Crônicas

Crônica da casa abandonada 

Para tia Bibia

 

         Quando era criança, no interior do Piauí, todo Dia de Ano acordava cedo e rumava para a casa de minha madrinha, a fim de tomar a bênção... e talvez ganhar algum dinheirinho. Minha madrinha era também minha tia — tia Bibia. Sua casa fora uma das primeiras levantadas no vilarejo, na avenida central. Na casa, sempre havia uma movimentação de pessoas. Sua família era ela — já viúva — e os filhos, quase todos solteiros, mas muitos. Adorava aquela algazarra toda, já que eu só tinha um irmão. Além de mim, muitos outros afilhados faziam fila para pedir a bênção; muitos deles também eram sobrinhos, dela ou do falecido esposo.

         Era muito comum eu visitar a casa de tia Bibia, por causa do seu trato simpático e pela companhia dos muitos primos de lá. Com o tempo, os mais velhos se casaram e foram morar em suas casas. Cidade pequena é quase tudo igual, noite cedo e o povo coloca as cadeiras na calçada para prosear com os familiares e vizinhos. Os filhos dela, as noras e genros — aqui e acolá um neto — se reuniam quase todas as noites em suas cadeiras de macarrão ou couro. Rua principal, o trânsito de moradores de um lado para outro, uma troca eventual de cumprimentos (“Boa noite!” “Boa noite, dona Bibia!”), uma palavra aqui na conversa, um olho ali no movimento da rua... E, assim, as palestras familiares aconteciam com frequência. Às vezes, um irmão ou cunhado de Bibia se achegava; filhos e netos, sempre; de vez em quando, sobrinhos não resistiam a dez ou vinte minutos na calçada para bater um papo com os demais membros da família. Ali parei algumas vezes ainda criança ou adolescente para participar daquele agradável aconchego parental.

         Havia a casa da avenida e havia a propriedade rural da família de tia Bibia. Na roça, a casa era mais simples, como era de se esperar: dois cômodos, um alpendre de teto baixo, um forno para assar farinha, uma cisterna ao lado... Quando chegava o inverno de chuvas, a família de Bibia se mudava para a propriedade rural, chamada de “serra” por todos da região. Por muitos anos, visitei a serra de tia Bibia nesse período. Achava tudo maravilhoso: o trabalho na plantação com os primos, as refeições simples e deliciosas, as conversas noturnas à luz de lamparina, a dormida em rede sobre o forno... enfim, aquele imenso carinho com que era acolhido pela tia e pelos primos em geral. Outros tempos havia farinhada e a farra era ainda maior. Ou então brincar de arco e flecha feitos de galhos e atirar em calangos e lagartixas. Aquela serra e aqueles tempos passados com a família de tia Bibia estão guardados com muito carinho e saudade na gaveta mais bonita da minha memória.

         Adolescente fui andar pelo mundo. Depois de rapaz ou adulto, já nas capitais, com regular frequência visitava minha querida Santo Antônio de Lisboa. Pretendendo aproveitar cada minuto das férias, fosse com os amigos em farras, fosse com a namorada ou paquera, eram mais raros os momentos em que entrava naquela casa da Avenida 7 de Setembro. Mas, quando à noite trafegava por ali, sempre parava naquele ajuntamento na calçada de dona Bibia. Agora já se fazia uma pequena multidão reunida. Além dos filhos, dos genros/noras, havia muitos netos, e, além destes e eventualmente, irmãos e cunhados de tia Bibia. Os sobrinhos também frequentavam a calçada — tanto do ramo familiar dela quanto do esposo —, e essa era a classe mais numerosa. Se muitos resolvessem parar na mesma noite, não haveria cadeira para a maioria.

Tempos depois, fomos fazer um jaburu (espécie de galinhada) na propriedade de tia Bibia. Havia agora uma nova casa, um pouco afastada do local da antiga. Um alpendre sem forno. Sem cisterna para corrermos em volta. Acho que nem fui ao local da velha casa.

Há pouco mais de um ano, fui novamente de férias ao Piauí. Tia Bibia estava com 90 anos de idade. Antes, vi nas redes, uma foto da família reunida no dia do seu aniversário. Espalhados pela calçada, com a casa da avenida ao fundo, comemoravam algo em torno de umas cem pessoas, agora com uma enormidade de netos, dos cônjuges dos netos, de bisnetos e agregados. Nesse período, os filhos todos já haviam se casado e saído de casa. Tia Bibia morava sozinha na casa da avenida. Casa aquela que se ligou a poucas outras, muitas décadas antes, para formar um dos primeiros ajuntamentos de moradias do vilarejo chamado Rodeador.

Nesse derradeiro passeio, fomos novamente fazer um almoço na serra de tia Bibia. Foi no novo aviamento, na nova serra. Decidimos andar um pouco e visitar a velha casa de aviamento e cisterna de cimento. Não havia casa, não havia aviamento, só a antiga cisterna de cimento rachado pelo tempo sobrevivia por ali... e algumas míseras ruínas de parede. Alguns tijolos desgastados se perdiam no mato dominante. Doído quando se vê todo um período, toda uma história, todo um passado se apagando que nem lamparina nas noites de inverno naquela serra, antes da última conversa para dormir.

Tia Bibia olhava para aqueles escombros enquanto eu a observava e imaginava se ela sentia muitas saudades dos velhos tempos.

Hoje recebi a triste notícia de sua morte. Sentei-me ao computador para escrever algumas linhas indignas sobre tantas e tão boas lembranças que guardo dela e desse passado, ou sobre qualquer um dos diversos aspectos louváveis do caráter, da força e coragem dessa mulher lutadora. O primeiro pensamento que me veio à cabeça foi uma indagação: como ficará a reunião familiar na calçada de tia Bibia?

Após rápida ponderação, triste, concluí que talvez eu não tenha mais oportunidade de me sentar à calçada da casa da avenida. Com sua morte e com os filhos e famílias em suas próprias residências, a tendência é que o imóvel, por sua localização, seja vendido e transformado em ponto comercial, com grandes portões e pé-direito elevado.

Pretendo evitar e adiar, quando chegar a hora, a constatação de que já não há mais a casa de tia Bibia naquele lugar, que não mais existe uma calçada nem uma família aglomerada conversando alegremente, assim como já não existe, há algum tempo, a velha serra com aviamento. Tudo o que restou foi saudade. Uma saudade boa, é verdade, mas dolorida.

E não existe ela, nossa querida tia Bibia.

É certo que, no próximo primeiro de janeiro que eu estiver no Piauí, não mais acordarei cedo para tomar a bênção da minha madrinha.

Mas se, por um milagre, isso ainda fosse possível, não lhe pediria, dessa vez, um dinheirinho de presente. Acho que iria querer apenas um abraço, por todos os bons momentos que vivi na casa da avenida e na serra.

Essas memórias não morrerão jamais, nem mesmo com 91 anos.

Jailson Klein

Porque Bocaina é Vale do Riachão

Logo que surgiram as primeiras conversas sobre a criação da Academia de Letras do Vale do Riachão – ALVAR, Gilson Chagas me perguntou se eu tinha nascido no Vale do Riachão. Eu respondi para ele que, se o vale fosse considerado como “às margens” do rio, não. Porque nasci às margens do Guaribas, onde vivi as melhores experiências da minha infância.

Lembrei-me de imediato que Bocaina tem uma relação histórica não apenas com o Vale do Riachão, mas com toda a região, pois foi aqui que tiveram origem as famílias Borges, Brito e Leal que povoaram essas plagas. As discussões avançaram, eu continuei refletindo e cheguei à conclusão de que não há dúvidas de que a Bocaina pertence ao Vale do Riachão. Mesmo assim não falei nada para o amigo Gilson. Mas o próprio grupo reconheceu que Bocaina faz parte, sim, do Vale do Riachão e decidiu incluí-la na área territorial de abrangência da ALVAR. Esse pertencimento pode ser comprovado geograficamente, uma vez que o município de Bocaina é cortado, ou melhor, banhado (mesmo que apenas uma pequena parte: comunidades de Balseiro e Barra das Guaribas) pelas águas do Riachão.

Mas a relação da Bocaina, melhor dizendo dos bocainenses, com o Rio Riachão vai além da oficialidade geográfica. Está associada à nossa cultura, à lida do dia-a-dia de muitos adultos, ao imaginário das crianças; enfim, à nossa vida.

Digo isso porque, o sonho de toda criança (pelo menos as da minha geração) era conhecer o “encontro dos rios”, localizado na Barra das Guaribas. Crescíamos ouvindo as histórias e sabíamos que havia uma diferença muito grande entre os dois rios. O Riachão era mais largo e mais raso; o Guaribas mais estreito e mais fundo.  No período de enchentes era muito perceptível também a diferença na cor das águas. O Guaribas tem águas barrentas, mais avermelhadas. O Riachão, águas menos barrentas, com um tom escuro mais para o marrom-claro. Sem contar que as enchentes do Riachão eram mais duradouras.

 As cabeçadas do Guaribas vinham rápidas. Muitos agricultores e pescadores eram surpreendidos pelas cabeçadas traiçoeiras, que carregavam tudo. As do Riachão eram anunciadas e esperadas por muito mais tempo. Alguns anunciavam: “O rio, no Jenipapeiro, já está de nado”. Ouvia-se os que tinham roças do outro lado dizerem: “O Riachão velho serenou. Está com três dias lada-a-lado. Não passa ninguém, nem mesmo os nadadores mais afoitos”.  As enchentes do Guaribas eram enormes, mas bem rápidas. Botava cheia num dia, no outro já dava passagem.

Nós, que morávamos às margens do Guaribas, nos orgulhávamos dizendo que o “nosso” Rio era mais importante porque não secava nunca. O Riachão ficava quase sem águas no período da seca. Meu tio, que morava em Francisco Santos, dizia que lá cavavam cacimbas no leito do rio para pegar água de beber. Achava aquilo estranho, pois era no período do verão que o Guaribas ficava ainda mais bonito com suas águas perenes e cristalinas.

Mas as diferenças iam além da largura, fundura, rapidez das cabeçadas, cor das águas no período do inverno. Toda criança tinha muita curiosidade em comprovar o que diziam: “A água do Riachão é mais salobra, mais quente e mais pesada; a do Guaribas é mais doce, mais fria e mais maneira”.

Eu, como morava mais distante da embocadura, só pude comprovar essas afirmações na adolescência, quando mamãe nos permitiu passar um dia na casa de umas amigas, na Barra. A alegria foi imensa, sobretudo porque ia conhecer o “encontro dos rios” e pude realmente comprovar todas essas informações. Provei a água do Riachão e achei mesmo muito salgada. As lavadeiras se queixavam que se gastava mais sabão e o povo do Curralinho e da Ema reclamava muito do sal da água para beber. Me mandaram ficar em pé, com as pernas bem abertas (uma perna no Guaribas e outra no Riachão) e pude comprovar também que se sente as diferenças na pele. As águas do Riachão são realmente mais quentes e mais pesadas. Essa diferença me fascinou. Vi ainda outra diferença que pra mim nunca tinha sido mencionada: a cor da areia das margens. O Riachão com suas areias branquinhas, que foram cantadas por tantos poetas (inclusive nas curvas do caminho do amigo Gilson Chagas), contrastava com as margens barrentas e escuras do Guaribas. No Guaribas, a areia só ficava mais clara e fofinha se fosse um banco bem grande e estivesse seca. Não tenho dúvidas que essas diferenças fazem parte do conhecimento de todos os bocainenses.

Mas os rios tinham um ponto em comum. Ambos eram o grande celeiro da região e a única fonte para se ganhar um dinheirinho a mais com a grande produção de alho e cebola, bem como de outros produtos plantados apenas para o consumo, como coentro, batata-doce, melancia, melão, feijão e até milho e arroz, quando o inverno demorava mais a chegar ou nos anos de seca.

Não quero entrar na polêmica de quem desagua em quem. Acho que os homens daquela época, que definiram que o Riachão desagua no Guaribas, não tinham nenhuma ambição, ou interesses escusos (afinal, o rio era de todos) e agiram de acordo com os conhecimentos de que dispunham e o critério mais significativo: a perenidade.

Hoje, considero que os dois rios já não são mais perenes, agonizam aos poucos e a morte definitiva de ambos é uma ameaça para todos nós. Há 50 anos atrás, se alguém me dissesse que o Rio Guaribas poderia secar, morrer... eu diria que essa pessoa era louca. Todos os poetas descreviam o rio como de “águas infindas”. Hoje, o rio pede socorro. Por tudo isso, considero que o papel da ALVAR vai além de “promover o desenvolvimento literário, artístico e cultural da região”. É também, e sobretudo, missão desse grupo zelar, lutar pela preservação do Rio Riachão, para que seu vale não fique apenas nos registros literários, nas recordações e no imaginário das crianças futuras.

É também por tudo isso que Bocaina é Vale do Riachão e eu sou alvariana de coração. Estamos juntos.


Deolinda Marques