda, o trabalho era duro e o ganho pouco, mas era certo. Todo final de semana tinha seu dinheirinho no bolso. Seu Pereira podia ter todo defeito mas era bom pagador.

Convicto de que os pés conduzem o corpo ao destino, Jorge não conseguia pensar mais noutra coisa. Isaura... Isaura... Isaura... E como ela era educada, carinhosa... Parecia mais uma santa do que gente da terra.

Dias depois, no final da tarde, quando Jorge tirava o grosso do corpo no riacho para voltar para casa, avistou Isaura sorrindo:

– Aguinha fria, não é? Vou virar de costa para você vestir a roupa.

Jorge vestiu-se rapidamente, molhando a camisa de tecido fraco, pois dos cabelos ainda escorria água.

– Que bom te ver de novo! Até pensei que você não fosse de verdade.

– Sou de verdade, sim! Igual a você.

Como igual? Havia uma distância e uma barreira enorme que separavam os dois. Mas a ousadia de Isaura e o encantamento de Jorge fez com que eles esquecessem tudo isso e passassem a se encontrar quase todos os dias, sempre num lugar secreto, fora da vista de todos.

Jorge não cabia em si de alegria. À noite, antes de dormir sonhava e chegava até a fazer planos. Como esquecê-la? Tinha até o sangue dela dentro de si e, com certeza, já estava em seu coração.

Os encontros se tornavam cada vez mais frequentes. E quando se beijaram pela primeira vez, por pura inocência, Jorge segredou a Celso tudo que estava acontecendo em sua vida. Mas o amigo não demonstrou nenhum sinal de felicidade da sua parte.

Na manhã seguinte, bem cedo, todos os trabalhadores estavam no pátio da fazenda e seu Pereira (acompanhado de Florêncio, seu fiel protetor) chamava um a um para o interrogatório. As perguntas eram sempre as mesmas:

– Onde você estava no finalzinho da tarde?

– Você tem uma ideia de quem possa ter roubado minha espingarda?

Na tarde anterior, como de costume, Jorge e Isaura haviam se encontrado. E daquela vez os corpos falaram mais alto e viveram momentos inesquecíveis. Jorge voltara cantarolando, rindo com as folhas... Celso foi logo perguntando;

– Viu passarinho verde? Me conte logo o que aconteceu!

Mas Jorge se limitou a gritar:

– Eu sou o homem mais feliz desse mundo!

 Voltou para casa radiante de alegria, dormiu como um anjo e só no outro dia tomara conhecimento do furto ocorrido naquele finalzinho de tarde. Seu Pereira deixara sua espingarda de estimação no alpendre e essa desaparecera misteriosamente. Eis a causa da inquisição.

Chegando a vez de Celso, Pereira foi logo elogiando:

– Sei que você é um rapaz direito, por isso me fale a verdade. Você quem roubou minha espingarda?

– Sei, não senhor! Só saí do laranjal uma vez e foi pra beber água, respondeu prontamente.

Seu Pereira continuou:

– Olhe pra mim! Você tem uma ideia quem possa ter sido?

Celso abaixou a cabeça em silêncio, como quem sabe de alguma coisa, mas tem medo de revelar.

Seu Pereira insiste:

– Diga a verdade!

– A única pessoa que se afastou da turma foi Jorge – falou com ar de inocência. – Mas eu não acredito que ele seja capaz de roupar nada! É um bom rapaz...

– Tá certo! Se eu precisar de você, eu lhe procuro.

Jorge foi o próximo a ser chamado e as perguntas a ele dirigidas já foram diferentes.

– Para onde você foi na hora que se afastou da turma ontem à tardinha?

– Fui fazer uma necessidade fisiológica, seu Pereira

– Fale a verdade! – gritou com raiva.

Mas Jorge não podia contar a verdade. Sentiu naquele momento que só Isaura podia lhe tirar daquela enrascada. Mas será que ela teria coragem de falar a verdade?

 

  

Capítulo 5

 

Iara M Sales

 

Jorge tinha Celso como um amigo e a ele confiara seu maior segredo: seu romance com a moça de cabelos longos e negros e olhar sedutor. E a ele entregou de mãos beijadas sua vida e ele — o traiu! Mas antes de fazê-lo, o fez consigo mesmo quando nutriu em si sentimentos nada puros por Isaura. Sombra.

 

*************

 

— Diga a verdade! Onde você estava ontem? – insistia Pereira.

— Já o disse, senhor!

— Não acredito! Celso, você me parece esconder algo. Conte logo!

— Vou contar tudo o que sei, senhor! – respondia Celso, dessa vez, com malícia no olhar.

 

*************


O sangue dela em sua boca era doce feito mel. O mel da laranja que se repartida naquele dia, talvez ela lhe desse a metade. Talvez ele fosse sua metade. Sim, era. Aquela tarde na beira do rio não deixava dúvidas. Jorge e Isaura se encaixavam como uma fruta não cortada pela faca do mundo. Da maldade. As águas ajudavam a juntar ainda mais os corpos que se banhavam um no outro. Duas vezes! Na beira e no rio. Jorge não cabia em si de felicidade. Isaura transbordava desde quando pôs o dedo na boca do amado. Ali, juntos, não existia Pereira, Celso, pais, dinheiro, diferenças... Nada! Ali só existia uma coisa: Amor. E o destino, se só lhes presenteasse com esse dia de certeza, seus corações estavam satisfeitos de viverem o resto de suas vidas com dúvidas, pois junto do mais belo sentimento, o tempo de 20 anos se encarregou de tatuar no peito de cada um a outra grande certeza de suas vidas. Saudade.

 

************


— Isaura, minha filha! Pereira me contou tudo, mas como pai, devo saber de sua boca. O que está acontecendo entre você e aquele pé rapado?

— Meu pai! Não sei se consigo te contar... O que posso te dizer é que meu sentimento é puro.

— SENTIMENTO?! Uma moça como você com aquele infeliz!? NUNCA! Só debaixo do meu cadáver!!! SAIA DA FRENTE!! — E Florêncio empurra sua filha, que cai sobre uma mesinha de madeira que fica ao centro da sala e acaba por cortar a mão esquerda com os cacos de vidro, onde pouco antes formavam um bonito jarro de flores, mas que naquela manhã estava vazio. “Triste mão. Dessa vez não tem o beijo dele para sarar o corte” — pensava ela enquanto derramava lágrimas e sangue no vestido de borboletas laranjas. São muitos cortes em tão pouco tempo nessa pobre alma. Florêncio se dirige ao seu quarto, pega um objeto pontiagudo e sai de casa possesso rumo ao laranjal.

 

 

Capítulo 6

 

Nonato Cipriano 

 

Florêncio cruzou o terreiro de sua casa com uma faca, empunhada, de doze polegadas, cabo fabricado com chifre de boi e o chapéu de palha caído sobre o colarinho da camisa que o vento revolto o derrubou, depois que ele passou a perna pela soleira alta da porta, permanecendo preso pelo cordão que servia de barbicacho.  Apresentava um rosto transtornado pelo ódio com uma palidez visível que contrastava com a vermelhidão dos olhos úmidos e edemaciados. O suor lhe escolhia pelas fartas costeletas e os filetes se encontravam na pequena cova que se formava entre as duas clavículas. À medida que apressava o passo, o vento levantava a camisa de tricoline riscado, desabotoada e levantada atrás, à medida que andava. Os pés ligeiros, calçados em alpercatas salga-bunda, que lhes enchia de areia o cós da calça, trilharam incessantes pelos caminhos do gado, traçando o rumo de acordo com sua intuição para a beira do riacho Maçaranduba. Ele tinha quase certeza de que encontraria Jorge à margem do Riacho, pois já sabia das andanças dele por lá. O que ele não imaginava era que fosse para desfrute com sua filha, Isaura.

Quando Florêncio aproximou-se da passagem do riacho que era bastante ensombrado pelas copas das cajazeiras e havia uma prancha de madeira que servia de passadiço sobre o curso d’água, ele agachou-se e foi andando de “quatro pés” com o olhar atento para a beira do riacho e com uma sede de vingança que lhe fervia o sangue, só em imaginar que encontraria Jorge, ali, esperando por sua filha para, mais uma vez, tingir sua honra. Ele parou, olhou em todas as direções e permaneceu inerte que nem um felino farejando a presa. 

Jorge havia combinado com Isaura de se encontrarem no riacho, naquele dia e naquela mesma hora. Seu coração acelerava à medida que se aproximava do local. A certeza de encontrar seu amor naquelas águas que tornara o refúgio daquele inocente amor o deixava mais cheio de vida e as emoções afloravam facilmente. Do outro lado, há poucos metros do riacho, ele parou à beira do caminho e colheu algumas flores nativas: de uma parte delas fez um buquê e com as outras um pequeno arranjo em formato de tiara para enfeitar os cabelos de sua amada. Chegando bem próximo das águas, parou um pouco, olhou para a pedra lisa onde costumava encontrar Isaura sentada e havia apenas o vazio. Andou mais um passo, pôs a mão, em palo, à altura da fronte no intuito de “quebrar" os raios do sol e para sua surpresa, enxergou Florêncio com a faca em punho, na outra margem erguendo-se e arrancando em carreira sobre a prancha de madeira atravessada sobre o riacho. 

O chão abriu-se para Jorge e sua reação foi voltar imediatamente e abrir em disparada pelo caminho que o trouxera. A fúria de Florêncio aumentava, ainda mais, cada passo que dava atrás de seu mau desejo. Por ser jovem, Jorge tomou a dianteira e aproveitando as curvas do caminho embrenhou-se mata adentro até que Florêncio o perdeu de vista e já sufocado pela exaustão do corpo, encostou-se no tronco de uma árvore e permaneceu por um bom tempo até que sua respiração o devolveu o ar aos pulmões, enquanto Jorge corria incansavelmente e “ganhava o mundo”. Florêncio descansou um instante, refez os planos e decidiu voltar para sua casa e construir uma nova estratégia. 

No caminho de volta, agora com a lucidez plena e com a razão restabelecida, manteve uma marcha mais lenta, tanto que até se distraiu com algumas aves que cantavam no arvoredo. Ainda distante do riacho, encontrou uma arma jogada sobre  alguns pequenos arbustos. Parou, foi até o local, apanhou a arma, examinou a coronha,  destravou o cano e percebeu que o cartucho tinha sido disparado. Travou o cano, olhou a marca e o número de série e reconheceu que aquela espingarda era a do senhor Pereira  que havia desaparecido. Ele olhou pra espingarda, olhou para os lados, agachou-se  olhando a parte mais baixa da mata e, de repente, observou uma parte de tecido  vermelho que aparecia por baixo das folhagens secas, no chão. Ele correu até o local, começou a afastar a folhas com as mãos e para sua indignação, o corpo que estava ali era do filho do Senhor Pereira e havia sido morto com um tiro no peito esquerdo por  aquela espingarda que tinha sido roubada dois dias antes. 

Florêncio arrastou o corpo, pela camisa, para o caminho, pôs o dedo em várias partes procurando o pulso, mas não o encontrou. Apesar do corpo ainda apresentar uma leve temperatura morna, o que indicaria que havia sido morto há poucas horas, mas já  estava morto. Depois o ergueu nos braços e saiu sem rumo tentado encontrar uma  maneira de comunicar ao seu patrão sobre aquele infortúnio. Atravessou o riacho,  percorreu por dentro do laranjal para encurtar o caminho, até que chegou no pátio da  casa do senhor Pereira. Quando ele olhou seu filho morto, nos braços de Florêncio,  esbravejou e deu socos no ar, depois arriou-se na terra chorando inconsolavelmente. 

- Quem matou seu filho foi aquela besta-fera do Jorge, patrão! Gritou Florêncio com os olhos inchados de chorar. 

- Junte todos os meus jagunços e vão buscar ele nem que seja na boca do inferno! Esbravejou, senhor Pereira. 

 

Capítulo 7

 

Fritz Moura 

 

Avisado, pelas bocas da cidade, que o senhor Pereira e seus jagunços estavam a  sua caça, todos já o chamavam de assassino ... uma contribuição de seu “amigo” Celso.  Este, fez questão de divulgar uma versão da história, um enredo, em que Jorge era o  violento bandido, que tirou a honra de Isaura e a vida do filho do senhor Pereira. Mas  não se acovardou, inteligentemente, livrou-se dos jagunços na chapada e voltou à  cidade para contar a sua verdade. 

Na praça do mercado, em frente ao bar de Pedrão, o encontro aconteceu entre  Jorge e o senhor Pereira, a vista de toda a cidade, aos gritos defendeu sua inocência...  - NUNCA PEGUEI SUA ESPINGARDA, NEM SEI ATIRAR!

Meus braços só uso para trabalhar, da minha boca e de meu coração só saíram  sentimentos de amor por Isaura... 

Mas o ódio de Pereira o cegava. A população, já manipulada pelas mentiras de  Celso, não conseguiam perceber a trama. No meio da multidão que assistia o  enfrentamento surge Edenílson, amigo de infância de Celso e Jorge, se levanta em defesa  de Jorge... 

- Jorge não é assim, ele não mataria ninguém, conheço... 

Sua fala, brutalmente interrompida por um tiro de um jagunço de Pereira, não  teve êxito, só lhe levou para o hospital – um mês em coma, nem soube o que aconteceu. 

Virou um alcoólatra desprezado por todos da cidade. 

Depois do tiroteio, Jorge ferido e seu amigo Edenílson em estado grave caído  ao seu lado, todos paralisados com acontecimentos tão violentos, incomuns aquela  pacata cidadezinha do sertão. Um grande clarão envolveu a cidade, uma luz tão forte  que deixou todos cegos, segundos se passaram e quando o clarão foi amenizando  percebe-se que Jorge havia sumido. Pereira em pânico, acompanhado por seus jagunços  embrenham-se na mata de cocais perto da cidade e somem também. 

Jorge acordou três meses depois, nu no meio da floresta amazônica, próximo a  uma aldeia dos índios Borari, sem memória dos acontecimentos e do período de apagão  de sua mente... a memória dos acontecimentos em sua cidade natal, de Isaura e de sua  vida passada foram aparecendo aos poucos nos meses que se seguiram. Mas dos três  meses entre o seu desaparecimento e aparecimento na floresta amazônica ... este tempo  se perdeu em sua memória. 

No mundo, distante de seu torrão natal, fugido de uma culpa que não era sua, Jorge teve a certeza de que era um “Zé Ninguém”, anônimo, escondeu-se na mata do  Amazonas, extraindo ouro e diamantes com os garimpeiros. Depois virou peão  boiadeiro e caminhoneiro, transportando gado pelo pantanal, e outras coisas não tão  lícitas, arriscou a vida e ganhou muito dinheiro, foi esperto, escapou desta vida e foi se  esconder novamente na cidade grande. 

Chegando no Rio de Janeiro ... “cidade maravilha da beleza e do caos” ... viveu  anônimo na multidão, escapou da morte certa, ...no verão faz 40 graus... lembrava sua  terra natal, no sertão. Aprendeu com a malandragem e com a vida difícil na favela, a  cantar, a dançar, a conviver e enfrentar a violência da polícia, de milicianos e de traficantes (lembrou-se dos jagunços de Pereira) ... sobreviveu e ficou forte, até juntou riquezas se aliando à corrupção política (lembrou-se de Celso). 

E, novamente, foi esperto fugiu desta vida e voltou para seu torrão natal. Para  enfrentar o seu passado, para encarar a injustiça e buscar a vingança, ou a justiça  reparadora, matar a saudade de Isaura, quem sabe reviver aquele amor, encontrar-se  consigo mesmo, fechar um ciclo de vida e morte. Não poderia ser pior do que o seu  viver até ali. 

 

 

 

 

 

Capítulo 8

 

 Regivalda Sousa 

 

 Todos os sonhos da juventude, os planos traçados por ele e Isaura  nas margens do riacho, a imagem dos traidores e os 20 anos que perambulou pelo  mundo passavam por sua mente enquanto o carro percorria a estrada rumo à fazenda  onde conheceu o amor e o ódio que brota do coração humano. Os sentimentos também  iam voltando: amor, ódio, medo, saudade e esperança... esperança de, finalmente,  conseguir encontrar a justiça ou a vingança... esperança de reaver, senão os 20 anos  que perdeu, ao menos o coração de Isaura, a menina de quem ficou noivo na beira de  um riacho, na presença unicamente de Deus. 

Aquela lembrança animava seu coração e, ao mesmo tempo, fazia-o sangrar. O fato se deu numa tarde anterior aos seus infortúnios, quando encontrou e amou Isaura  pela última vez. Naquela tarde Isaura estava especialmente bonita. O cabelo, os olhos, o corpo... tudo nela parecia diferente. Isaura parecia mais mulher. Estava decidida a viver aquele amor, mesmo que à revelia do pai, de seu Pereira, de Raimundinho, Celso e de quem mais fosse. Jorge, por sua vez, estava tão ligado a ela que só desejava tornar o laço cada vez mais estreito e eterno. Com esse desejo no coração, entregou a Isaura uma medalhinha de nossa senhora que trazia sempre consigo, já que não podia oferecer  um anel de ouro, como aquele que ela já trazia no dedo, e a pediu em casamento. Isaura aceitou e os dois combinaram de se encontrarem ali, no dia seguinte, para que pudessem fugir. O plano parecia perfeito. Os dois fugiriam para a cidade vizinha e se casariam. 

Uma vez casados, só a morte os separaria.

Contudo nada saiu como planejado. Jorge até colheu as flores para o buquê e a tiara que ornaria sua noiva na hora do casamento, mas não encontrou a noiva no local  combinado. Em seu lugar encontrou a ira de um pai, a traição de um amigo, a morte de  um rival não declarado e o desejo de vingança de um coronel órfão do único filho que  Deus lhe concedeu. Trágica sorte a sua. Apaixonar-se pela noiva do filho do coronel foi sua bênção e a sua maldição, pensava Jorge enquanto o carro avançava. Isaura  cresceu na fazenda do senhor Pereira, junto com Raimundinho, e por influência do pai  ficara noiva dele logo que fez seus dezoito anos. Florêncio não via melhor partido para a  filha e se alegrava por Pereira, de quem era a sombra, ver em Isaura a mulher perfeita pra  Raimundinho. Jorge conheceu Raimundinho ao chegar na fazenda, por intermédio de Celso. 

O amigo falava muito do filho do patrão e sempre demonstrava um certo ódio,  principalmente quando o assunto chegava na " noivinha de Raimundinho". Jorge  gostava de Raimundinho e só descobriu que a noivinha dele era Isaura quando já estava  perdidamente apaixonado pela moça, uma noiva de anel no dedo, mas de coração  liberto, afinal Isaura não amava Raimundinho. Ficara noiva por imposição do pai e só  porque este jurou que, se ela recusasse o pedido do filho do patrão, seu Pereira o  expulsaria da Fazenda e que sem aquele trabalho toda a família sofreria e passaria por  sérias dificuldades. 

Enfim... Jorge concluía que amar Isaura foi sua bênção e sua maldição não fora  Raimundinho. Sua maldição foi ser amigo de uma cobra. O passado ia sendo passado  a limpo. Jorge já sabia que seu Pereira estava morto, embora não soubesse como se deu  seu passamento, e rezava para que tivesse encontrado a paz. Restava descobrir quem  matou Raimundinho, entender o porquê de ter sido apunhalado por Celso e todas as  suas tramas. E, o mais importante, encontrar Isaura. 

Quando Jorge voltou de seus pensamentos, olhou pra frente e logo avistou a  fazenda Maçaranduba. O coração acelerou. O carro parou próximo ao portão de acesso  e Jorge saltou. Queria ir a pé até o casarão de seu Pereira e percorrer todas aquelas  terras em busca de si. Queria ver o laranjal onde viu Isaura pela primeira vez, o riacho  onde a viu pela última vez, o lugar onde habitou com o infeliz do Celso e Enfim, queria  rever os lugares que não saiam de sua memória. Com o coração pulsando forte, Jorge  avançou. A cada passo uma lembrança. Parou no terreiro do casarão. As portas estavam  fechadas . Era um casarão enorme, antigo e estava igual ao que guardara na memória.

A única diferença percebida foram as flores. Não havia flor na casa de seu Pereira e em  nenhuma casa erguida em suas terras. A exceção era a casa de Isaura. Ela era uma flor  e vivia plantando e regando flor. A única coisa mais bonita do que os canteiros de  Isaura, era a própria Isaura, diziam todos. 

Por isso mesmo Jorge estranhou. Os canteiros da casa de seu Pereira, pareciam  os canteiros de Isaura. Ficou parado, por um instante, em transe. Voltou a si quando  uma criança , aparentemente de dois anos, que corria para fugir da mãe se agarrou a  ele. Assustado e sem saber como reagir, Jorge ficou paralisado, até que a mãe do  menino surgiu, ralhando com a criança por suas peraltices. Era uma mulher Jovem e de  longe, como de perto, parecia uma cópia de Isaura. 

– Venha cá , Pedrinho! Seu moleque levado 

– Disse a moça agarrando a criança 

– Desculpa, moço, este pestinha apronta e foge. 

 Jorge sorriu, mas nada falou. Estava hipnotizado diante da moça e tinha  medo de fazer qualquer pergunta, pois tinha medo das respostas. 

– Desculpa a invasão, mas o senhor está bem? Quer um copo de água? O  senhor treme. Por favor, venha comigo, minha mãe faz um chá de ervas maravilhoso  que levanta até os mortos. O senhor vai melhorar rapidinho . 

 Jorge estava imóvel, perplexo, suando frio... Com muito esforço foi que  conseguiu dizer: 

– Quem é você? Quem é sua mãe? 

– Eu? Eu sou Margarida, minha mãe é Dona Isaura, sabe não? Todo mundo conhece minha mãe. O senhor não? 

 No meio do terreiro, olhando para os canteiros, o casarão e para a filha  do amor de sua vida, Jorge falou: 

– Conheço mais do que a mim. 

 Margarida não entendeu a frase, mas não teve tempo de perguntar nada.  Isaura surgiu na porta e ao ver Jorge, caiu de Joelhos na terra aos prantos. Margarida  soltou o filho e correu para acudir a mãe que chorava e clamava por misericórdia.  Jorge, por seu lado, ao vê Isaura e notar seu desespero, também verteu lágrimas e  caiu prostrado de joelhos. Logo percebeu que o tempo não tirou a cor dos cabelos  de Isaura e nem sua beleza. Na verdade, aos olhos apaixonados de Jorge, ela estava

ainda mais bela do que a menina que viu no laranjal e mais encantadora do que a  mulher que amou no riacho mais doce de sua vida. Contudo, mesmo Isaura estando  diante de si, parecia estar mais distante do que quando morava, dormia e acordava  somente em sua memória. Isaura estava transtornada e Jorge dilacerado. Num ímpeto, Jorge se ergueu e caminhou na direção da amada, que jazia amparada pela filha, bradando : 

– O que lhe contaram Isaura? O que aconteceu? Eu tenho tanto para te dizer. Eu tenho tanto para ouvir de você. Acalme-se, meu amor. Eu estou aqui ... 

– Não se aproxime de mim. Eu não quero ouvir nada. Vá embora, Jorge.  Suma daqui como fizestes há 20 anos. – Respondeu Isaura aos soluços. 

– Eu só saio daqui quando você me ouvir. Você não pode ter acreditado nas mentiras que espalharam sobre mim. Você me conhece! Você sabe que não fiz  nada do que fui acusado! Você deve saber que meu único crime foi te amar, Isaura!  – Jorge não pode avançar, pois alguém o agarrou por trás, o arrastou pelo terreiro e o  jogou no chão. 

– Fique longe da minha mulher, miserável! Jorge estava no chão, com o  rosto virado para a terra, mas reconheceu a voz . A mesma voz que ouviu mais cedo  na frente de sua casa. Era Celso. Era o amigo que falava de Raimundinho com ódio;  Que falava da "noivinha do filho do patrão " com malícia; Que o colocou sob  suspeita diante de Pereira; Que traiu sua confiança, revelando seu romance com  Isaura; Que espalhou todas as calúnias possíveis a seu respeito; que era o menino dos  olhos de seu Pereira; que agora chamava o amor da sua vida de "minha mulher".  Ódio e revolta dominaram Jorge e ele foi pra cima de Celso. Os dois rolaram pelo  terreiro. Margarida e Isaura assistiram assustadas um embate violento,  potencializado por 20 anos de ressentimentos e por todos os sonhos destruídos.

 

 

 

Capítulo 9

 

Romanilta Rocha

        

Celso aparentava estar em transe, não cria na situação que se esboçava naquele momento. Careceu suster as forças que pareciam correr pelo seu corpo e fitou Jorge que, também,  lhe desferia um olhar de ira e se lançava para enfrentá-lo; ambos lembravam feras machucadas, tamanho eram os urros incompreensivelmente proferidos. Jorge já imaginava,  há tempos,  este momento de imbróglio, pois o mesmo amor incrustado ao peito e devotado à Isaura dividia espaço com o fel belicoso do ódio nutrido por Celso e pelas noites tenebrosas destes últimos 20 anos.

Estavam assim a rolarem sobre o chão ressequido quando Rosinha apareceu e,  com a autoridade que só as mulheres sertanejas possuem, se interpôs entre as figuras disformes daqueles ex-amigos, exclamando:

- Parem com isto agora mesmo! Vejo que é chegado o momento de colocar os pingos nos is. Basta de dor e sofrimento. Entrem já ali na casa! - disparou.

 Ambos atenderam açodadamente a ordem da esposa de Florêncio. Isaura e a filha também adentraram o sítio. Rosinha os seguiu com a expressão impávida e caminhou em direção a um dos quartos, no qual havia um velho baú, lacrado e  personalizado com as iniciais R.F.P.F., ao qual somente ela teve  acesso ao longo destas duas últimas décadas.

 

 

        

Nos instantes que transcorreram ao retorno da mãe de Isaura, Jorge rememorou o quanto, há 20 anos,  Rosinha fora protagonista para que se desse a sua “salvação”. Quando partiu dali, passou por longos três meses numa amnésia quase que total em relação à sucessão dos acontecimentos. Mas à medida que o tempo foi correndo, as memórias do seu passado começavam a descortinar. Lembrava com nitidez o confronto e as ameaças de Pereira em plena via pública; ouvia ainda o eco do povo hostilizando-o  com xingamentos e impropérios. À sua mente, chegava o momento fatídico em que fora atingido por um tiro e ainda assim presenciara o amigo Edenílson, também baleado, ser levado ao hospital da cidade vizinha. Não que acreditasse em coisas sobrenaturais, entretanto, também era muito recorrente à sua memória que, no transcurso daqueles momentos tensos,  acontecera uma tempestade de verão, antecipada por um redemoinho de proporções jamais vistas naquele lugar,  embranquecendo com a areia da beira do rio todo o lugarejo; mais parecia uma providência divina agindo para sua sorte. Relampejava e trovejava continuamente e isto bastou para afastar seus algozes e a horda de curiosos antes tão inflamada. Recordava a ambulância que socorrera Edenilson, bem como da velha camioneta de Florêncio se aproximando e dela descendo Rosinha. Ela o acolhera, limpara seu tiro de raspão, arranjara-lhe umas economias e,  contrariando a qualquer lógica,  ordenara a um dos empregados da fazenda de sua confiança que o  encaminhasse até a rodoviária da cidade vizinha.  Ele pegou o primeiro ônibus para a capital e de lá seguiu para o Norte do país.

 Como em sua vida nada tinha sido um mar de rosas, tão logo chegando ao estado do Pará, contraiu malária, ficando entre a vida e a morte em uma Santa Casa, até que sua saúde se restabelecesse. Desse contínuo de espaço e tempo tinha escassas lembranças, talvez em razão do sofrimento causado pela maleita e das noites insones em que ardia em febre. Todavia, tão logo sentiu as forças revigoradas, estabeleceu como meta de vida ganhar dinheiro para ressarcir o precioso presente que a mãe de Isaura lhe dera: a devolução de sua própria existência. Esta restituição pecuniária era uma das arestas que precisavam ser aparadas e que, com a devida urgência, ele lembrara na noite em que chegou à pousada da sua cidadezinha.

Estava perdido nesses seus pensamentos quando o barulho de um velho baú sendo arrastado pelo corredor lhe trouxe à realidade.

 

 

        

A noite de natal daquele ano de 2001 seria diferente, pelo menos era o que imaginava Raimundinho. Saindo do banho, olhara o céu límpido pela janela e notara que as primeiras estrelas mal deram as caras; acomodou-se na velha cadeira próxima à escrivaninha e, por força do hábito, escreveu mais um bilhete, desta vez resoluto em enviá-lo à pessoa destinada.

 

“Meu Amor”,

 

Eu preciso que nunca e em nenhum momento você duvide do meu sentimento, da minha lealdade, muito menos da vontade imensa que sinto de gritar aos quatro ventos que você é a razão e o motivo do meu sorriso mais verdadeiro.

Firmei há alguns dias, pelas circunstâncias que já sabe, o compromisso de noivado com Isaura, aquele anjo, se há anjos sob este céu. Ela é tão vítima dos  desígnios do destino quanto nós, por isso não a queira mal, pois no decorrer desta torturante vida de aparências e omissões,  Isaura tem sido um bálsamo, uma amiga rara. Somente ela e D. Rosinha (que é praticamente uma mãe, desde que Deus levou a minha) são as duas únicas pessoas, depois de você, que de fato me conhecem, me entendem e me amam. Assim penso! Assim quero acreditar, pois lutarei pelo nosso amor, custe o que custar.

                 

                        Beijos,

Do sempre seu...

 Raimundinho.

 

PS: Esta foto é um registro feliz daquela tarde no laranjal. Para mim, a fragrante lembrança daquele dia tem mais aroma do que todas as laranjeiras em flor...

 

Raimundinho anexou carinhosamente a foto, na qual se viam, além dele,  Celso e Jorge, juntou ao bilhete, pôs no envelope e pediu a um menino filho de um funcionário da fazenda que fosse entregá-lo a Celso no alojamento onde ficavam os trabalhadores da colheita da laranja.

Seguia o menino inocentemente e feliz, pela gorjeta que tinha recebido,  no intuito de cumprir sua missão, contudo mal se afastara da cancela divisória da fazenda, fora interpelado por Seu Pereira:

- Ô moleque,  que pressa é esta?! Vai tirar o pai da forca?

- Não, Seu Pereira! Vou entregar o bilhete do Raimundinho…

- Me dê aqui este bilhete! Deixa que eu mesmo entrego...

Sem titubear e sem notar a malícia por detrás da ordem do velho coronel, o pivete lhe entregou o envelope e deu meia volta para a sede da fazenda.  Na entrada se deparou com Raimundinho, que ansioso lhe indagou se havia cumprido a tarefa; ao ouvir que o próprio coronel havia se prontificado a fazê-la, Raimundinho foi sucumbindo e seu grito de “Não, isto não podia ter acontecido…” chegou à sala onde se encontravam Isaura e sua mãe.

As mulheres tentaram reanimar o rapaz, que, em choque e gelado, padecia de mais uma crise de ansiedade tantas vezes presenciada por elas. O coronel, que havia retornado há pouco, ordenou que ambas se retirassem e nem sequer olhassem para trás. A sucessão dos acontecimentos quando Seu Pereira encontrou o filho parecia a escalada de um drama:

- Que diabos quer dizer este maldito bilhete, Raimundinho? Diga que isto é uma brincadeira de mau gosto...Diga que você não é um pederasta... Mas me diga para qual destes dois amaldiçoados a brincadeira era dirigida. - Esbravejava furiosamente Seu Pereira.

Raimundinho pôs-se de pé, fitou o pai corajosamente e respondeu:

- Não é uma brincadeira, meu pai. É o que eu sinto e é só amor…

Seu Pereira, empurrando-o vociferou:

- Não me chame mais de pai! Não manche o nome da minha família...Amanhã bem cedo trate de dar o fora desta casa...Nunca mais me dirija a bênção, para mim a partir de agora você não existe…

A batida violenta na porta e a expressão furibunda do pai foram as duas últimas coisas que vieram à sua mente naquelas primeiras horas de uma manhã erma e fria, antes do estampido seco da velha espingarda que estava sob a guarda de Raimundinho há três dias, no intuito de caçar umas avoantes... Mas quis o destino fazer com que apenas as aves de arribação seguissem sua nômade jornada naquela manhã de dezembro. Somente quando o sol a pino, Florêncio, que estava às voltas com a perseguição a Jorge, encontrou o corpo gélido do futuro genro.

Nesse ínterim, Rosinha e Isaura trataram dos funerais que o velho Pereira, agora corroído pela culpa, autorizou que as mulheres fizessem. Contudo deu expressas ordens de um silêncio eterno para Rosinha, pois apenas esta era quem, de fato,  tinha plena ciência do que havia ocorrido e do seu porquê, já que somente ela havia presenciado o embate do pai e filho na noite anterior. Pelo amor maternal que nutria a Raimundinho, no seu coração havia o presságio de que algo grave estava prestes a ocorrer e, contrariando as ordens do patrão, se ocultou na cozinha; de lá, fora a única testemunha daquele momento impetuoso, como também fora seu colo e seu chá de cidreira o conforto para Raimundinho tão logo o velho se afastara.

Quanto à Isaura, sem entender o desvario do destino e acreditando que a vida do amigo Raimundinho tinha sido ceifada pelas mãos de seu amor,  Jorge, como todo mundo insistia em afirmar, nunca mais recobrou a  plena lucidez.  Vez por outra, ela até tinha períodos de maior senso, sobretudo quando Margarida, fruto do seu amor por Jorge,  nasceu.  Mas, ainda assim, compreendeu e aceitou que seria uma forma de honrar a memória de Raimundinho concordar em casar-se  com  Celso, conforme sua mãe lhe sugerira depois que Seu Pereira foi dado como morto. Celso se tornara o braço direito dos seus pais e tinha plena consciência e anuência de que seria um casamento sem nenhuma relação carnal, conforme o acertado com Rosinha e com a própria Isaura, detalhe este escapado do saber de Florêncio, que se deitara eternamente há uns cinco anos sem levar este segredo ao túmulo.

O coronel encabeçou a caçada a Jorge, pois acreditava que era ele,  de certa forma, o culpado pelo falecimento do filho. Não ousava admitir nem para sua própria consciência tudo que tinha acontecido na noite da véspera e que culminou naquela desgraça. Como Florêncio já havia elegido Jorge,  também,  como desafeto por conta do amor deste à sua Isaura e,  por desconhecer o que tinha sucedido na casa do patrão, visto que estava em viagem a serviço da fazenda, não hesitou em clamar por vingar-se do suposto crime de Jorge. O velho Pereira agiu de modo que todos pensassem que teria sido aquele rapaz trabalhador do laranjal o algoz do seu filho, resultando no embate em plena via pública da cidade, na fuga do coronel e dos capangas, após aquele desferir os tiros em Edenílson e no próprio acusado, além do socorro de Rosinha e da consequente partida de Jorge da sua terra natal.

A natureza humana é, por vezes, tal qual uma ilha de incógnito acesso, deste modo, quase indescritível.  Assim era a personalidade de Celso. Ao tempo  que na juventude irradiava o mais puro sentimento afetivo em relação a Raimundinho, com quem mantinha uma secreta relação, embora apregoasse aos quatro cantos que não o  suportasse e até destilava uma falsa malícia para denotar interesse por Isaura, agora na maturidade, depois de tantos danos e tantas dores na alma, desde a passagem de Raimundinho, só conseguia enxergar em Jorge o assassino daquele a quem tanto amou. De modo análogo a quase toda a cidade, à exceção de Rosinha e de Edenílson — que sabiam da inocência de Jorge, ela por conhecer os fatos reais e Edenílson por não duvidar da índole do amigo —, Celso acalentara em todos estes anos uma raiva cega que se transformara em obsessão de vingança. Foi por este motivo que, no íntimo, aceitou casar-se com Isaura; foi em nome dessa tresloucada ira que, reencontrando Jorge na presente manhã, depois de longínquos 20 anos, junto à Margarida e Isaura,  quis feri-lo mortalmente usando o possessivo “minha mulher” ao se dirigir à Isaura, tirando o chão de seu rival.

Coube à Rosinha trazer a verdade à tona, por meio de um diário e de um calhamaço de cartas e bilhetes já amarronzados pelo tempo. Registros que Raimundinho escrevera nas suas horas de alegrias e de dissabores, frutos que os arroubos da juventude propiciam e que entregou aos cuidados da “sua mãezinha”. Ela abriu o baú e parecia passar a vida de Jorge, Isaura, Celso e Raimundinho a limpo, preenchendo lacunas, tecendo afetos, atenuando dores, expondo feridas e cicatrizes, todavia fazendo a justiça a todos eles. Jorge não era um assassino, era uma vítima. Isaura perdera a saúde mental, mas não a formosura e a docilidade, e era também uma vítima. Celso, debaixo daquela casca dura feita um tronco de jacurutu, perdera seus melhores anos de juventude, quando ficou sem o amor a quem não ousou dizer o nome, era apenas uma figura torturada, quase um espectro do que fora um dia, tão vítima quanto os outros dois. Quanto a Raimundinho não há nem o que se dizer, foi colhido na mais tenra idade por um destino cruel que talvez não gostasse da pureza que aquele menino transparecia.

Depois daquele momento de catarse, Jorge abriu a mochila, retirou um punhado de notas de alto valor, juntou a elas um colar de ouro do maior quilate, adornado por uma medalha de Santa Rosa, e se dirigiu à mãe de Isaura:

- A senhora me salvou uma vez, vejo que a roda do destino quis que o fizesse isso novamente, pois está a reescrever a minha vida.   Mesmo sem carecer, aceite que eu lhe devolva o dinheiro que me possibilitou renascer há 20 anos.  O colar e a medalhinha são mimos que guardei todo este tempo, pois acreditava piamente que um dia esta hora chegaria. Deus lhe pague!

Olhou ternamente para Isaura, Margarida e o pequeno Pedrinho; viu por breves instantes, no menino, os trejeitos que tinha quando criança. Teve certeza de que já não estava sozinho no mundo, teve certeza de que a sua semente germinara. Voltou à pousada, pegou sua única mala grande e acenou para o táxi, que o reconduziu à velha Fazenda Maçaranduba. A partir daquele momento recomeçava um novo capítulo da sua existência.